Renato Russo: num país assombrado pelo neofascismo religioso, ele deixaria que o Cristo do qual falava se confundisse com o que a política anda fazendo dele? CREDITO: LAMBUJA_2021
Saudades do quê?
Renato Russo, o rock brasileiro e o bolsonarismo
Michel Laub | Edição 180, Setembro 2021
Existe um fenômeno curioso no YouTube. Nos vídeos de rock/pop nacional dos anos 1980-90, por mais irrelevantes que sejam a canção e o artista, os comentários costumam celebrá-los como emblemas de uma época de ouro, quando o cenário musical do país ainda não estaria tomado por marketing e vulgaridade estética. “Como pode tanta música legal numa década só?!!!”, pergunta um desses palpiteiros depois de ouvir Transas e Caretas (1984), do Trio Los Angeles. “As pessoas realmente se divertiam”, sentencia outro na página de um playback de Meu Ursinho Blau Blau (1983), do Absyntho, apresentado no programa da Angélica. “Hj VC vê no alta horas o cantor tá cantando os jovens tudo parado, lesados, parecem zumbis, congelados, só se divertem se tiver bebidas e drogas.”[1]
À primeira vista, trata-se de gosto pessoal. Ou de nostalgia. O que inclui, em alguns casos, um velho hábito da meia-idade: confundir a própria decadência com a decadência objetiva do mundo. Mas não haveria outro sintoma aí, o sentimento cultural regressivo que vira um posicionamento político? Comecei a pensar a respeito ao notar como os internautas avaliam o legado de Renato Russo, líder da banda Legião Urbana e figura central da minha adolescência, em faixas que vão de Será (“para lavar os ouvidos com tanta sujeira que é produzido hoje”) a Pais e Filhos (“como eu queria voltar no tempo em que o mundo ainda era bom”). Ou em comentários que falam de ideologia, sexualidade, comportamento: “Já zoava os jovens pseudo-revolucionários nos anos 80” (em Geração Coca-Cola), “essa música […] fala sobre a Venezuela de hoje” (em La Maison Dieu), “gay sem mimimi” (em Que País É Esse?), “aí me chamam de homofóbico pq critico o tal do cantora Pablo” (em Meninos e Meninas).
É claro que há de tudo nesses posts: zoeira, burrice, má-fé e até debates com ideias razoáveis, envolvendo fãs jovens e velhos, de esquerda ou da direita moderada. Mas para o que interessa aqui valem apenas os juízos vindos – ou que parecem vir, ou que não seria estranho se viessem – dos que têm posições reacionárias sobre costumes. Ou seja, dos que hoje chamamos de bolsonaristas. A princípio, o entusiasmo deles com a Legião Urbana é incompatível com o espírito da banda – que, ao menos no início da carreira, na transição entre a ditadura militar e a Nova República, fixou-se no imaginário da juventude como expressão de uma postura política contestatória, a favor da liberdade e da aceitação de diferenças.
Só que talvez não seja tão simples. O inconformismo não é um valor em si, e seus alvos mudam com o tempo. O grito antissistema de uma letra como Que País É Esse?, composta em 1978 e gravada em 1987, com os célebres versos Nas favelas, no Senado/sujeira pra todo lado, pode acabar na boca de um democrata reformista ou na de alguém que prega a intervenção militar em 2021. No caso de Renato Russo, é tudo apenas uma questão subjetiva, como ocorre na interpretação de qualquer texto? Ou haverá algo em seu trabalho que fala de perto ao fã retrógrado – e o que lemos nas mensagens do YouTube faz mais sentido do que queremos reconhecer?
Para responder a essas perguntas, é inevitável comparar a trajetória de Renato com a de dois artistas que têm traços em comum com ele e viraram símbolos da direita cultural. O primeiro é Lobão, cuja carreira se firmou atacando instituições poderosas nos anos 1980 e 1990 (a Rede Globo, a indústria fonográfica) e deu uma guinada que surpreendeu a muitos nos 2010 – década que ele inaugurou debochando das vítimas da ditadura (ao definir os torturadores como “caras que […] arrancaram umas unhazinhas”) e encerrou apoiando Jair Bolsonaro.
