Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Hirotoshi Ito de sua obra Escárnio
Parece democrática, mas é autoritária
A universidade precisa aprender a lidar, na prática, com as desigualdades estruturais do Brasil
O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo, publicado na piauí_172, de janeiro de 2021, apresenta dois principais problemas de ordem conceitual. O primeiro diz respeito ao emprego que faz do termo “neoliberalismo”. O segundo é o modo como entende a relação entre professores e estudantes nas universidades públicas. Os dois pontos estão entrelaçados e, por ter uma compreensão equivocada do neoliberalismo, o texto adota paradoxalmente aquilo que pretende criticar – a saber, uma postura neoliberal.
O autor ou a autora, que escreve sobre o pseudônimo Benamê Kamu Almudras, fragmenta, como se fosse possível, a ideia de neoliberalismo em duas porções: de um lado, a ideologia político-econômica; de outro, a atitude cultural. A partir daí constrói a sua argumentação para mostrar que existiria um “neoliberalismo de esquerda” em vigência nas universidades, que se manifestaria não propriamente como pensamento sobre política e economia, mas como “forma cultural”, incorporada à atitude dos estudantes, que não a percebem como tal, mas como atitude revolucionária, de mudança dos cânones universitários. Esse neoliberalismo cultural difundido sutilmente entre os estudantes, mesmo os de esquerda, seria o responsável por uma cruzada que eles estariam travando agora contra os professores, numa escala que já se aproxima da intolerância.
Há nessa lógica, porém, um erro de base, pois não há como separar o neoliberalismo em partes, uma vez que ele opera justamente na fusão da lógica do mercado com a vida cotidiana. Não haveria como existir um modo de agir neoliberal sem que as forças de um mercado igualmente neoliberal lhes dessem sustentação. Essa é a razão pela qual “neoliberalismo” é uma palavra que implica necessariamente um todo, não uma dada atitude, e não serve para designar casos particulares, ao sabor de nossas conveniências, como muita gente faz.
Ser ou não ser neoliberal não é também uma questão de escolha individual (no caso, de estudantes), mas uma condição que governaria a maioria das ações sociais, uma vez implantado o seu modelo mercantil e difundida sua ideologia. Pode-se discutir se o Brasil, em vista do estágio de suas forças produtivas e de sua organização política, é um país de fato “neoliberal”. Mas, ainda que esteja aquém disso, é essa a lógica que se impôs – talvez como “ideal” – à economia, à política e à vida social, afetando, inclusive, as universidades públicas. Se os estudantes agem, individualmente, vez por outra, repetindo atitudes “neoliberais” é porque, antes deles, a própria universidade e a prática docente colocaram para si o neoliberalismo como horizonte.
Dessa maneira, professores não são as vítimas da cruzada neoliberal que estaria sendo movida pelos estudantes neoliberais. Pois, há anos, o quadro docente já reproduz à exaustão alguns dos princípios do neoliberalismo, como a lógica meritocrática, ao decidir, por exemplo, sobre a distribuição de recursos dos departamentos e as bolsas de estudos. É a autoridade conferida pelo dito mérito da alta produtividade que confere a professores força de intervenção política na universidade e nos órgãos de fomento. Mesmo a Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ou a nota dos programas de pós-graduação atribuída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) são governados pelo princípio da produção em massa de artigos científicos – que funcionam como dividendos para imposição de uma agenda política acadêmica. A produtividade individual no campo universitário, tal como projetada por uma economia de aspiração neoliberal, é o regime de poder.
O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo ignora acintosamente tudo isso e prefere afirmar, sem qualquer base empírica, que professores universitários padecem de desprestígio financeiro e social. No contexto da docência em geral, marcada por brutal clivagem de raça, gênero e classe, o professor da universidade pública é muito mais parte da elite econômica e social. Nós, professores universitários, estamos no topo da carreira docente, com os maiores salários e as melhores condições de trabalho, bastando comparar-nos com o professor da educação básica. Na condição de elite, formamos um corpo prestigioso e respeitado e temos sempre dificuldades para entender as desigualdades estruturais.
É justamente a uniformização ideológica da docência e dos estudantes, que o referido texto reproduz, um dos motivos que levam os estudantes a criticarem os professores universitários. Nós, professores, com frequência agimos conforme uma lógica (neoliberal, ou simplesmente indiferente) que não se atém às diferenças sociais, de gênero e raça, igualando indivíduos oriundos de contextos bastante diversos. É essa mesma lógica, aliás, que leva muitos professores a insistirem na defesa do “mérito acadêmico”, mesmo sabendo das dificuldades de alguns estudantes.
Ao fazer dos professores as vítimas de uma suposta cruzada neoliberal empreendida por estudantes, sem considerar que estes também são vítimas de um “neoliberalismo” similar, da parte dos professores, o texto não permite que se entenda o que está em jogo nas reivindicações dos alunos.
O autor ou a autora afirma, sem explicação, que “motins” realizados em 2017 pelos estudantes teriam como objetivo amenizar o rigor acadêmico, impondo uma agenda de menos leitura ou a discussão democrática do que seria lido. Novamente, confundir uma discussão sobre o cânone – o que implica abrir a palavra a outras expressões da cultura na universidade e escutar os movimentos sociais – com uma discussão neoliberal, como se a educação fosse uma espécie de self-service, é uma forma equivocada, para dizer o mínimo, de lidar com a crítica que vários movimentos e coletivos têm feito à universidade.
O grave problema do texto, portanto, é não entender as reivindicações coletivas dos estudantes, uma vez que está preocupado apenas em descrever atitudes individuais ou de pequenos grupos, na forma de casos pessoais. Não se pode confundir indivíduos com uma causa coletiva e transformar em princípio geral o que se manifestou, certa vez, como problema de ordem pessoal. Mesmo que se recorra a uma penca de relatos individuais parecidos, é próximo do leviano produzir daí um diagnóstico sobre a postura política dos estudantes como um todo, ainda mais sem levar em conta as reivindicações formuladas objetiva e coletivamente por eles. Trata-se de uma estratégia (de tipo neoliberal) para ocultar as questões estruturais e transferir para indivíduos ou pequenos grupos – no caso, estudantes – a responsabilidade sobre um problema que se manifesta em todo o sistema (como mostrei em meu livro Sobre Losers: Fracasso, Impotência e Afetos no Capitalismo Contemporâneo).
Essa confusão entre o pessoal e o coletivo é também um recurso moralista para deslegitimar as demandas dos movimentos estudantis, quando não para ridicularizá-las, o que fica patente quando o autor ou a autora toma exemplos próximos da caricatura e que, por não darem chance ao contraditório, incitam o leitor a apenas concordar.
O pensamento neoliberal está longe de influir na ação coletiva dos estudantes (embora afete alguns deles, individualmente), ao contrário do que se passa dentro da instituição universitária, que, como vimos, já há bastante tempo opera conforme essa mesma lógica. Para se levar adiante o debate sobre a democratização da universidade, é preciso abandonar os chavões e os preconceitos, realizando primeiramente uma radiografia honesta da própria instituição universitária, a fim de mostrar como ela é parte de um modelo socioeconômico, que ela reproduz nas formas de ensino, organização e premiação. Por ter tantas dificuldades para entender, na prática, as desigualdades estruturais do país, muitos professores universitários, como Benamê Kamu Almudras, tomam como voluntarismo autoritário o que, de fato, é uma contestação ao próprio autoritarismo institucionalizado na universidade.
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