ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Teatro do isolamento
Uma peça apresentada por meio de mensagens via celular
Luiza Miguez | Edição 173, Fevereiro 2021
A médica Mayara Catão Vilela tinha acabado de chegar em casa quando seu celular tocou, por volta das nove da noite. Do outro lado da linha, uma voz masculina avisou: “A peça vai começar, bom espetáculo” – e desligou. Poucos segundos depois, a médica recebeu uma mensagem pelo WhatsApp, contendo um vídeo em que um jovem barbudo dizia, com um sorriso: “Se você está vendo o vídeo, eu provavelmente morri… Esse vídeo é uma chave para que você entre na minha memória.”
Vilela é médica geriatra no Recife e tinha acabado de enfrentar, naquela noite de maio de 2020, um plantão de mais de treze horas no hospital. No auge da pandemia, ela trabalhou de domingo a domingo, atendendo em média cinquenta pacientes por semana e perdendo para a Covid-19 muitos deles. Para não enfrentar a lembrança de tantas mortes que havia testemunhado, ela chegou a suspender as suas sessões de análise. “Naquele dia, eu decidi que iria parar e assistir a uma peça. Precisava matar a saudade de um mundo diferente”, lembrou.
A primeira gravação recebida pela médica tinha formato parecido ao dos stories, os posts no Instagram que incluem vídeos curtos e fotos. Era a cena de abertura da peça Tudo que Coube numa VHS, do grupo Magiluth, em que um rapaz se dirige, depois de morto, ao namorado, rememorando a relação que tiveram. Na publicidade de estreia, a peça foi chamada de um “experimento sensorial” para tempos de reclusão social. As apresentações individuais, sempre via celular, aconteciam de terça-feira a domingo.
Logo, Vilela recebeu uma nova mensagem pelo WhatsApp, com um link para a segunda cena: um vídeo no YouTube com um monólogo do rapaz morto, ilustrado com imagens do espaço sideral. A mensagem seguinte, com a terceira cena, veio com o seguinte aviso: “É IMPORTANTE USAR OS FONES! E uma dica: feche os olhos.” Era um áudio de pouco mais de dois minutos com diálogos travados pelos jovens no início do relacionamento.
“O ano de 2020 tinha tudo para ser incrível para o nosso grupo”, contou Giordano Castro, ator, dramaturgo e fundador do Magiluth, companhia de teatro criada em 2004. A peça Apenas o Fim do Mundo, encenada em 2019, concorrera ao prêmio de Melhor Ator da Associação Paulista de Críticos de Arte e tinha sido indicada ao Prêmio Shell na categoria Cenário. O grupo estava com um contrato praticamente fechado para apresentar uma releitura de Morte e Vida Severina, na ocasião do centenário de João Cabral de Melo Neto (no ano passado). Para comemorar a boa fase, os seis integrantes do Magiluth tomaram a decisão ousada de abrir um espaço próprio, alugando um casarão – e gastaram em janeiro de 2020 todo o dinheiro que tinham em caixa.
A uma semana de assinar o contrato para a temporada de Morte e Vida Severina, o governo de Pernambuco anunciou a proibição de eventos em lugares fechados. O grupo foi avisado que o contrato seria suspenso. “A gente foi de um ano muito promissor para a total falência”, afirmou Castro.
A trupe começou a quebrar a cabeça para encontrar meios de sobreviver, pois não queria adaptar as peças antigas do Magiluth para lives, coisa que muitos grupos de teatro estavam fazendo. “Live é muito chato”, disse Castro. Ele teve, então, a ideia de fazer Tudo que Coube numa VHS. “Era um texto no qual eu já vinha trabalhando e que adaptei para refletir sobre as maneiras como a gente estava vivendo e se comunicando durante a pandemia, que era basicamente por celular.”
Como muitas pessoas passavam grande parte do tempo isoladas, a ideia foi fazer apresentações individuais e explorar ao máximo os diversos aplicativos, criando uma mistura de sensações que ajudassem na imersão do espectador. O grupo também definiu que a peça teria duração máxima de meia hora, a fim de evitar que o espectador escapasse para algum dos milhares de distrações disponíveis no celular. A estreia ocorreu em 7 de maio.
“Você vive dizendo que eu não me abro. Vou te mostrar uma coisa que ninguém sabe”, disse o jovem morto numa nova mensagem que chegou para Vilela. E o personagem passou a contar histórias de sua vida ocorridas vinte anos atrás – era a quarta cena, dessa vez transmitida por escrito, via WhatsApp. Ao final, ele perguntou: “Você se lembra?” Havia chegado o momento de Vilela responder à mensagem e mergulhar ainda mais na peça.
Tudo que Coube numa VHS é a 11ª montagem do Magiluth – nome criado a partir das primeiras letras dos prenomes dos quatro atores que fizeram parte da formação original do grupo: Marcelo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Thiago Liberdade. Os trabalhos da companhia são sempre voltados para o teatro contemporâneo e a discussão de temas da atualidade. Dinamarca, por exemplo, montada em 2017, explorou paralelos entre Hamlet e o impeachment de Dilma Rousseff. A peça experimental por celular foi encenada por Castro, Torres, Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Pedro Wagner e Mario Sergio Cabral.
Entre maio e junho, Tudo que Coube numa VHS foi apresentada para 1 605 pessoas, no Brasil e no exterior, com o ingresso vendido a 20 reais. Graças a isso, o grupo teve caixa suficiente para pagar o aluguel do casarão, o salário e o plano de saúde de toda a trupe naqueles meses. O sucesso atraiu a atenção do Sesc (Serviço Social do Comércio), que convidou o Magiluth para criar uma nova peça para celular, Todas as Histórias Possíveis, que foi exibida gratuitamente. Assim, o grupo conseguiu se manter até o fim do ano passado.
No celular de Vilela, chegou a última mensagem. Era o desfecho da peça, com uma reflexão do rapaz sobre a morte e a separação do casal. Ao assistir à cena, a médica desabou. “Chorei que só”, ela contou. “Me veio tudo de uma vez, foi como despertar para uma humanidade em mim que eu não estava querendo tocar.”