Nesse processo houve senso de oportunidade (porque o radicalismo antiesquerda já era moda na época da sua conversão) e algo entre a ignorância e a omissão malandra na escolha de Olavo de Carvalho como guru tardio (o polemista já era quem sempre foi em textos do fim dos anos 1990). Mas, sem que esses fatores se anulem ou excluam uma parcela de sinceridade, incluindo aí o rompimento recente de Lobão com o governo que ajudou a eleger, há um elemento que não variou tanto da juventude para cá. Da parceria com Cazuza em Mal Nenhum, de 1985 (Eu não posso causar mal nenhum/a não ser a mim mesmo), a O Que É a Solidão em Sermos Nós, de 2016 (Tempestade, sonho, dor e solidão, o que é ser só), o cantor sempre emulou em suas letras um espírito individualista, de um outsider em conflito contra algum tipo de matriz coletiva opressiva ou hipócrita, o que ganhou sentido político direto pelo espelhamento com uma biografia tumultuada. Vida e obra se fundem num resultado que às vezes foi original, porque idiossincrático, e portanto imune a certos clichês engajados de esquerda, e às vezes caiu em outro lugar-comum – o do ressentimento do artista isolado no próprio ego.
O hábito de procurar supostos consensos para atacá-los traz esse risco. Um traço tão típico da juventude vira outra coisa na meia-idade, inclusive nostalgia da inquietude, a recompensa narcísica de se ver como herói de antigas batalhas culturais e morais. Isso basta para aproximar Lobão do tiozinho do YouTube tentando salvar o mundo da “ditadura do politicamente correto”? Com mais de 50 anos no início dos 2010, e talvez entediado na esteira de suas últimas ideias relevantes – o disco A Vida É Doce, de 1999, e a revista OutraCoisa, lançada em 2003 –, o cantor também pode ter sido atraído pelo sentimento regressivo, aliado a uma aposta no mercado da rebeldia: dobrar as fichas para buscar uma nova audiência formada intelectualmente por posts e memes de direita – para a qual não há paradoxo entre o comportamento de manada e a celebração do “pensamento livre”, do “espírito independente”.
Se é um erro analisar a obra de Lobão separada de sua biografia, o mesmo se pode dizer com relação a Renato Russo. O líder da Legião Urbana também frequentou um noticiário agitado desde que o primeiro disco da banda, de 1985, ainda tributário de uma estética e atitude punks, transformou-o numa das principais vozes da música de protesto de sua geração. Ao ouvir Mal Nenhum lá por 1987, ano em que Lobão foi preso pela primeira vez por porte de maconha, era inevitável associar a canção ao tema das drogas. Assim como ouvir algumas das composições de Renato ganhou outro significado depois do célebre show de Brasília, em 1988, quando ele foi acusado de desrespeitar a plateia e ser corresponsável pelo quebra-quebra ocorrido depois do espetáculo: versos como A violência é tão fascinante/e nossas vidas são tão normais, de Baader-Meinhof Blues (1985), música cujo título faz referência a um grupo terrorista alemão de esquerda dos anos 1970, grudaram-se à imagem de artista imprevisível, às vezes agressivo e autodestrutivo, que seria reforçada por outros episódios e o acompanharia até a morte.
O romantismo trágico, tão conhecido do rock numa linhagem que vai de Janis Joplin a Kurt Cobain, é sempre biográfico. Nas diferentes fases da carreira de Renato, que vai trocando a crueza punk pelo tom mais pessoal em álbuns como Dois (1986) e As Quatro Estações (1989), essa tradição ajudou a tornar as suas letras um espelho daquilo que o afligia fora delas – sua dependência química, suas crises depressivas. O que se sabia da pessoa física do compositor era indissociável de versos que tratam de uma antiga tentativa de suicídio em Índios, de 1986 (Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda), de alcoolismo em A Fonte, de 1993 (Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim), da proximidade da morte por Aids em Natália, de 1996 (Vamos falar de pesticidas/de tragédias radioativas/de doenças incuráveis/vamos falar de sua vida).
