Maria com crianças da etnia Yudja (Juruna), na aldeia Tubatuba, no Xingu - Foto: acervo pessoal/Maria Lins
“O Xingu dá outra dimensão do que é a vida”
Jornalista que virou enfermeira relata o trabalho contra a Covid nas aldeias, a vacinação e a luta para desmentir boatos sobre o imunizante
Hoje posso dizer: vou para o Xingu com a maior felicidade do mundo. Mas eu não sabia que seria assim nas primeiras semanas da minha graduação, em 2014, na Escola Paulista de Enfermagem, na Unifesp. Até que Karine Cardoso, à época estudante do terceiro ano, entrou na sala para nos apresentar o Projeto Xingu, o mais antigo projeto de extensão universitária do país junto a povos indígenas, coordenado pela médica sanitarista Sofia Mendonça. Fiquei encantada.
Comecei a frequentar os encontros do grupo e a conhecer o trabalho da Escola Paulista de Medicina, que desde 1965 atua no Território Indígena do Xingu, como o antigo Parque é chamado por reivindicação das dezesseis etnias que vivem ali. Nos quatro anos de faculdade, foi tudo meio de longe. Já formada, tive enfim a oportunidade de ir para o Território pela primeira vez, no nordeste do Mato Grosso, na porção Sul da Amazônia brasileira. Vivi um despertar. Conviver ainda que brevemente com os povos originários de forma tão coletiva e integrada à natureza nos dá outra dimensão do que é a vida. Ou melhor, nos mostra de fato a vida como ela é.
Jamais viveria esse momento se em 2013 não tivesse decidido deixar de ser jornalista para me tornar enfermeira. Tinha fechado um ciclo. A motivação, a curiosidade e o respeito pela história do outro são os mesmos, mas sentia falta de exercitar o cuidar com mais conhecimento. Virar enfermeira não é algo que acontece assim, da noite para o dia. Fiz o Enem e o vestibular da Unifesp, que naquele ano ainda era misto. Ao olhar a lista de aprovados, fiquei emocionada. Meu filho Pedro, então com 14 anos, foi sutil: “Ousado, mãe.” Comecei o curso em 2014 com aula o dia inteiro. O primeiro ano foi dureza, mas com a ajuda de colegas até 30 anos mais novos do que eu e a orientação paciente dos professores segui adiante. O último ano foi dividido entre um estágio supervisionado no Centro Obstétrico, do Hospital São Paulo, e outro em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na Zona Sul da capital.
Viajei para o Xingu pela primeira vez em maio de 2018, no ano seguinte à formatura. Como enfermeira voluntária, fiz parte da equipe de Atenção à Saúde da Mulher Indígena, que coleta exames para ações de prevenção e rastreamento de câncer de colo de útero. A entrada “em área” aconteceu junto com a equipe da vacina contra a gripe nas aldeias do Baixo Xingu, no Norte do Território. A região é habitada pelos povos Kawaiwete (Kaiabi) e Yudja (Juruna), com uma população de quase 2 mil indígenas distribuídos em 47 aldeias. Tem como base o Polo Diauarum. Chegar até lá é uma odisseia. Avião, ônibus, carro, barco. Saindo de São Paulo, somadas as horas de viagem, dá quase um dia.
Tudo era muito novo para mim, mas algo me conectava àqueles povos, como se eu já os conhecesse de longo tempo. A atuação e a vivência nas aldeias vêm garantidas por aqueles que por lá passaram e estabeleceram uma relação de confiança com os indígenas em um trabalho baseado nas melhores evidências e no respeito à sua cultura, aos saberes tradicionais e às práticas de pajés e raizeiros. Nas duas primeiras entradas, como integrante da equipe de Saúde da Mulher, atuei nas aldeias do Sobradinho e do Tuba, divisão pelos braços do rio. Já na pandemia do novo coronavírus, fiz parte da equipe que foi aplicar a segunda dose da vacina contra a Covid-19 em aldeias do Guarujá e do Tuba, coordenada em campo pela enfermeira Karine Cardoso, ainda uma estudante lá no início do texto. A ação integrava a rede de enfrentamento à doença, formada pela Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), pelo Projeto Xingu, pelo Instituto Socioambiental (ISA), pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei Xingu), unidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS, com sede em Canarana.
