CREDITO: AYODÊ FRANÇA_2021
O pior cego é aquele que acredita ver
José Almino de Alencar | Edição 180, Setembro 2021
O SONHO INCONSTANTE
Correr a desabalada alegria das estradas
o vento à frente, nos ares do mundo
ao largo das valas profundas
armado dos cinco sentidos
no recorte arbitrário da paisagem
no embolado da arte
ao saber da razão destratada
e na certeza súbita e vã
de esbarrar em um acaso
que fique.
NÃO TEM DE SER
Ainsi périt le duc Richard de Portland,
le dernier lépreux du monde[1]
Auguste de Villiers de L’Isle-Adam
Eu era um vaso que chora
Sem medo da morte
Com medo de tudo
Vazio de lágrimas
Eu era um vaso
E ela insiste
Sempre
E agora
Você é um vaso que chora
Vazio de lágrimas
Com medo da morte
Existe gente assim
São os que inventam a vida
Ela é a graça que salva
Sempre
EU NÃO ME QUERO SENÃO COM DISSIMULADOS[2]
Nem a pena do ser
Apenas
nem tampouco o parecer
sensato
a dor de estar
descansa
como a dor
de amor
nos cotovelos
FEITO UM CEGO
Lontano lontano come un cieco m’hanno
portato per mano.[3]
Giuseppe Ungaretti
O pior cego é aquele que acredita ver.
Tem a superstição do real
e se crê idealista.
TRISTES TRÓPICOS
Chuvas quentes, chuvas recifenses.
Na tepidez dessas chuvas estivais
molhada até os ossos
em doce anonimato
e à mercê do assombro
La eterna miseria que es el acto de recordar.[4]
NÃO PASSA
O passado é
não jaz com os mortos
não deixa rastros.
É súbito como um raio
ou como a morte súbita
intruso fincado na ausência.
E deixa-se esquecer.
[1] “Assim pereceu o duque Richard de Portland, o último leproso do mundo.” No conto Le Duc de Portland em Contes Cruels.
[2] Machado de Assis, em Quincas Borba.
[3] “Longe longe como um cego me levaram pela mão.” No poema Lontano.
[4] Virgilio Piñera, no poema La Isla en Peso.