ILUSTRAÇÃO: CARVALL
Na crise climática, Congresso tira o corpo fora
Metade dos parlamentares se diz muito preocupada com o meio ambiente no Brasil, mas só 7% acham que seus colegas têm o mesmo interesse; maioria atribui a crise ao governo
No Congresso, quando o assunto é meio ambiente, o inferno são os outros. É o que mostra uma pesquisa inédita feita pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) em parceria com a Fundação Getulio Vargas e o Instituto Clima e Sociedade. O estudo, realizado entre fevereiro e maio e divulgado nesta quinta-feira (22), ouviu 159 deputados e senadores a respeito de seu engajamento com pautas de defesa do meio ambiente. Praticamente metade dos entrevistados (49%) disseram ter muito interesse pelo meio ambiente e pela discussão das mudanças climáticas. Outros 45% disseram ter algum interesse. No entanto, na hora de avaliar o quanto esse assunto mobiliza outras pessoas, a grande maioria dos políticos foi cética: apenas 7% disseram que seus colegas parlamentares estão igualmente interessados no meio ambiente, e somente 15% avaliaram que seus eleitores se preocupam com pautas ambientais. “O resultado parece o daquelas pesquisas sobre desigualdade ou justiça social: o problema está sempre nos outros”, resume o cientista político George Avelino, professor da FGV que coordenou a pesquisa.
A percepção que os parlamentares têm de seus eleitores contrasta com o resultado de outras pesquisas de opinião, que revelam o interesse crescente da população em relação a temas ambientais. Um levantamento do Instituto de Tecnologia e Sociedade em parceria com o Ibope, realizado entre setembro e outubro de 2020, mostrou que 61% dos brasileiros se dizem muito preocupados com a situação do meio ambiente. Ou seja, uma proporção significativamente maior do que aquela que os congressistas atribuem a seu eleitorado.
O estudo divulgado esta semana classifica como “instigante” a dissonância entre a opinião dos eleitores e a percepção que seus representantes no Congresso têm dessa opinião. A diferença é ainda maior quando se consideram os parlamentares das regiões Norte e Centro-Oeste ouvidos pela pesquisa. Mais da metade deles afirmou estar muito interessada no tema, mas apenas 14% veem o mesmo interesse no eleitorado – “uma clara desconexão”, resumem os autores do estudo. Justamente essas regiões vêm sofrendo as maiores tragédias ambientais da história recente do Brasil. Há exatamente um ano, o Pantanal, no Centro-Oeste, foi devastado pelas queimadas – e o cenário não é tão diferente este ano. Há um mês, a Amazônia bateu o recorde de desmatamento da década.
O vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PL), eleito pelo Amazonas, acredita que essa diferença de opinião se deve, sobretudo, aos conflitos de terra existentes no Norte e no Centro-Oeste. “A explicação é muito clara: essas regiões têm maior influência do agronegócio. E infelizmente o nosso agro ainda se estabelece em contradição com o meio ambiente”, afirmou Ramos à piauí. “Ou pelo menos parcela do agro”, remendou, em seguida. Ou seja: o deputado entende que, se os parlamentares dessas regiões trabalham em benefício do agronegócio, eles tendem a acreditar que seus eleitores não ligam para o meio ambiente. Em alguns dos estados do Norte e do Centro-Oeste estão as últimas fronteiras agrícolas do país. Eles também concentram a maior parte das fazendas mantidas por senadores e deputados, segundo um levantamento publicado em 2019 pelo observatório De Olho Nos Ruralistas.
Na opinião de Ramos, o Congresso precisa se dedicar mais à agenda ambiental. “Hoje temos uma crise climática no mundo, com consequências muito graves para a vida do cidadão”, afirmou Ramos. Para ele, a falta de interesse da população é um dos obstáculos para que essa agenda ganhe tração. “Existe pouco engajamento das pessoas em temas de natureza ambiental. O engajamento é muito setorizado em entidades e organizações, não é algo que mobilize a sociedade. Isso acaba se refletindo no Parlamento.”