A recepção em cada aldeia – conheci mais de quarenta nas três viagens – foi sempre calorosa. Nessa última viagem, tivemos de lidar com os protocolos de distanciamento. Algo difícil. Para nós e para eles. Dá sempre vontade de cumprimentar, abraçar quem já conhecemos, de brincar com as crianças. Mas todos sabiam que era um cuidado essencial. E descontavam a falta de contato físico com a fala. As rodas de conversa se estendiam por horas. Todo o trabalho nas aldeias conta com a ajuda preciosa de indígenas que integram a equipe e ajudam na tradução das línguas kaiabi e juruna.
A equipe se apresentava, falava sobre a vacina, reforçava cuidados preventivos e dava relatos sobre a situação de colapso nas cidades, com hospitais sem vagas e milhares de mortes. Os indígenas contavam como mantinham o isolamento e a quarentena nas aldeias e faziam muitas perguntas sobre as fake news que não param de chegar até eles. Todas nocivas, mas algumas mais cruéis pelo impacto que causam – como as que dizem que os indígenas estão sendo usados como cobaias de uma vacina nova, ou que as pessoas imunizadas podem virar bicho. Na cosmologia de muitos povos, os animais são como seres humanos e um pode virar mesmo o outro. Não fosse o vínculo tecido ao longo de mais de 50 anos pelo Projeto Xingu, seria impossível desconstruir toda a mentira.
Não importa o tamanho da aldeia, nem onde ela fica. A equipe da vacina vai até lá. Para chegar até a Vila Nova, no Guarujá, o barco a motor ficou na margem do Xingu, atravessamos a pé um trecho alagado, depois pegamos uma canoa a remo para transpor uma lagoa e caminhamos entre roças de mandioca, milho e amendoim até alcançar a aldeia – onde vacinamos três indígenas. Na Tubatuba, à beira do Xingu, o número de vacinados chegou a 84. Nossa equipe percorreu 23 aldeias e só em uma delas enfrentou uma recusa total. O cacique, evangélico, que já havia recusado a vacina na ação da primeira dose, manteve posição, mas não houve impedimento para imunizarmos as crianças contra outras doenças. A meta para vacinação contra a Covid-19 no Baixo Xingu é 882 pessoas, acima de 18 anos. Somadas todas as ações, 709 indígenas receberam a primeira dose – 588 deles já receberam também a segunda.
Os dias de trabalho vão de sol a sol. Intensos, mas tão gratificantes que o cansaço é adiado para o final do dia. Do combustível para os barcos à rede de frio para manter as vacinas, tudo funciona quase à perfeição em ação conjunta com parceiros e lideranças indígenas. Em um dia normal, de duas a três aldeias são visitadas com roda de conversa, vacinação e vigilância em saúde. Além da imunização prevista, a equipe faz o acompanhamento do crescimento de crianças e atende gestantes, doentes crônicos e a demanda espontânea. Todo minuto é aproveitado para fazer prevenção e promover saúde.
Ponto alto no dia, os almoços sempre acontecem em uma das aldeias, feito com carinho pelas mulheres indígenas. A troca de cuidado e de saber é constante. A comida tradicional tem muita caça, pesca e beiju de tapioca. Outro ritual concorrido é o Moitará, um sistema de troca de presentes. Quem entra em área sempre leva linha de algodão, miçanga, anzol e outros utensílios para poder participar. De uma aldeia para outra, a viagem pelos rios e igarapés é o momento de renovar as energias mesmo debaixo de temporais ocasionais, como aconteceu em minha entrada mais recente, agora em março. O Xingu, sob qualquer tempo, é um dos lugares mais lindos que já conheci na vida.
As noites são sempre especiais. A equipe volta para o Polo ou para a aldeia que serve de base, guarda todo o material, troca o gelo da caixa de vacinas para manter a temperatura adequada e começa outra rotina. Hora de banhar, como falam os indígenas, de fazer a comida, conversar sobre a vida e olhar para o céu em toda sua plenitude pela inexistência da poluição luminosa. A Via Láctea se estende sem limites e ficamos a descobrir onde estão as constelações e onde estamos nós. No Xingu, se dorme cedo. A rede embala o sono, e a vida segue o ritmo ditado pela natureza e pelo trabalho a ser feito no dia seguinte.
No último dia, aproveito a viagem de barco até a “beira”, onde o carro nos espera, para pedir aos espíritos do Xingu que me tragam de volta outra vez. E outra vez. E outra vez.
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