Não há como ser autobiográfico sem tocar nas questões identitárias. A rebeldia alimentada pela fusão de vida e obra não é neutra nesse aspecto, o que evidencia um paradoxo característico do rock nacional dos anos 1980. Havia pouquíssimas mulheres entre os expoentes do movimento, pouquíssimos negros, pouquíssimos representantes das periferias ou de fora das grandes capitais. O protagonismo que essa geração teve ao pregar a subversão do establishment só foi possível, quem sabe, porque os meios de produção e divulgação musicais – ou seja, o próprio establishment – limitavam as opções da plateia.
Num país como o Brasil, o perfil sociocultural de porta-vozes da juventude como Lobão e Renato, dois homens brancos vindos da classe média instruída, não deixa de ser um dado de época. Basta ver o que ocorreu quando o cenário musical dos anos 1980, feito de poucas rádios e emissoras de tevê, consumo restrito a discos e ingressos caros de shows, foi democratizado. Isso não apenas aumentou o alcance de gêneros populares e festivos (o pagode, o axé, o sertanejo universitário), como alterou a dinâmica do que se poderia chamar de segmento contestatório: numa sequência que se inicia no engajamento político dos Racionais MC’s e vai até as afirmações comportamentais de Anitta e Pabllo Vittar, o perfil dos artistas nos quais o grande público se espelha para confrontar valores estabelecidos se tornou mais diverso, menos dependente das estruturas tradicionais de mercado.
Nada disso elimina o valor estético de qualquer das obras citadas, a possibilidade de algumas delas serem a exceção artística em meio à regra cultural. Mas a ideia de um poeta cujas letras “traduziam o que todos queriam ouvir” (palavras do Jornal Nacional no dia da morte de Renato) não existe sem o contexto histórico. Assim como a bossa nova foi um fenômeno da Zona Sul do Rio de Janeiro, o que não diminui seus muitos méritos, mas relativiza seu aspirado status de música-símbolo de um país tão mais amplo, desarmônico e brutal, o rock dos anos 1980 e início dos 1990 tem seus limites representativos – e isso dá ao movimento um traço sociológico localizado. A nostalgia acrítica da suposta universalidade dessas obras, que na opinião de um comentarista de Baader-Meinhof Blues no YouTube retrataria “a realidade e os ideais de uma nação”, ao passo que as músicas posteriores de rappers, funkeiros e assemelhados/as apenas “poluem a mente dos jovens”, é uma pista sobre o que essa visão restritiva – e eventualmente elitista – celebra na internet.
Conclusão na mesma linha pode surgir da leitura de um recurso central na obra da Legião Urbana: o uso de múltiplas vozes. Na discografia da banda há letras narradas por um cavaleiro medieval (Metal Contra as Nuvens), por um anjo (Os Anjos), por um vestibulando (Química). Com frequência são vários personagens que se alternam (Pais e Filhos, Aloha, O Descobrimento do Brasil), ou uma terceira pessoa que em determinado trecho vira primeira (Eduardo e Mônica, Faroeste Caboclo, Clarisse).
Por coincidência ou não, foi essa técnica que consagrou outro nome oitentista visto agora como neorretrógrado: Roger Moreira, líder do Ultraje a Rigor. Não vou perder tempo com as manifestações recentes da figura, entre elas criticar uma mãe por ter três filhos autistas ou dizer para o escritor Marcelo Rubens Paiva, cujo pai foi morto nos porões do doi-Codi, que os militares torturaram apenas quem estava “fazendo merda”. Prefiro me ater ao que Roger já dizia em seu trabalho lá atrás – o que desmente, como ocorre com Lobão, a ideia de uma virada radical da juventude para a meia-idade. É justamente por causa das múltiplas vozes, do sentido que elas fazem no conjunto orquestrado por quem as cria, que as letras do (bom) álbum de estreia do Ultraje, Nós Vamos Invadir Sua Praia (1985), soam como expressão antecipada dos valores nostálgicos do YouTube.
