Quanto é demais?
Vivemos a crônica da calamidade anunciada - e a responsabilidade final é de você sabe quem
Passamos de 300 mil mortos há uma semana e atingimos 314.268 mil em 29 de março. Projeções indicam, porém, que esse total já deve, na verdade, ter ultrapassado 410 mil. Mantida a tendência atual de alta dos óbitos, chegaremos a 500 mil vítimas da Covid-19 até o final de junho. Quinhentas mil vidas perdidas! Impossível minimizar a dimensão dessa tragédia. Não há como remediar tamanha mortandade. É tarde demais. O crime foi consumado, e o principal responsável sabemos quem é. Impotentes diante da catástrofe, só nos resta preservar a memória do espetáculo macabro, lanhados pela experiência de sermos contemporâneos da pandemia. Quanto às mortes que continuam a bater recordes diários, será preciso somá-las às já enumeradas. Até quando?
A estatística de vítimas da Covid-19 e de contaminados pelo Sars-CoV-2 e suas variantes, também em alta, sugere a pergunta feita no título – Quanto é demais? 250 mil é mais grave do que 200 mil mortos? 200 mil é mais grave do que 150 mil? 150 mil é mais grave do que 100 mil? 50 mil é mais grave do que 10 mil? E assim por diante. Quero crer que a resposta a essas perguntas seja sempre negativa – no limite, toda perda de vida que poderia ter sido evitada é inaceitável. Mas parece haver um patamar acima do qual as perdas se tornam insuportáveis. A julgar pela carta aberta de economistas, banqueiros e empresários, divulgada com mais de 1500 assinaturas há dez dias, a proximidade de 300 mil mortes teria levado os signatários a se manifestarem. O mesmo critério teria sido seguido pelo presidente da Câmara e um grupo de senadores.
É claro que em 2020, e no início deste ano, houve quem protestasse. Vozes isoladas da comunidade médica e científica, de intelectuais, jornalistas etc. se fizeram ouvir, sem serem capazes, porém, de deter o morticínio. A novidade recente foi a reação coletiva de economistas, um setor da elite empresarial e financeira, além de políticos, contra as consequências da desastrosa gestão da pandemia a cargo do Ministério da Saúde. Um setor influente da sociedade brasileira finalmente reagiu à calamidade em curso, pela qual o desgoverno federal e amplos setores insensatos da população devem responder. A reação foi positiva, sem dúvida, embora tardia, incapaz de fazer o tempo retroceder, ressuscitar os mortos, e ter efeito ainda desconhecido.
O que ocorreu e persiste é a crônica de uma calamidade anunciada cuja responsabilidade final é de você sabe quem. Desde a posse do atual desgoverno, em janeiro de 2019, não faltaram demonstrações de inépcia da parte do Poder Executivo, sem qualquer esboço de intervenção corretiva. A partir de 2020, assistimos ao espetáculo macabro da pandemia regido por quem não tem qualificação para o cargo de presidente da República. O resultado aí está e o preço da complacência com os desatinos não para de aumentar.
Pandemia e desgoverno da República afetam também, de várias formas, a atividade cinematográfica no país. Projetos independentes continuam paralisados, a mão de obra técnica e artística vive na incerteza e sobrevive com dificuldade, salas de cinema voltaram a ser fechadas e estreias foram adiadas. O cinema brasileiro teve, porém, ao menos uma vitória ao ver a cota de tela, mecanismo que possibilita a exibição de filmes nacionais, reconhecida como sendo constitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Faltam, porém, condições para produzir.
