ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Um influencer indígena
A luta de Tukumã Pataxó para demarcar terras e telas
Camille Lichotti | Edição 181, Outubro 2021
Quando Tukumã Pataxó deixou a aldeia onde nasceu, no Sul da Bahia, para fazer faculdade em Salvador, começou a ser bombardeado com perguntas absurdas dos colegas. Queriam saber se ele era indígena “de verdade”, se fazia a dança da chuva, se comia outros seres humanos e por que não andava pelado.
Apesar de ter crescido em contato frequente com não indígenas, Tukumã nunca havia passado por isso – e decidiu falar sobre os episódios de racismo no Twitter. Em menos de um ano, ganhou 20 mil seguidores. O primeiro conteúdo a viralizar foi um vídeo em que ele e seis amigos também indígenas, embalados por um rap, trocam as roupas “de branco” – camisas, calças – por vestimentas e pinturas tradicionais de seus povos. “É indígena que vocês querem? Toma!”, escreveu Tukumã. O vídeo teve mais de 1 milhão de visualizações.
Perfis de influenciadores indígenas têm se multiplicado nas redes sociais, a maioria formada por jovens como Tukumã, que tem 22 anos. Eles usam a internet para colocar suas pautas em debate e buscar apoio às lutas de seus povos. Identificam-se usando um emoji de arco e flecha nos perfis do Twitter e do Instagram, e recentemente entraram também para as telas do TikTok. O fenômeno tornou-se um braço do movimento indígena, com uma nova linguagem para um novo público. No Instagram, a principal plataforma de comunicação de Tukumã, ele já tem mais de 127 mil seguidores, a maioria formada por não indígenas.
São os vídeos curtos, parecidos com esquetes humorísticos, que mais fascinam o público. Para fazê-los, Tukumã recorre aos próprios comentários que recebe nas redes sociais, como o de alguém que perguntou se era possível se tornar indígena. Ao que ele respondeu: “É sim, pô. É só pedir a Tupã que você nasça de novo.” Outra pessoa indagou se era verdade que os indígenas não gostavam de tomar banho. Inconformado, Tukumã disparou: “Foram os portugueses que chegaram aqui fedendo.”
“Eu não discuto com ninguém na internet”, explicou ele à piauí numa conversa em videochamada. “Pego os comentários e os transformo em piada. Assim a pessoa vê como o pensamento dela é sem noção, e eu gero conteúdo.” Tukumã usava uma regata branca e um brinco de pena em uma das orelhas. O cabelo, muito preto e liso, chegava à altura dos ombros. “O importante é usar isso para trazer visibilidade para a nossa causa”, disse. O que tem dado certo. Há pouco, ele atraiu a atenção do humorista Whindersson Nunes, um dos brasileiros mais seguidos no Instagram, que o convidou para uma visita. Depois de gravarem um rap juntos, Whindersson postou imagens do encontro e se posicionou a favor dos direitos indígenas.
O perfil de Tukumã também é didático. Em um de seus vídeos mais curtidos, ele explica por que a palavra “índio” é carregada de preconceitos e se deve optar por “indígena”. Também apresenta aos seguidores os costumes e as tradições do seu povo, o Pataxó, e divulga informações sobre o movimento indígena.
Neste ano, Tukumã se tornou diretor de comunicação da Associação de Jovens Indígenas Pataxó (Ajip). Também passou a colaborar com a Mídia Índia, um coletivo de comunicadores indígenas, e ganhou o Prêmio Sim à Igualdade Racial, dado pelo Instituto Identidades do Brasil, na categoria Representatividade em Novos Formatos.
Nos últimos meses, visitou aldeias para gravar um documentário sobre as cicatrizes deixadas pela Covid-19. Aproveitou para falar da importância da comunicação e dar oficinas de audiovisual, ensinando como se utiliza o celular para fazer vídeos de qualidade. “A internet é o mundo, e eu quero que mais indígenas estejam lá para mostrar as coisas a partir da nossa perspectiva”, disse. “O movimento indígena não está mudando, está evoluindo. A militância na internet não substitui as mobilizações presenciais nem nossa luta por direitos. Pelo contrário, são coisas que se complementam.” O objetivo, afirmou, é demarcar terras e telas.
Tukumã Pataxó nasceu na Terra Indígena Coroa Vermelha, próxima de Porto Seguro, e foi registrado como William. Por muitos anos, os pataxós foram proibidos de falar sua língua tradicional, hoje conhecida como patxohã, e os anciãos que ainda se lembravam dela tinham medo de usá-la. Só em 1998 um projeto antropológico começou a resgatar a língua adormecida, que passou a ser ensinada nas escolas da aldeia a partir de 2003. Estimulado pela iniciativa, o pai de William deu ao filho, então com 4 anos, um novo nome: Tukumã, que significa “semente”.
O que o influencer faz nas redes sociais é dar continuidade à luta de seus antecessores. Seu avô foi cacique e sua avó atuou nas trincheiras pela demarcação do território pataxó. O tio-avô, que também foi cacique, agora é o pajé da aldeia. Seu pai atuou na Fundação Nacional do Índio (Funai) e foi membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Ativismo é um nome bonito para o que toda a minha família faz há anos”, disse Tukumã.
Na tarde de setembro em que conversou com a piauí, ele estava em Brasília, para as manifestações contra o “marco temporal”, que reuniu cerca de 6 mil pessoas de 170 povos – a maior mobilização indígena desde a redemocratização. A ação, em julgamento no Supremo Tribunal Federal, pretende estabelecer que os povos indígenas só podem pedir a demarcação de um território se atestarem que viviam no local até 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Especialistas avaliam que essa tese, além de inconstitucional, ameaça o futuro dos indígenas.
Tukumã foi o responsável por filmar e fotografar as marchas para divulgação nas redes sociais e transmitir as plenárias para quem não pôde ir à Brasília. Na ocasião, ele conheceu influencers de outros povos e foi até tietado pelos manifestantes. “Fiquei feliz ao ver outros jovens dizendo que se inspiram no meu trabalho. Eu faço muito menos do que acho necessário.”
Ele ainda não decidiu se pretende seguir na carreira de influenciador digital. Seu objetivo é terminar a graduação em gastronomia na Universidade Federal da Bahia. Depois, quem sabe, venha a conciliar as duas profissões. Para Tukumã a onda dos comunicadores indígenas está apenas começando e vai fortalecer o movimento. “Já temos quinhentos anos de resistência, não serão mais quinhentos que vão acabar com a gente”, disse, confiante.