Cientistas políticos, no entanto, entendem que essa não é a raiz do problema. “Os parlamentares perderam a ligação com os anseios da população, não percebem que os brasileiros hoje estão mais preocupados com o tema do meio ambiente”, avalia Mônica Sodré, cientista política e diretora-executiva da Raps. Já o coordenador da pesquisa, George Avelino, tem outra hipótese. Para ele, os parlamentares desconhecem a real opinião de seu eleitorado simplesmente porque as questões ambientais não são propostas tradicionais de campanha – o que torna difícil avaliar o interesse real do eleitor sobre o tema. As exceções são congressistas que se elegem exclusivamente com essa bandeira.
O deputado Marcelo Ramos reconhece que as discussões sobre meio ambiente ainda ficam restritas a bolhas no Congresso. Além disso, segundo ele, o assunto é “absolutamente descuidado pelo governo”, o que acaba impactando as discussões no plenário. Quando uma pauta ambiental chega à Câmara, ela vem “contaminada” pelo Executivo, explica o deputado federal, hoje em seu primeiro mandato. “As pautas vêm com um viés totalmente distorcido, uma lógica de destruição do arcabouço de proteção ambiental do país.”
Por essas e por outras razões, explica Ramos, os projetos de defesa do meio ambiente só avançam quando são apadrinhados por entidades civis, pelo setor produtivo interessado no assunto e – o que é mais difícil – por um deputado empenhado em aprovar a pauta. Ele, naturalmente, se considera uma dessas exceções. “A pauta da regulamentação do mercado de carbono no Brasil eu estou cuidando com dedicação, fazendo andar, porque entendo que é importante para o país”, ostenta o deputado, referindo-se a um projeto de lei que busca reduzir a emissão de gases poluentes.
O estudo mostra que, em geral, os congressistas não se veem como parte da solução para a crise climática. Mais de 70% dos entrevistados responderam que é atribuição do governo federal fiscalizar queimadas e desmatamento. “Eles estão corretos em apontar quem é o responsável legal pelo assunto, mas isso não os exime de uma corresponsabilidade pelo estado de coisas que estamos vivendo”, diz Mônica Sodré. Quando questionados sobre quais deveriam ser as prioridades no combate à crise climática, apenas 29% escolheram a opção “fiscalizar mais os desmatamentos”. Para a maioria dos congressistas (51%), a principal solução é investir em fontes de energia renováveis.
Atualmente, ao menos três projetos de lei importantes que tratam de questões ambientais estão tramitando no Congresso. Dois deles já foram aprovados na Câmara e aguardam votação do Senado: o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 3729, sobre licenciamento ambiental. “Existe quase um consenso de ambientalistas e organizações da sociedade civil de que esses projetos são inoportunos”, avalia Sodré. “Eles não beneficiam pequenos produtores e podem gerar mais grilagem e desmatamento.” Na Câmara, aguarda votação o PL 490, que altera o processo de demarcação de terras indígenas e também pode causar impactos ambientais a longo prazo. São exemplos claros de que o Congresso tem condições reais de contribuir para a agenda do meio ambiente, lembra a pesquisadora. “Mas o Parlamento não está dando sua parcela de contribuição a essa agenda”, diz ela.
A preocupação com o meio ambiente, que a maioria dos congressistas atribuiu a si próprio na pesquisa, não é fator determinante para seu posicionamento. Os pesquisadores conduziram um teste para comparar a reação dos parlamentares diante de um projeto de lei apresentado a eles de duas formas diferentes. Divididos em dois grupos aleatórios, os participantes receberam duas propostas idênticas que tratavam da crise climática. A única diferença era o autor do projeto: um vinha do governo, e o outro, da oposição. O resultado é revelador: a reação mudou drasticamente, a depender do autor do projeto de lei. Entre parlamentares da base governista, a diferença foi significativa: quando a autoria era do governo, 73% apoiaram uma proposta para aumentar a sanção contra quem viola leis ambientais, mas apenas 38% apoiaram o mesmo projeto quando ele vinha da oposição.