O tom geral do disco é também marcado por um humor regressivo, de alguém perplexo diante de um mundo que se transforma numa velocidade que o eu lírico não consegue acompanhar, em faixas como Rebelde Sem Causa (Meus dois pais me tratam muito bem […]/como é que eu vou crescer sem ter com quem me revoltar?) e Ciúme (Eu quero levar uma vida moderninha […]/Não ser machista e não bancar o possessivo […]/Mas eu me mordo de ciúme). Claro que a opinião de Roger não se manifesta literalmente em um verso ou outro, mas é interessante dar uma boa olhada no todo: imaginar a motivação de alguém que escreve letras assim no período entre o ocaso da ditadura militar e o início da redemocratização. Nós Vamos Invadir Sua Praia é um disco de humor supostamente anárquico, que foi visto como sátira contra tudo e todos, mas cuja mobilidade dos alvos é menos corrosiva do que aparenta – menos corajosa num país tão acostumado a ignorar, desprezar e debochar dos mais fracos. Rimos da elite exclusivista invocada pelo pobre na faixa-título (Daqui do morro dá pra ver tão legal/O que acontece aí no seu litoral) ou dos hábitos desse pobre (Precisando a gente se espreme/trazendo a farofa e a galinha)? O indígena que tira sarro do capitalismo em Mim Quer Tocar (Mim é brasileiro/mim gosta banana) é diferente das caricaturas simplórias de sua etnia em programas de humor da época? E o que dizer do narrador de Se Você Sabia, que engravida (ou quase engravida) uma garota que parece ser menor de idade (Seu pai não é mais criança/e você com essa pança) e põe a culpa nela sem que a música tenha qualquer sinal de ironia?
Talvez o grande exemplo dessa ambiguidade política, que soa premonitória à luz (ou sombra) do que o Brasil é sem pudor em 2021, com Roger endossando um presidente contrário à democracia e aos direitos humanos, seja a música que serve de carro-chefe ao álbum. Por um lado, Inútil sintetiza a revolta da juventude contra um sistema hipócrita, cujos mecanismos de renovação podem ser disfarces para perpetuar o autoritarismo. Por outro, ao criar um narrador falsamente ignorante, cujo discurso expõe as ilusões de um país que nunca investiu em escola e cidadania, mira tanto o referido sistema quanto aqueles que, bem ou mal no horizonte possível da época (o da ressaca da campanha das Diretas Já), estavam tentando fazer alguma coisa na esfera pública: A gente não sabemos escolher presidente/a gente não sabemos tomar conta da gente./ A gente não sabemos nem escovar os dentes […]/Inútil, a gente somos inútil.
Como no caso do Ultraje a Rigor, o empréstimo de vozes alheias não é apenas uma técnica na discografia da Legião Urbana. À maneira de Bob Dylan, o “universal” das músicas da banda nasce de um tom que é ao mesmo tempo genérico e específico, para causar identificação em mais de um tipo de ouvinte – por exemplo, fazendo o adolescente hétero se ver representado em versos gays como os de Daniel na Cova dos Leões, de 1986 (Teu corpo é meu espelho e em ti navego/eu sei que a tua correnteza não tem direção).
Transcender marcas identitárias era um feito nos anos 1980. Em 2021 é diferente. Como ocorreu com Chico Buarque, criticado por algumas feministas por buscar ser uma espécie de ventríloquo das mulheres em suas músicas, Renato Russo seria visto hoje com desconfiança por ter tomado para si o discurso de grupos sociais a que nunca pertenceu? Alguém poderia perguntar: Qual a legitimidade de um filho de funcionário do Banco do Brasil que passou parte da infância em Nova York, a juventude em meio a certa elite cultural de Brasília e a vida adulta como estrela da música ao emular um garoto de favela em Mais do Mesmo, de 1987 (Ei, menino branco/o que é que você faz aqui/subindo o morro pra tentar se divertir?), ou um operário em Fábrica, de 1986 (Quero trabalhar em paz, não é muito o que lhe peço/eu quero trabalho honesto em vez de escravidão)?
O conceito de lugar de fala, seja em sua acepção correta (identificar a origem de quem emite um discurso), seja na deturpação caricata (limitar a criação artística à experiência pessoal de quem a produz), é um dado inescapável do nosso tempo. A despeito da pertinência ou não do uso das vozes alheias, contudo, é possível analisar o que o texto em si diz sobre a ideologia de quem o escreve. Afinal, como ocorre em Nós Vamos Invadir Sua Praia, o poeta lírico dificilmente será o romancista polifônico: quando Renato Russo aparenta sair do próprio mundo para contar histórias emulando sensibilidades diversas da sua, está sempre falando de si mesmo. Não só em relação a fatos biográficos, mas a preocupações éticas que tinha e que, ao contrário do que ocorre com Roger, jamais deixaram margem para ambivalência.
