CREDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
A sobrevivente
Uma mulher luta para reconstruir seu rosto e sua vida
João Batista Jr. | Edição 175, Abril 2021
Na madrugada do dia 17 de novembro de 2017, Ricardo Willians Cazuza invadiu a casa onde havia morado por dois anos com Talita Oliveira e, depois de agredir a ex-companheira, falou para uma das filhas dela: “Despede de sua mãe porque vou voltar mais tarde.” Cazuza foi embora, e Oliveira correu para a casa de sua mãe, a 100 metros de distância, junto com os três filhos, todos de pijama. As crianças (de um relacionamento anterior) caíram no sono. Ela não pregou o olho.
Às seis da manhã uma vizinha bateu à porta da casa na periferia de Barueri, na Grande São Paulo, para contar que Cazuza estava procurando por Oliveira nas redondezas e fazendo ameaças. Enquanto a mulher ainda falava, o ex-companheiro apareceu no portão, fora de si. Com medo, Oliveira fugiu para o quintal. O homem foi atrás.
“Ele pegou meu pescoço com as duas mãos para quebrar a minha cabeça”, contou Oliveira. O golpe falhou, e ele então avançou com os dentes sobre a orelha esquerda da ex-companheira. Arrancou-a e a cuspiu no chão de cimento do quintal. Em seguida, atacou o nariz de Oliveira, abocanhando uma parte dele. E outra vez cuspiu o pedaço de carne no chão. Um primo de Oliveira apareceu e se lançou sobre Cazuza. Houve um princípio de luta – e o algoz fugiu. Tudo durou cerca de um minuto.
Ensanguentada, ela correu à cozinha, apanhou um bule de café vazio e o encheu com água e cubos de gelo. Voltou ao quintal e, com um pano de prato, pegou a orelha e o pedaço de nariz, e os mergulhou no bule. “Fiquei com medo de necrosarem”, ela disse. Com o bule na mão, saiu à rua, pedindo socorro. Vários vizinhos estavam acordados, mas nenhum deles chamou a polícia. “Eles me viram sangrando, mas acharam que eu tinha levado socos. Escondi meu rosto com uma toalha.”
Perto das 7 horas, Oliveira deu entrada no hospital, com o bule na mão. Os médicos colocaram a orelha e o pedaço do nariz dentro de um isopor para protegê-los, mas em vão: a pele acabou necrosando. Quatro dias mais tarde, ela foi submetida a uma cirurgia reconstrutiva. Para o enxerto do nariz, os médicos retiraram parte da orelha direita e da pele da testa, fazendo um rasgo de 12 cm do topo da sobrancelha esquerda até o início do couro cabeludo. Houve rejeição do organismo ao pedaço de nariz implantado, e um queloide apareceu do lado esquerdo. Por causa dos sessenta pontos dados na cirurgia, o rosto de Oliveira cobriu-se de cicatrizes. “Minha cara ficou estraçalhada”, ela descreveu.
Oliveira ficou hospitalizada durante um mês. Quando saiu, teve um novo baque: os filhos – na época com 12, 9 e 7 anos – se assustaram com a fisionomia da mãe. “Eu falei para eles assim: ‘É a mesma mãe, só que com o rosto machucado. Preciso de abraço para ser curada.’” As crianças tiveram que trocar de colégio, por causa do bullying. “Ninguém queria seus filhos em contato com os meus.” Cazuza foi preso nove meses depois do ataque. Encontra-se em um presídio de Araçatuba, no interior de São Paulo.
Os vendedores Talita Oliveira e Ricardo Willians Cazuza se conheceram em uma festa. Ela trabalhava em uma escola de informática; ele, num carrinho de hot dog. Em pouco tempo, o rapaz se mudou para a casa da namorada. Os rompantes violentos dele não demoraram a aparecer: Cazuza não queria que ela usasse batom vermelho, nem gostava que vestisse saias. Um ano após o início do namoro, o casal encontrou em um bar o ex-companheiro e pai dos três filhos de Oliveira. Todos se cumprimentaram cordialmente, mas, ao chegar em casa, Cazuza chamou a namorada de “vaca” e “oferecida” – e a atacou com socos e mordidas. Foi a primeira agressão.
Seis meses mais tarde, Cazuza chegou em casa embriagado e começou a atormentá-la com seu ciúme: dizia que ela estava escondendo um amante. Ele vasculhou a casa, olhou debaixo da cama e dentro do guarda-roupa. Oliveira estava deitada. Quando se levantou, tomou um soco no maxilar esquerdo.
No dia seguinte, com dores no rosto inchado, ela pediu para ir a um hospital. Cazuza a levou, mas mandou-a dizer que tinha sofrido um acidente de moto. “Estava na cara que aquilo era agressão”, afirmou Oliveira. “A enfermeira perguntou mais de uma vez e eu confirmei a versão mentirosa.” Uma radiografia mostrou que havia trincados no osso zigomático, na região da bochecha. Seria preciso colocar uma placa para restaurá-lo. Cazuza disse que, antes da cirurgia, eles precisavam ir em casa para deixar as crianças com parentes. Nunca mais retornaram ao hospital.
A situação do casal piorava dia após dia, enquanto Cazuza se afundava no álcool e na cocaína.
Depois do ataque que destruiu uma de suas orelhas e o nariz, Oliveira buscou ajuda nas redes sociais. Descobriu outras mulheres que passaram por ataques similares e encontrou apoio em projetos como Um Novo Olhar, da dermatologista Carla Góes. “Ela me procurou pedindo socorro”, disse a médica. “Os homens agressores escolhem justamente o rosto e partes íntimas para atacar, pois querem suas mulheres escondidas de todos e com a feminilidade anulada.”
Algumas pessoas também a procuraram para que contasse sua história em palestras. Ela topou. A plateia era às vezes formada por pessoas de alto poder aquisitivo. “Muita gente vai a esses eventos para ver que a vida do outro é pior do que a sua, mas efetivamente não estendem a mão. Não preciso de lágrima, mas de capacitação e emprego”, disse Oliveira, que tem 30 anos e nunca mais conseguiu trabalho. “Eu chego em uma entrevista e logo a pessoa pergunta o que aconteceu.” Ela recebe uma ajuda da Prefeitura de Barueri, em um programa de aluguel social, no valor de 350 reais.
Desde a agressão, Oliveira fez sete operações reconstrutivas do nariz e da orelha, todas pelo SUS. Em março passado, aconteceria a última cirurgia reparatória no nariz, mas tudo foi adiado, por causa da aceleração da pandemia. A nova cirurgia faz parte de um projeto maior, conduzido por Góes em associação com o plano de saúde Prevent Senior: Oliveira será a primeira mulher de um total de dez que farão, sem custo, a reconstrução do rosto após sobreviverem aos ataques de homens.
“Tem dias em que me sinto linda”, contou a ex-vendedora. “Tem outros em que não consigo olhar o espelho.” Os espelhos costumam ser ardilosos, como se sabe. Quem fica face a face com Oliveira é imediatamente tocado pela dor de uma mulher que foi vítima de uma agressão covarde, mas também pela beleza que ela preserva no corpo bem delineado, nos cabelos encaracolados, nos olhos cor de amêndoa e nos lábios marcantes que se abrem, apesar de tudo, em um sorriso encantador.