FOTO: LUIGI MAZZA
“Aqui fechou, pra onde a gente vai agora?”
Festa clandestina, desculpas e ameaças: a noite de uma equipe de fiscais no Rio, no pior momento da pandemia
A equipe de fiscais da Prefeitura do Rio de Janeiro se encontrou no 3º Batalhão da PM, na Zona Norte do Rio de Janeiro, pouco antes das oito da noite. Eram vigilantes sanitários, guardas municipais e policiais militares escalados para o trabalho daquela sexta-feira, 19 de março, na região do Méier e redondezas. Bateram papo, fumaram cigarros e saíram uma hora depois, formando um comboio. Ao todo, eram quinze pessoas, todas de máscara, em seis carros, numa operação que se repete diariamente em vários pontos da cidade, para conferir se restaurantes e bares cumprem o decreto municipal que ordena o fechamento do comércio às nove da noite. A regra, em vigor desde 12 de março, é mais branda que a anterior, quando restaurantes e bares não podiam funcionar depois das cinco da tarde. O afrouxamento coincidiu com a piora da pandemia no Rio e no país inteiro.
Ainda não eram 21h10 quando a fila de carros estacionou ao lado da Rua Galdino Pimentel, um polo gastronômico do Méier. Em torno de vinte pessoas se aglomeravam na calçada em frente a uma casa para assistir a Flamengo x Resende numa televisão virada para a rua. O jogo do Campeonato Carioca acontecia ali perto, no Maracanã, mas sem torcida. O dono da casa e da televisão aproveitava para vender bebidas. A infração mais grave, porém, acontecia do outro lado da rua, no Kza Gastrôbar.
Assim que o primeiro fiscal da vigilância sanitária apareceu na porta do restaurante, os garçons se apressaram em retirar os guarda-sóis das mesas que ficavam do lado de fora. Havia cerca de vinte clientes comendo e bebendo. Os donos apagaram as luzes do salão interno, numa tentativa de mostrar que estavam fechando. “Fechando como, se tinha uma garçonete servindo um hambúrguer agora mesmo?”, contestou um dos agentes da Seop, a Secretaria Municipal de Ordem Pública. “Aqui vai entrar um artigo 30, inciso 25”, esclareceu a fiscal Luana Ferreira, referindo-se ao Código de Vigilância Sanitária. Ou seja: o restaurante seria multado por estar aberto em horário irregular, oferecendo riscos à saúde pública.
Três homens que se apresentaram como responsáveis pelo estabelecimento puseram máscara cirúrgica e tentaram demover os fiscais. “A gente fechou todas as contas antes das 9 horas, o pessoal é que não saiu”, alegou Alexandre Khalil, um dos sócios. Os fiscais constataram que os donos ainda não tinham alvará da prefeitura para funcionar. O restaurante havia sido inaugurado três dias antes, na terça-feira (16). Eles argumentaram que já tinham dado entrada no documento, e que agora só esperavam para recebê-lo. Mais uma multa. “Aí é artigo 30, inciso 1º”, acrescentou Ferreira.
Um casal de meia-idade, sentado do lado de fora, ironizou: “Vou beber então lá no Jacarezinho! Lá tá tudo aberto”, disse a mulher em voz alta, referindo-se à favela que fica perto do Méier. As mesas esvaziaram rapidamente. A turma que assistia ao jogo do Flamengo na casa em frente também se dispersou.
Dois fiscais sacaram um adesivo e colaram na porta do salão: “INTERDITADO PELA VIGILÂNCIA SANITÁRIA.” A interdição valeu até as 7 horas do dia seguinte. Enquanto os garçons recolhiam tudo em silêncio, Rodrigo Salerno, um dos homens que se apresentaram como responsáveis pelo restaurante, tentava sensibilizar os agentes. “Vou falar do coração. Acabamos de abrir o restaurante. São 36 funcionários, 36 famílias que agora vão fazer o quê? Quem trabalha com quiosque na praia é fácil, tem clientela o dia todo, mas a gente só tem o público da noite. Não tem jeito, vamos fechar.” Os fiscais disseram que só estavam fazendo seu trabalho em nome da saúde pública, o que estimulou Salerno a falar de política e pandemia. “A verdade é que a gente tá pagando o pato porque os caras lá de cima não têm competência, porque só querem roubar nosso dinheiro. Cadê hospital de campanha?”
Procurado nesta segunda-feira (22), o Kza Gastrôbar não quis se pronunciar oficialmente. Por WhatsApp, um homem que diz ser sócio do restaurante, mas que não se identificou, negou que o estabelecimento tenha sido multado. As duas multas, porém, foram confirmadas pela piauí no sistema da Secretaria Municipal de Fazenda. A depender de quando forem pagas, custarão entre 2 mil e 2,8 mil reais.
Na sexta-feira (19), 95% dos leitos de UTI da cidade do Rio estavam ocupados, beirando o colapso hospitalar que tem ocorrido em quase todos os estados. No Méier, o Hospital Municipal Salgado Filho já tinha 100% dos leitos de UTI tomados. Diante disso, o prefeito Eduardo Paes anunciou naquele dia uma nova leva de restrições, proibindo a permanência de banhistas e vendedores ambulantes nas praias. A orla da cidade ficou vazia no fim de semana, mas bares, restaurantes e lojas em geral continuaram funcionando das 10h30 até as 21 horas. Nesta segunda-feira (22), Paes anunciou o fechamento de atividades não essenciais – como escolas e shoppings – por dez dias, mas a medida só começa a valer na próxima sexta-feira (26).
Entre a manhã de sexta-feira e a manhã de sábado, os fiscais da prefeitura fecharam 25 estabelecimentos e aplicaram cem multas, segundo dados divulgados pela Seop. Os números vinham diminuindo ao longo dos dias anteriores, já que, com o tempo, boa parte do comércio se adaptou às regras. “O pessoal agora tá respeitando mais”, diz a fiscal Luana Ferreira.
Depois de passar no concurso da Guarda Municipal, Ferreira virou agente de integração da Seop em 2015. Participa das fiscalizações desde o começo da pandemia. Tem 29 anos e o corpo todo tatuado – no pescoço, desenhou um soco inglês ao lado da palavra “blessed” (abençoada). Mora em Sulacap, na Zona Oeste do Rio, e trabalha em turnos de 24 horas, duas vezes por semana. Pegou Covid em abril do ano passado, possivelmente em uma das batidas que fez pela prefeitura, mas por sorte não desenvolveu um quadro grave. Desde a virada do ano, no entanto, perdeu dois tios para a doença.
Embora o país esteja vivendo um agravamento constante da pandemia em 2021, as cenas mais impressionantes que Ferreira relata são todas recentes. No mês passado, ela fechou uma festa de casamento na Ilha da Gigóia, uma ilhota que fica na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade. Segundo ela, em torno de cinquenta a oitenta pessoas estavam espremidas num pequeno salão de festas, todas sem máscara. A Seop ficou sabendo da aglomeração por meio de uma denúncia. Quando os fiscais chegaram à festa junto com a polícia, o bolo ainda nem tinha sido cortado. “A gente entrou e todo mundo botou a máscara rapidinho”, lembra Ferreira. “A noiva e o pai ficaram magoados, mas correu tudo bem.”
O Carnaval foi repleto de baladas interrompidas. Churrasco numa casa de suíngue em Jacarepaguá; festa com trezentas pessoas no terraço de um hotel em Copacabana; uma mansão com duzentas mulheres na Gávea; baile carnavalesco numa casa de shows da Lapa. Sem contar a hostilidade do público que se aglomera sem máscara nos bares do Leblon. Recentemente, arremessaram garrafas contra os fiscais. Ninguém se feriu.
Depois de deixar o Kza Gastrôbar, o comboio seguiu pelo Méier. Na Dias da Cruz, principal rua do bairro, havia poucas aglomerações, quase todas em torno de carrocinhas de comida. Duas foram multadas por estarem funcionando além do horário permitido. Depois das nove da noite, segundo o decreto da prefeitura, elas só poderiam fazer delivery ou entrega rápida no local. Uma das carrocinhas – um moderno food truck que vendia hambúrgueres e cerveja – foi interditada por não ter autorização da prefeitura para funcionar.
Àquela altura, um cliente embriagado que segurava uma cerveja se aproximou de um dos agentes da Seop, pondo a mão no seu ombro. “Posso te fazer uma pergunta em particular? Queria te perguntar se tem algum filho da viúva que pode resolver a situação”, disse ele, numa linguagem cifrada que sugeria suborno. O fiscal se desvencilhou. Pouco depois, outro cliente, um homem musculoso de cabeça raspada, provocou um dos agentes. “Tô te olhando, e aí, vai fazer o quê? Han? Não fica cheio de marra, que depois tu boia aqui e a gente te pega!” Um amigo dele interveio para tirá-lo dali. O food truck acelerou e foi embora.
Os fiscais multaram vários vendedores ambulantes em sequência: um homem que vendia sopas, outro que vendia doces caseiros, dois jovens negros que vendiam bebidas num isopor, um pipoqueiro e, por fim, um casal que vendia churrasquinho. Pelo celular, os agentes da Seop ficaram sabendo que uma festa clandestina acabara de ser fechada na Lapa, onde a equipe da ronda flagrou cinquenta pessoas apertadas numa boate.
A fiscalização do Méier terminou à meia-noite. Pouco antes disso, o comboio estacionou na Rua Tenente Cerqueira Leite, viela ao lado do Hospital Municipal Salgado Filho. Os fiscais notaram que um dos bares tinha as luzes acesas. O lugar era escondido: não havia mesas do lado de fora, e todo o entorno estava deserto. Ao entrar no estabelecimento, um lugar fechado e escuro, os agentes da prefeitura se depararam com uma festa clandestina que reunia cerca de quinze pessoas. Havia luzes coloridas de boate, música alta, um palco, mesas de bar, tudo num ambiente precário – o balcão de atendimento era feito de concreto bruto, sem qualquer revestimento, e havia bueiros espalhados pelo chão. A dona do bar não estava e coube a um funcionário responder às perguntas dos fiscais. O estabelecimento foi multado por falta de alvará, por funcionar fora de horário, por ter fumantes em ambiente fechado e por ninguém usar máscara – que não foi usada pelo jovem funcionário nem mesmo para receber a multa.
“O cidadão entendeu tudo, né? Quer continuar funcionando? Então corre atrás”, disse um dos fiscais. Os frequentadores do bar continuaram conversando entre si como se nada acontecesse. Só meia hora depois, quando os vigilantes sanitários terminaram de preencher a papelada, eles começaram a sair pela porta. Do lado de fora, uma das clientes perguntou para a turma que a acompanhava: “Já que aqui fechou, para onde a gente vai agora?”
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