Assim, não é preciso ser muito esperto para perceber que o narrador que descreve uma tragédia em Metrópole, de 1986 (É sangue mesmo, não é mertiolate), está contra aquilo que finge celebrar (Tão emocionante um acidente de verdade/estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre). Ou que, quando o narrador/personagem é condenável, caso do tipo sexista em A Dança (1985), houve o cuidado para que o ouvinte não se identificasse com ele: a letra varia entre a acusação direta feita por um interlocutor (Você não tem ideias, para acompanhar a moda/tratando as meninas como se fossem lixo) e trechos em que esse interlocutor volta para si a reflexão, num mea-culpa que soa como um toque de Renato para o seu público (Nós somos tão modernos, só não somos sinceros/nos escondemos mais e mais).
O resultado é que eventuais ruídos na mensagem não se devem à negligência ou malícia do mensageiro. Pelo contrário, Renato era pródigo em dar broncas no público quando identificava um mal-entendido na interpretação de suas ideias. Numa entrevista ao apresentador Zeca Camargo na MTV, em 1993, ele contou um episódio ocorrido num show durante a execução de A Dança: “É uma música […] sobre uma porção de coisas horrorosas, sobre machismo. E, de repente, tá lá o cara e dá um super empurrão na menininha, que eu fiquei assim: ‘O que é isso, meu?’” A mesma perplexidade, que se converte facilmente em confronto, comparece no vídeo do tumulto no show de 1988 em Brasília. A par da superlotação que tornou tenso o clima da apresentação, das falhas de segurança, das bombinhas que o público atirou na banda e de um fã que invadiu o palco para agredir o cantor, um rastilho de pólvora também passou pelas falas com que Renato lamentou não estar tendo o feedback que imaginava naquela “cidade babaca”.
Tanto quanto “poeta universal”, o líder da Legião Urbana encarnou a figura do guru, do guia, e sua ascendência sobre a juventude era também moral – atravessada por um misto de afagos e broncas, de identificação e estranheza. Em termos políticos, há algo de autoritário nisso? Qual é a fronteira entre moral e moralismo quando um discurso estético começa a se tornar prescritivo? É um debate que cerca o legado de Renato, especialmente se pinçarmos falas suas a favor de uma ideia genérica de virtude, embalada num formato de autoajuda: “Você pode acreditar que você pode” (declaração à Rede Globo, em 1985); “O importante é você […] ter o coração aberto e […] paz de espírito para […] oferecer um sorriso para as outras pessoas” (Rádio Transamérica, em 1986); “Eu não vou mais deixar as pessoas darem porrada em vocês […], ninguém mais vai oprimir ninguém […], pelo menos hoje à noite” (durante show em Taubaté, 1990).
Uma parte importante do público levou isso tudo ao pé da letra, como se o cantor se resumisse a essa figura messiânica, impoluta. Não acho que seja a melhor leitura, até porque ele mesmo era frequentemente irônico sobre si próprio, usando um humor autodepreciativo (também) baseado em vozes emprestadas que gostava de imitar. Mas a interpretação literal de suas frases sobre o bem e o belo, inclusive as de parte de suas músicas, não chega a ser uma extravagância. Não está errado dizer, como faz no YouTube um comentarista de Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar (1989), faixa que cita o Evangelho Segundo S. João (Cordeiro de Deus/que tirais os pecados do mundo/tende piedade de nós), que Renato era “muito devoto”. Nem é absurdo o restante do que diz o post, numa projeção coerente com a carolice que essa e outras composições poderiam sugerir: “Acredito que ele escreveu essa letra num genuflexório, apenas para obter a misericórdia daquele que vive e permanece eternamente em nossa memória!”
Se as vozes múltiplas soam como uma única voz moral, eventualmente religiosa, e se segurança moral de matriz religiosa costuma ser o norte dos reacionários brasileiros, como dizer que a internet bolsonarista está tão errada em seu aplauso a Renato Russo? Parece uma lógica simples, e então eu seguiria o texto afirmando que, por vias tortas, inusitadas, o trabalho da Legião Urbana pode ter o mesmo destino político dos de Lobão e Roger: a mesma ambivalência encontrada em Nas favelas, no Senado/sujeira pra todo lado, que permite especular sobre quem se identifica ideologicamente com tais versos no Brasil de hoje, pode ser extraída de Estou do lado do bem/com a luz e com os anjos (1965: Duas Tribos), Só estou aberto a quem sempre foi do bem (Do Espírito), Só a verdade me liberta/chega de maldade e ilusão (Perfeição) ou Disciplina é liberdade (Há Tempos, frase que foi citada pelo general Eduardo Villas Bôas num elogio à… vida na caserna).
Ocorre que nem toda lógica se baseia numa premissa verdadeira. Aqui, o engano é partir de uma ideia genérica de virtude/moral/religião sem considerar – de novo – seu contexto de época. Assim como o rótulo de “universal” ganhou o sentido algo elitista nos anos 1980-90, quem sabe a pregação de Renato tenha sido a que foi porque a realidade de então assim pedia (ou permitia). É olhando para esse passado que dá para apostar: na meia-idade, o compositor não estaria dizendo o que dizem Lobão e Roger. Não só porque era mais culto que os dois, ou porque nunca foi oportunista, condições que em si talvez já bastassem para afastá-lo do canto tosco da sereia bolsonarista, mas também – e justamente – por causa da questão religiosa. Que tinha relação direta com a sua orientação sexual. Foi isso que o motivou a atacar figuras cujo preconceito era menos ameaçador do que o do atual presidente da República – por exemplo, o papa João Paulo II, depois que uma mensagem do Vaticano condenou a homossexualidade em 1992 (“Hitler começou assim”, Renato declarou a respeito na Rádio Transamérica).
De que maneira um bissexual instruído, que fez dessa condição parte essencial de sua obra e postura pública, agiria vendo a fé instrumentalizada para atacar a população LGBTQIA+ no Brasil? É uma pergunta relativamente fácil de responder. A exemplo do que falou sobre o papa, o fã de A Dança ou a plateia em Brasília, não é provável que Renato batesse de frente com o mau uso atual da espiritualidade de suas antigas canções? Dizer “estou ao lado de Jesus e não abro”, como ele fez no Programa do Jô em 1989, tinha um efeito naquela data. Hoje o cenário é outro, e a frase precisaria de um complemento ou porém: num país assombrado pelo neofascismo religioso, algo que não se via no horizonte três décadas atrás, ao menos no grau atual de representatividade e influência, o compositor deixaria que o Cristo do qual falava – o amor cristão do qual falavam suas músicas – se confundisse com o que a política anda fazendo dele?
Há formas e formas de ver o tema da ideologia na vida e na obra de Renato Russo. A relação de seu público com ambas também passa por uma escolha – por aquilo que se quer destacar de um conjunto tão vasto de canções, entrevistas, falas em shows. Nem toda pessoa de fé é retrógrada, haja vista a origem frequentemente revolucionária das religiões, e nem todo guru está tão seguro de si – ou tão preocupado com o culto a si próprio – a ponto de dar um sentido literal ao proselitismo.
Mesmo quando escorregavam em clichês edificantes, as letras do compositor faziam parte de um todo mais abrangente, no qual ele constantemente expunha as próprias dúvidas e contradições. A espiritualidade de Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar, que está em outras músicas de temática semelhante (Monte Castelo, Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto), não precisa ser um discurso dogmático, proferido de cima para baixo: antes de tudo, a letra fala de fragilidade, de quem se mostra tão vulnerável quanto o seu público diante das incertezas emocionais da vida em qualquer idade (e me via perdido e vivendo em erro/sem querer me machucar de novo/por culpa do amor).
