ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Extrafresco
Azeite gourmet brasileiro busca um lugar nas gôndolas
Rafael Tonon | Edição 180, Setembro 2021
Depois de nove dias a bordo do navio a vapor Marcilia, a portuguesa Maria da Conceição Ferreira Teles chegou ao Brasil com os filhos, Jorge e Josefina, na primavera de 1935. No desembarque, além de cuidar das crianças e da bagagem, ela precisou zelar com toda atenção por uma encomenda do marido: alguns ramos de oliveira, extraídos com as raízes.
Emídio Ferreira dos Santos havia chegado dois anos antes ao Rio de Janeiro, onde arrumara um emprego de montador de caixas de madeira. Certo dia, foi convidado a trabalhar numa fazenda em Maria da Fé, cidade mineira encravada na Serra da Mantiqueira, e não pensou duas vezes. Vislumbrou na proposta uma chance de subir na vida, além de se estabelecer com a família num lugar aprazível. Afinal, ele era um homem ligado ao cultivo da terra quando vivia em Santiago de Besteiros, aldeia ao Norte de Portugal. Além disso, estava curioso para confirmar se os ramos de oliveira de seu país natal se dariam bem em terras tropicais, pois não via a hora de poder fabricar o azeite do qual sentia tanta falta.
Muito antes de Ferreira dos Santos, outros desbravadores haviam trazido mudas de oliveira ao Brasil, mas o cultivo nunca prosperou, e os bons azeites continuaram a ser importados. Segundo alguns historiadores, não prosperou porque a Coroa portuguesa, ao notar a boa adaptação da planta nas terras da colônia, interrompeu logo os plantios para evitar uma possível concorrência com seus famosos azeites. O cultivo no Brasil também não foi para a frente por causa da suspeita de que o clima tropical não era tão favorável como o das terras ao redor do Mar Mediterrâneo, onde as oliveiras reinam absolutas.
Em Maria da Fé, contudo, as mudas de Ferreira dos Santos progrediram. As boas condições de relevo, umidade e clima da cidade – que é uma das mais frias de Minas Gerais, tendo chegado a -4,2ºC em 1º de julho passado – fizeram as oliveiras florescer em boas condições. Com o passar dos anos, o cultivo se espalhou por vários pontos da cidade, sempre pelas mãos do português. Até mesmo na frente da prefeitura e na praça principal ele plantou algumas, que estão lá até hoje.
Embora Ferreira dos Santos não tenha conseguido fazer o azeite que almejava, seu esforço contribuiu para que Maria da Fé se tornasse a sede de um laboratório de pesquisas de oliveiras, numa fazenda doada nos anos 1940 ao estado de Minas Gerais. O local de 113 hectares (sendo 78 de preservação permanente) hoje se chama Campo Experimental Maria da Fé (Cemf) e é propriedade da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). Ali, passou-se a pesquisar melhor o comportamento das oliveiras no Brasil e a desenvolver variedades locais. Foi o Cemf que realizou a extração do primeiro azeite de oliva extravirgem brasileiro, em 2008. O extravirgem tem menor acidez e é o azeite que se aconselha consumir cru. O azeite virgem é indicado para o cozimento de alimentos.
Com o sucesso das pesquisas em Maria da Fé, o cultivo se espalhou por outras partes da Mantiqueira: hoje cerca de oitenta municípios da região se mostram propícios para os olivais, entre eles Andradas e Baependi, em Minas Gerais, e São Bento do Sapucaí e Espírito Santo do Pinhal, em São Paulo.
A produção brasileira de azeite tem apenas 1% do mercado no país. O extravirgem, para conquistar algum lugar nas gôndolas, teve que obter antes o reconhecimento de especialistas internacionais, como ocorreu com o vinho e o queijo gourmet nacionais. O primeiro grande prêmio, em 2018, coube ao Intenso, produzido na Fazenda Irarema, em São Sebastião da Grama, município paulista na região da Mantiqueira. O azeite foi eleito o melhor do mundo na categoria blend suave no concurso New York Olive Oil Contest, nos Estados Unidos.
No ano seguinte, ocorreu um recorde da produção brasileira, com 1,7 milhão de toneladas de azeitonas e 260 mil litros de azeite em geral. Desses, 198 mil litros foram produzidos no Rio Grande do Sul, estado que tem 60% dos olivais do país e as maiores fazendas. O ano de 2019 foi também o mais profícuo em prêmios para os produtores.
Hoje, até mesmo a Bahia, terra do dendê, está se rendendo ao azeite de oliva. Em fevereiro deste ano, foram prensados em Maria da Fé os primeiros 200 litros produzidos em Rio das Contas, na Chapada Diamantina (as oliveiras gostam de grandes altitudes). A Bahia é o primeiro estado do Nordeste a se dedicar ao cultivo profissional de olivais e à produção de azeites.
Para enfrentar a competição no Brasil com os azeites de Portugal, Espanha, Grécia e outros países, os fabricantes insistem no principal valor do produto nacional: seu frescor. Mesmo os azeites vindos da região do Mediterrâneo, onde se produz os melhores do mundo, chegam ao mercado brasileiro algumas semanas após serem engarrafados e já sem o vigor inicial. “Com a produção brasileira temos acesso, pela primeira vez, a azeite extrafresco”, diz o chef Rafa Costa e Silva, do restaurante carioca Lasai.
“O azeite precisa ser entendido como um suco de azeitonas. Quanto mais recente é a produção e o engarrafamento, mais ele preserva suas características sensoriais”, explica Rafael Marchetti, proprietário da Prosperato, de Caçapava do Sul (RS), o segundo rótulo mais comercializado no país. Marchetti foi uma espécie de polinizador da olivicultura no Sul. Antes de se tornar produtor, em 2013, ele comercializou mudas de oliveiras que ajudaram a abastecer boa parte dos olivais do Rio Grande do Sul. Hoje, pesquisa mais de sessenta variedades de plantas vindas de países como Portugal, Croácia e Israel. Seu objetivo é desenvolver azeites distintos em aroma, acidez ou intensidade – inclusive a partir de variantes mais raras, como a coratina, original da Puglia, região da Itália.
O Brasil tem se mostrado um terreno propício para novas variedades. A Epamig registrou oito cultivares que sofreram alterações genéticas naturais na interação com nosso clima, criando variantes a partir de espécies vindas da Europa. Em 2008, foi estudada e registrada uma das primeiras, que se originou de uma espécie galego-portuguesa, a Olea europaea L. A variante recebeu o nome de MGS Mariense, mas os pesquisadores preferem chamá-la de Maria da Fé.