minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos
colunistas

Dentro da minha pele – “Grito imperioso de pretura em mim!”

Documentário aborda racismo estrutural impregnado nas relações familiares e de trabalho

Eduardo Escorel | 24 mar 2021_09h18
A+ A- A

No penúltimo caderno inédito, dos mais de cem que deixou ao falecer, Antonio Candido (1918 – 2017) fez, em 21 de março de 2016, a seguinte anotação manuscrita: “… desde aquele tempo [do Estado Novo] sentíamos a necessidade de procurar um socialismo democrático que atendesse ao ‘specificum brasilienses’. Mas não conseguíamos – eu pelo menos não consegui – ver com clareza o que este era, e eu, por exemplo, só muito mais tarde percebi que o problema do negro está no cerne de qualquer política socialmente avançada no nosso país. Seria o caso de completar o verso de Mário de Andrade, no Improviso do mal da América [‘Grito imperioso de brancura em mim…’], por outro, a ser considerado como fundamental para o brasileiro ‘socially minded’: ‘Grito imperioso de pretura em mim!’. Este seria, não o desabafo meio constrangido de um mulato, mas um reconhecimento expresso por todo brasileiro.”

Lembrei das palavras de Antonio Candido ao assistir a Dentro da minha pele (2020). Se a questão central está, como ele propõe, “no cerne de qualquer política socialmente avançada no nosso país”, a premissa do documentário de Toni Venturi e Val Gomes fica clara – revelar “o racismo estrutural que está impregnado nas relações familiares, nos ambientes de trabalho e faz parte da subjetividade das pessoas negras e brancas” (conforme texto de apresentação do filme no site da produtora Olhar Imaginário).

Dentro da minha pele é um entre vários filmes brasileiros que, ao serem colhidos pela pandemia no ano passado, não puderam ter o lançamento previsto e chegar à tela grande das salas de exibição que haviam sido fechadas. É verdade que essas produções – os documentários, em especial – estavam, em grande parte, fadadas a passagens breves pelos cinemas, com poucas sessões diárias e público escasso. Nem por isso a decepção foi menor frente à perda de acesso à tradicional janela de difusão que se mantém como a mais prestigiada e recebe maior atenção da mídia. Em alguns casos, a alternativa foi estrear em drive-in e ser disponibilizado em plataformas de streaming, conforme aconteceu com Dentro da minha pele, em agosto de 2020, após ser exibido para cumprir formalidade legal, durante uma semana, com duas sessões diárias, à tarde, em um cinema de Manaus.

Um conjunto razoável de produções passou por essa mesma agonia e outro grupo está condenado a seguir caminho idêntico este ano, sendo difícil avaliar até que ponto as circunstâncias trágicas que estamos vivendo afetam a carreira tanto de produções direcionadas ao entretenimento quanto as que têm propósito deliberado de debater ideias.

Prejudicado pela pandemia, sem ter responsabilidade por suas consequências, Dentro da minha pele sofre também de um mal congênito – excesso de ingredientes reunidos e combinados na feitura do filme que transformam informação em ruído, prejudicando a recepção. Em que pese os bons propósitos e a inegável relevância do tema tratado, o documentário padece, além do mais, da abrangência de seu escopo e de ocasionais redundâncias, como as vistas aéreas de São Paulo e os planos da equipe no estúdio.

As nove pessoas comuns que compõem o expressivo elenco de Dentro da minha pele, todas muito bem escolhidas, acabam sendo submergidas por uma grande variedade de participantes – pensadores, músicos, cantoras, instrumentistas e poetas slammers – à qual são agregadas ainda legendas didáticas. Essa miscelânea de inúmeras vozes, imagens e situações se sobrepõe aos relatos das diversas experiências de racismo, velado ou manifesto, impedindo o documentário de dar visão mais detida e penetrante de cada um de seus excelentes personagens.

A esses excessos vem se juntar ainda o modismo de tornar um dos diretores – Venturi, no caso – personagem do filme, comentando na primeira pessoa a percepção que ele tem de si mesmo “como branco privilegiado, oriundo de uma família de imigrantes que usufruiu das oportunidades de ter estudado nas boas escolas públicas dos anos 1960”.