É um traço presente em toda a discografia da Legião Urbana. Mesmo a fase de protesto dos anos 1980 é pontuada aqui e ali por músicas que são um contraponto à força convicta do discurso contestatório. Geração Coca-Cola, hit político do primeiro álbum da banda (Somos os filhos da revolução/Somos burgueses sem religião/Somos o futuro da nação), está a apenas algumas faixas de distância de Teorema (Não vá embora, fique um pouco mais/ninguém sabe fazer o que você me faz). Faroeste Caboclo, épico sobre a violência/desigualdade brasileira que está no terceiro disco (Não entendia como a vida funcionava/discriminação por causa da sua classe e sua cor), é seguida por Angra dos Reis (é uma dor que dói no peito/pode rir agora/que estou sozinho). Um extremo alimentava o outro na percepção de quem acompanhou essa produção na adolescência. Até Baader-Meinhof Blues, que fala da violência tão fascinante e da “justiça desafinada” que “é tão humana e tão errada”, abre espaço para um narrador que, “andando nas ruas”, tomado pela solidão, imagina alguém “dizendo o meu nome”: Já estou cheio de me sentir vazio/meu corpo é quente e estou sentindo frio.
Igualmente, canções como Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar não têm uma chave única de leitura. Pode-se dar ênfase à tal imensa luz do ser divino, o que reforça uma figura de autoridade misteriosa e incontestável – análoga à própria figura do guru –, e pode-se prestar atenção no ser humano que escreveu os versos, incluindo aí o que se sabe sobre sua vida para além de um eu lírico que fala sobre “amor” e “erro”. Declarar-se bissexual em público nos anos 1980 e 1990, quando o estigma da Aids acrescentava preconceito à tradicional homofobia brasileira, era mais do que um gesto de coragem: era um discurso progressista em si, uma luta por aceitação tão importante quanto a busca por soluções estéticas nos limites de uma canção pop. Na confusão típica da adolescência, iniciando a vida intelectual, social e sexual, o que se agravou pela ideia de afirmação masculina que nos era (e é) imposta no país, minha identificação com essa postura e essa obra teve caráter emancipador: mesmo eu não sendo gay e tendo uma vida relativamente pacífica de classe média, a experiência de acompanhar os passos de Renato Russo foi um abrigo contra as exigências opressivas do meu entorno, a chance de descobrir um mundo mais complexo do que me era permitido ver até então.
Qualquer análise histórica/cultural tem algo de anacrônico, por fazer perguntas do presente para entender o passado. Na via inversa, conclusões sobre o passado também podem mudar o presente – e aí deixa de haver anacronismo, porque estamos falando do aqui e agora. No caso de Renato Russo, é curioso como o aspecto menos engajado de seu trabalho, ao menos nos termos ideológicos dos anos 1980, acaba sendo o de maior alcance político hoje. Que País É Esse? pode ser cantada com convicção por um bolsonarista, assim como alguns dos versos da fase mais pessoal do compositor. Mas é no último caso que o bolsonarista estará mais errado.
Canções que falam de fragilidade individual são um exercício de tolerância coletiva. Na melhor hipótese, e se estivermos abertos para tanto, elas nos ajudam a entender nos outros os defeitos e paradoxos que existem em nós mesmos. Tudo isso pode soar ingênuo, até cafona, na comparação com a sátira do Ultraje a Rigor ou a porra-louquice de Lobão. Mas no país de Jair Bolsonaro talvez seja o oposto: uma obra que se propõe a elaborar esteticamente ideias assim, e que em vários momentos consegue um resultado de rigor e beleza na tarefa, pode ser um ato de recusa a uma cultura que prega a força bruta, o salve-se quem puder.
Num texto que escrevi para a piauí_108 (O oráculo divergente, setembro de 2015), comentei que a frequência com que ouvia Legião Urbana foi diminuindo com os anos até quase desaparecer. Isso mudou com a eleição de 2018, com a catástrofe do primeiro ano do atual governo, com o massacre desencadeado pela Covid-19. Não só porque é natural se apegar ao passado quando o presente se mostra tão sem saída, e aí talvez eu tenha algo em comum com os comentaristas do YouTube, mas porque esse passado voltou a oferecer algo de vivo – algo de potente diante da terra arrasada ao nosso redor. Nesse sentido, o legado de Renato Russo é uma obra em andamento. A experiência de ouvi-lo soa constantemente renovada – sem deixar de ser, em alguns aspectos, ao menos para mim, aquilo que sempre foi.
[1] A sintaxe, a grafia e a pontuação das citações foram mantidas tais como estão registradas no YouTube.