“Eles não votam no que acreditam ou no que os eleitores acreditam, mas sim no que o governo acha que é certo”, resume Avelino, coordenador da pesquisa. Analisando o posicionamento dos parlamentares em relação aos projetos do Executivo, os pesquisadores fizeram um ranking de alinhamento. O partido mais alinhado ao governo na pauta ambiental foi o Novo, seguido do PSL. Na segmentação por estado, os deputados e senadores do Mato Grosso, espécie de capital do agronegócio no Brasil, têm o maior alinhamento.
Essa postura não é novidade para os pesquisadores, que já haviam observado tendências parecidas em estudos anteriores. Não é à toa que a maioria das pautas aprovadas no Congresso tem origem no governo. Para Avelino, no entanto, isso não significa que, ao mudar o governo, o cenário vá mudar drasticamente. O próprio Parlamento é um entrave a essas pautas. “Falar em diminuir o desmatamento e aumentar o uso de energia renovável, por exemplo, esbarra em muitos interesses econômicos, e o Congresso raramente muda seu perfil. Mesmo que os congressistas acreditem que é importante ter um projeto para preservar o meio ambiente, o resultado nem sempre é garantido. É preciso negociar.”
A boa notícia, na opinião de Avelino, é que a pesquisa revelou um ambiente favorável para a discussão no Congresso. Tomando como referência o atual governo, os pesquisadores imaginavam que o negacionismo ambiental estaria disseminado também entre os parlamentares. Mas se esse comportamento existe, mostra a pesquisa, é minoritário. “A partida não está ganha, mas pelo menos o campo não está esburacado. Dá para jogar”, diz George Avelino, referindo-se à possibilidade de negociar projetos de defesa do meio ambiente. Mas essa é a visão do copo meio cheio. Ainda que a maioria diga reconhecer a relevância do tema, na prática a história é outra.
Isso fica claro em outro índice desenvolvido pela pesquisa, que mede o comportamento prático dos parlamentares em relação à medidas para mitigar a crise. A escala varia de 0 a 1, em que o valor máximo representa alinhamento total, de discurso e ação, ao senso de emergência climática. A média dos congressistas foi de 0,59. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre os que se dizem de esquerda, direita ou de centro. No grupo da esquerda, o índice foi de 0,85; na direita, foi de apenas 0,35. Ou seja, os parlamentares de esquerda têm as ações alinhadas com o discurso de interesse em pautas do meio ambiente; os da direita, nem tanto. “Na prática, a preocupação é um pouco menor do que eles tentaram mostrar na pesquisa de opinião”, avalia Mônica Sodré. Os resultados não podem ser atribuídos apenas a um cinismo. Para os especialistas, a defesa do meio ambiente ainda é um assunto abstrato no Congresso. É como falar em justiça social, diz Avelino. “Quem vai dizer que é contra justiça social? Ninguém. O problema é o que isso significa na prática”, explica o cientista político.
Embora possa soar abstrata, a defesa do meio ambiente hoje lida com problemas muito concretos. Publicado em agosto, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) colocou a crise numa escala de tempo: o mundo tem vinte anos para resolver a emergência climática. Caso contrário, nossa sobrevivência como espécie estará ameaçada. No Brasil, as mudanças climáticas já afetam o regime de chuvas e deram origem à atual crise hídrica no Sudeste, que se transformou em crise energética. As pessoas só precisam ligar os pontos e incluir a agenda climática entre suas prioridades, avaliam os cientistas políticos que conduziram a pesquisa. “Nós também precisamos mudar a forma como deputados e senadores encaram a emergência climática para que eles consigam relacionar isso com o que votam”, avalia Mônica Sodré.
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