Ao contrário do que é anunciado no texto de apresentação mencionado acima, a linguagem de Dentro da minha pele não é baseada na observação. Pelo contrário, nas gravações, de modo geral, há interação com quem está diante da câmera e se recorre, inclusive, em alguns casos, a pequenas encenações.

De forma geral, Dentro da minha pele é apresentado como tendo sido codirigido por Toni Venturi e Val Gomes. Mas nos créditos finais do filme os nomes estão separados, Venturi indicado como diretor e Gomes como codiretora. É uma diferença sutil, mas instaura certa ambiguidade que chama a atenção. Qual o motivo de não estarem juntos com o mesmo crédito de direção?

Salloma Salomão – Foto: Divulgação

 

Outra ambiguidade difícil de entender surge na sequência final. Salloma Salomão, historiador e músico, reaparece após ter sido o primeiro do grupo de pensadores a falar no início do documentário, depois de Chico Cesar cantar e de o médico Estefânio Neto fazer seu relato. Salomão afirma “que é possível conviver… as pessoas de origem diferente, de valores diferentes, de culturas diferentes, podem conviver. Minha experiência mostra isso. Entretanto, a questão do racismo está ligada a um drama humano que é o poder. Então, será possível que os humanos abram mão da busca pelo poder? Eu não sei. Isso eu não posso te dizer. Agora, que as culturas são passíveis de mudar, isso está comprovado. Nós estamos aqui em função de uma mudança cultural, não é?…”. Segundos depois, Salomão diz algo desconcertante: “… Os que sofrem não esquecem… Então, é… é danado isso, né? Não por um sentimento de vingança nem nada, por que o ativismo negro no Brasil, na maioria dos casos, nenhuma ação, nenhuma prática foi feita em nome de uma vingança. Então… e talvez fosse até interessante fazer: matar meia dúzia de brancos cruelmente, com um argumento racista, talvez tornasse essa sociedade um pouco mais sensível para a questão do racismo antinegro. Mas nós ainda não nos capitalizamos em termos de perversidade para operar nesse campo.” A segunda câmera faz panorâmica rápida e enquadra o surpreso Venturi: “Eu ainda não sei o que dizer a respeito disso. Isso é muito profundo. Não, porque, imagina, eu tenho até dúvidas que… eu acho até que eu não posso usar dentro do filme.”

Salomão: “Sim, não, mas isso é o que eu penso. Sim, mas o seu filme é o seu filme. O seu filme é o que eu penso passado pelo seu filtro… às vezes a minha condição é bastante delicada porque eu fui educado com valores de brancos, totalmente, na escola, na Igreja, na vida social… Nós somos vários ao mesmo tempo e, às vezes, apartados de nós mesmos.”

E Dentro da minha pele termina, deixando no ar a polêmica afirmação. Como entender que o filme passe por cima e chegue ao fim sem lidar com a questão crucial que Salomão levanta, citada aqui parcialmente?

 

Toni Ventura e Val Gomes responderam a algumas das minhas objeções ao filme feitas aqui na conversa que tivemos com ele e ela  domingo passado, 21 de março, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. A gravação está disponível em https://youtu.be/9OCRjtx4PpI.

*

A mostra Na Trilha de Jards Macalé! teve início ontem, 23 de março, com a transmissão do show Cine Macalé. De hoje, 24 de março, até dia 27 serão realizadas Rodas de Conversas, sempre às 20 horas. Os filmes estão disponíveis para visualização até domingo, 28 de março. Mostra, show e Rodas de Conversas acontecem no https://www.youtube.com/jardsmacaleoficial .

*

Dia 28 de março, domingo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa de Oliveira e este colunista conversam com Jamille Fortunato e Lara Beck Belov, diretoras de O Amor Dentro da Câmera, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. O documentário recupera a relação de quase 60 anos do casal Conceição e Orlando Senna, ela falecida em maio de 2020. O Amor Dentro da Câmera recebeu o prêmio de Melhor Longa da mostra Competitiva Nacional, atribuído pelo Júri IndieLisboa do XVI Panorama Internacional Coisa de Cinema realizado de 24 de fevereiro a 3 de março. O acesso à conversa com Jamille Fortunato e Lara Beck Belov, no próximo domingo, 28 de março, pode ser feito através do link https://youtu.be/rVhxFc0OvsM .

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí