ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Meme de carne e osso
Karen Kardasha sonha ir além das redes sociais
João Batista Jr. | Edição 180, Setembro 2021
No dia 30 de julho passado, Renato Shippee, paulista de Bauru, pegou em Guarulhos um voo com destino aos Estados Unidos para um compromisso que misturava farra, relações públicas e muitos likes nas redes sociais. Como tem cidadania norte-americana, Shippee não precisou fazer quarentena no México. Desembarcou direto em Orlando, a convite de Claudia Leitte, que desejava a presença dele no show que ela faria no Mango’s Tropical Cafe. Shippee, porém, não estaria entre o público, e sim ao lado da cantora, no palco.
Quando ele apareceu, foi como se um meme tivesse se materializado para a plateia de quase 2 mil pessoas. De vestido curto e bota de couro de cano alto e salto agulha, Shippee surgiu montado de Karen Kardasha, a personagem que criou em outubro passado no Instagram, com sua maquiagem vibrante e os lábios enormes, resultado da aplicação de um filtro. Shippee/Kardasha foi ovacionado pelas pessoas no Mango’s, muitas das quais deveriam ser fãs das dicas ácidas da personagem sobre comportamento e relações sociais e amorosas.
Para Karen, homem bom é homem rico. Metida, ela? Não é bem assim. O primeiro post da personagem tinha viés político-social – e foi o que a projetou. Fazendo troça com a própria imagem após o uso do filtro, falou: “Estou parecendo aquelas mulheres ricas que votaram no Bolsonaro, demitiram as empregadas e, mesmo assim, dizem que estão sofrendo porque não conseguem ir para a Disney por causa da pandemia.” O meme com a imagem de Karen Kardasha e a frase viralizou, repostado por artistas e influenciadores digitais. Em menos de um mês, a página da personagem no Instagram somava mais de meio milhão de seguidores, entre eles Anitta e Tatá Werneck. Sete meses depois, já alcançava 4,2 milhões, o triplo do que tem o próprio Renato Shippee (1,4 milhão).
O sobrenome da personagem é inspirado no clã Kardashian, que fez das cirurgias plásticas, das investidas nas redes sociais e do reality show sobre suas maluquices familiares um ganha-pão bilionário. O prenome, contudo, tem origem menos fútil. Nos Estados Unidos, “Karen” é uma gíria usada para designar mulheres brancas arrogantes que se acham no direito de diminuir negros e latinos, e até recusar a vacina anti-Covid, alegando liberdade de escolha. “Exatamente tudo o que eu não sou na vida real”, diz Shippee. Mas a gíria é polêmica: há quem a considere sexista e misógina.
Antes de virar um meme, Renato Silva – seu sobrenome original – foi mecânico, obreiro evangélico e professor. Quando tinha 2 anos, seus pais se separaram. O pai rompeu os laços com a família, e a mãe teve que trabalhar como diarista para dar conta da criação dos quatro filhos. Shippee, o caçula, só reviu o pai quando tinha 15 anos. Ao saber que o marido estava à beira da morte, sua mulher reuniu os filhos e foi encontrá-lo. Meia hora antes de falecer, o pai pediu perdão a todos. Shippee tinha curiosidade de revê-lo para saber se tinha herdado dele os traços físicos fortes. “Ele estava pele e osso, eu não consegui me reconhecer nele. Cresci sem a imagem paterna. Mas não posso dizer que ele fez falta: eu não tenho memória dele como pai”, diz.
No lugar do pai, o caçula teve um padrasto, que o proibiu de cursar francês, mesmo após ter ganhado uma bolsa de estudo, porque achava que era “coisa de viado”. Shippee foi obrigado a fazer um curso de mecânica. “Foram os dois piores anos de minha vida. Eu acordava me sentindo um lixo.”
Quando fez 18 anos, Shippee começou a graduação em pedagogia na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru. Foi nessa época que decidiu não suprimir mais seus desejos e entrou em uma sala de bate-papo na internet para conhecer rapazes. Também resolveu abrir o jogo para sua mãe.
A reação foi traumática. Ela disse que, se quisesse continuar vivendo na casa dela, o filho não poderia seguir com aquele tipo de desejo. Shippee fez as malas e foi morar com o namorado, com quem viveu oito anos. Como o parceiro tinha talento para fazer orações que cativavam as pessoas, o casal decidiu fundar uma igreja neopentecostal chamada Deus é Mais. O templo não prosperou.
Depois que a relação chegou ao fim, Shippee conheceu num aplicativo de paquera o norte-americano Todd Shippee, produtor de cinema e publicidade, trinta anos mais velho. O primeiro beijo demorou a acontecer, porque Todd morava em Los Angeles. O Consulado dos Estados Unidos disse “não” e “não” aos dois pedidos de um visto de turista. Todd, então, decidiu vir ao Brasil – e o brasileiro solicitou outra vez o visto, agora na condição de noivo do norte-americano.
No fim de 2016, Renato se mudou para Los Angeles, casou-se com Todd e adotou o sobrenome dele. Fez cursos de atuação, de dança, aprimorou o inglês e foi atrás de trabalho. Conseguiu um posto de figurante no filme Nasce uma Estrela, com Lady Gaga, e uma ponta na série O Assassinato de Gianni Versace, no papel de um assistente da personagem Donatella Versace, interpretada por Penélope Cruz. “Era para eu fazer apenas figuração, mas no set me deram um papel maior. Vibrei”, ele conta.
Ao vivo, Shippee parece mais magro do que nas fotos em que exibe os músculos na internet. No seu perfil do Instagram, consta que ele é vegano, porém no almoço com a reportagem da piauí mandou ver em um espeto de filé-mignon e queijo coalho empanado. “Só como alimento de origem animal quando visito o Brasil, porque aqui tem menos opções”, justificou.
Ele disse ter feito uma rinoplastia e levantado as pálpebras, mas de perto se notam outras intervenções de harmonização do rosto, como o queixo pontudo e o maxilar marcado. Suas feições lembram as do cantor Prince, de quem Shippee é fã. Quando indagado sobre sua idade, ele disse: “32, mas pode errar e colocar 23”.
Até criar Karen Kardasha, ele nunca havia se montado. “Eu jamais tinha subido em salto alto.” Com o sucesso obtido pela personagem, Shippee tenta agora acontecer além das redes sociais. Em julho, lançou a música Amiga Não Julga, com a funkeira Tati Zaqui, e está planejando uma peça de teatro e um filme. Entretanto, nem todos se deixaram seduzir por Karen. “Eu tenho poucos haters, e todos eles são da comunidade LGBTQIA+. Alguns me atacam por pensar que eu, como homem cisgênero, não poderia interpretar uma mulher. Mas o Paulo Gustavo, com a dona Hermínia, fazia o mesmo. Calma, gente!”
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