Meu Pai, sutil alteração para pior do título original – The Father (O Pai), 2021 – é um dos lançamentos previstos para tela grande que acabou adiado. O tema do filme – perda da memória – é dotado de potencial para ter repercussão entre nós neste momento que nos cabe não esquecer jamais. Nas palavras do diretor Florian Zeller, consagrado dramaturgo francês, ele “nunca quis que o filme fosse apenas uma história… Tinha que ser a experiência do que poderia representar perder tudo, inclusive o próprio rumo”. Trata-se de “um quebra-cabeça em que faltam várias peças”. A dúvida entre o que é real, ou não, é deliberada: “Você deve duvidar do seu próprio entendimento.” Para Zeller, o “cinema é um lugar para fazer perguntas, não para dar respostas”. Com relação à pandemia, ele considera que “é cedo demais para dizer de que modo… afetará sua escrita, se é que afetará”, embora o lockdown o tenha, de fato, inibido de maneiras que ele não tinha previsto: “Ser criativo depende de projetar alguma coisa no futuro – e o futuro era tão incerto que eu me tornei incapaz de sonhar.” (entrevista disponível em https://www.theguardian.com/film/2021/mar/04/florian-zeller-father-anthony-hopkins-miracle-olivia-colman).
Meu Pai estará disponível para compra, em 9 de abril, nas plataformas Now, ITunes (Apple TV) e Google Play, e a partir de 28 de abril também para aluguel nessas mesmas plataformas, além da Sky Play e Vivo Play. O filme é baseado na premiada peça homônima de Zeller, encenada no Brasil, em 2018, com Fulvio Stefanini interpretando o pai. No cinema, o papel principal está a cargo de Anthony Hopkins; Olivia Colman faz sua filha Anne; o roteiro é assinado por Christopher Hampton e Zeller.
Meu Pai está indicado ao Oscar em seis categorias: Melhor Filme, Melhor Ator para Anthony Hopkins, Melhor Atriz Coadjuvante para Olivia Colman, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Design de Produção. Está previsto que a cerimônia de premiação, marcada para 25 de abril, será presencial e seguirá os protocolos e orientações propostos pela Organização Mundial da Saúde.
O cineclubista, cinéfilo e cineasta Bertrand Tavernier morreu aos 79 anos, quinta-feira passada, 25 de março. Ele presidia o Instituto Lumière, localizado na Rue du Premier Film (Rua do Primeiro Filme), em Lyon. Tavernier “não era um homem de manias e nervosismo”, escreveu Véronique Cauhapé no Le Monde, “mas de paixões e raiva. Que se fez ouvir na hora de denunciar a tortura durante a guerra da Argélia, defender a legalização dos migrantes sem documentos, combater a Frente Nacional e o mau destino reservado aos subúrbios. Foi também militante em defesa da exceção cultural francesa, e na luta pelo respeito aos direitos autorais.” O artigo termina dizendo que “Tavernier, o cineasta, sempre se manteve discreto sobre sua vida privada. Este grande falador tímido que odiava olhar para si mesmo, analisar-se e falar de si, preferia dirigir a sua atenção – e a dos outros – para aqueles seres humanos que o sofrimento não poupou, esses desconhecidos cujos segredos, sem deixar nunca de intrigá-lo, sempre inspiraram seus filmes.”
Guardo lembrança especial de um dos filmes de Tavernier – Por Volta de Meia-Noite (‘Round Midnight, 1986), que não revejo há muitos anos. No elenco, Dexter Gordon e seu saxofone; e Herbie Hancock, no piano, respondendo também pela trilha musical que lhe rendeu um Oscar.
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Dia 4 de abril, domingo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Joel Pizzini no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Zimba, mais recente filme de Pizzini, estreia dia 14 de abril na Mostra Competitiva da 26ª edição do É Tudo Verdade que terá lugar de 8 a 18 de abril. O documentário focaliza a trajetória do ator e diretor Zbigniew Ziembinski (1908 – 1978), responsável pela montagem de Vestido de Noiva, em 1943, marco do teatro moderno brasileiro. Narrado na primeira pessoa, Zimba recupera atuações de Ziembinski no teleteatro, em novelas e no cinema.
Por motivo alheio à nossa vontade, a conversa com Ruy Guerra, que chegou a ser anunciada aqui na coluna, foi cancelada. Lamentamos ter sido impedidos, contra nossa vontade, de receber Ruy.
O acesso à conversa com Pizzini, no próximo domingo, 4 de abril, no programa #DomingoAoVivo, pode ser feito através do link https://youtu.be/VY2A3ONxK9I.
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Texto atualizado no dia 1º de abril às 9h54.
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