ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Fora, pindaíba
O diretor Gerald Thomas escapa da ameaça de despejo
João Batista Jr. | Edição 181, Outubro 2021
– Filho, o que está acontecendo? Está tudo bem com você?
– Sim. Mas por que a preocupação?
– Você está em muitos lugares, de forma muito nobre, propondo vender a sua arte para não ser despejado.
A conversa aconteceu no último fim de semana de agosto. De um lado da linha, estava Gerald Thomas, falando de Nova York. Do outro lado, a atriz Fernanda Montenegro, no Rio de Janeiro, preocupada com a notícia de que o diretor e dramaturgo estaria para ser despejado de seu apartamento de dois quartos em frente ao East River. Ex-sogra de Thomas e atriz de um de seus sucessos no palco, The Flash and Crash Days, Montenegro tinha lido que ele estava vendendo os desenhos e pinturas que fez para saldar a dívida com o locador.
Desde janeiro, Thomas não pagava o aluguel mensal de 3,4 mil dólares (cerca de 18 mil reais). Aflito com a iminência da mudança, enviou um vídeo a um amigo, contando que estava na pindaíba: “Este vídeo é um pouco diferente dos outros. Não tem piada, não tem trocadilho, não tem opinião. É um apelo. Eu preciso vender os meus desenhos e minhas pinturas. A situação chegou num ponto crítico que não posso mais aguentar.” O apelo viralizou e, quando o diretor se deu conta, tinha virado notícia de jornal. “Fiquei assustado com a repercussão, mas depois comecei a receber pedidos de compra de minhas obras, e amigos se ofereceram a ajudar. O Ney Latorraca me ligou para fazer uma transferência bancária.”
O teatro raramente enche de dinheiro os bolsos dos artistas. Mas foi o que aconteceu no passado com Gerald Thomas, que revolucionou os palcos brasileiros nos anos 1980 e 1990 com sua Companhia de Ópera Seca e dirigiu dezenas de peças e óperas em dezesseis países. “Eu ganhei muito dinheiro fazendo óperas na Alemanha, Áustria, Suíça e Itália”, conta o diretor. Além de manter apartamentos em Nova York, Londres e em Wengen, nos Alpes suíços, ele só viajava de primeira classe, frequentava os restaurantes mais caros e, em São Paulo, se hospedava nos melhores hotéis, como o Unique. “Também dou grana para vinte instituições, como a Cruz Vermelha”, acrescenta.
A vida financeira desregrada teve um final dramático em 2018. O gerente de sua conta na Suíça marcou uma reunião e lhe mostrou o extrato. “Estava assim: muito baixo. Se eu fosse descrever a um ator a sensação que tive ao me deparar com aquele número, para que ele representasse em cena, seria algo entre a dor, a incredulidade e a tremedeira.”
Naquele ano, Thomas precisou colocar à venda, por 350 mil francos suíços (pouco mais de 2 milhões de reais), seu único imóvel, o apartamento em Wengen, e devolver o flat alugado em Londres. Restou – que infortúnio! – o de Manhattan, também alugado. “Hoje eu sei o valor de 1 dólar. Passei a vida toda sendo mimado pelo sucesso.”
Mas o dinheiro continuou minguando. Com a pandemia, a situação piorou ainda mais. “No primeiro semestre de 2020 eu iria estrear uma nova montagem em Copenhague, na Dinamarca, mas ela precisou ser adiada.” Quando recebeu a ordem de despejo, Thomas não pensou duas vezes: fez um cadastro no Emergency Rental Assistance Program (Programa de assistência para locação de emergência), que auxilia pessoas em risco de perder sua moradia. Dois dias após o apelo em vídeo viralizar, ele recebeu a resposta da assistência: seus aluguéis deste ano serão pagos pelo governo estadual de Nova York, sem que ele precise restituir depois.
O diretor segue vendendo seus trabalhos artísticos, por preços que vão de 1,5 mil a 15 mil dólares. Ele mesmo despacha as obras por FedEx, como fez, nos últimos dias, enviando pacotes para São Paulo, Rio de Janeiro, Aix-en-Provence, Oslo, Londres e Roma.
Foi o pincel, e não Samuel Beckett ou Heiner Müller, a porta de entrada de Gerald Thomas Sievers no mundo das artes. Filho de pai alemão e mãe galesa, ele nasceu em Nova York. Quando tinha 4 anos, sua família se mudou para o Rio de Janeiro. Aos 9, ingressou no curso de pintura do artista plástico Ivan Serpa. “Eu fui entender de Jackson Pollock, Andy Warhol e Marcel Duchamp ainda criança.”
O curso rendeu outros frutos. Um de seus colegas era o artista plástico Hélio Oiticica, dezessete anos mais velho. Os dois engataram um romance. Quando Oiticica se mudou para Nova York, Thomas foi junto. Ele conta que trabalhou no hotel Hilton e complementava a renda fazendo frilas como garoto de programa. Seus principais clientes eram homens do interior dos Estados Unidos, muitos religiosos e casados, de passagem por Manhattan. Thomas não se define como bissexual. Para ele, não existe nem homossexualidade nem heterossexualidade – apenas sexualidade.
Nessa mesma época, ele se iniciou na cocaína, por prazer e para perder a inibição. “Você trepa com um poste”, avisa. Quando o trabalho do garoto de programa terminava de manhãzinha, ele ia direto para o Museu de Arte Moderna (MoMA) admirar as obras de arte até que o efeito da cocaína passasse. “Eu nunca fui de usar droga em bar, para ficar falando sem parar com amigos. O meu negócio era cheirar para trepar.” Desde 2014, ele se afastou da cocaína e nega que o uso da droga tenha contribuído para a crise financeira.
Nos anos 1970 Thomas viveu uma encrenca financeira similar à de agora – e se safou dela graças ao seu talento para o desenho. Sem dinheiro para pagar o aluguel do estúdio onde vivia em Nova York, ligou para a então diretora de arte do New York Times, Jerelle Kraus, oferecendo-se para fazer ilustrações. “Tomamos um café, e ela me encomendou um trabalho para o dia seguinte.” Ele desenhou para o jornal de 1978 até 1983.
A experiência de oferecer suas obras na internet trouxe um resultado inesperado para Thomas. “Eu me vi rodeado de carinho e afeto, da parte de pessoas que se preocupam comigo.” Uma delas foi o ator Ney Latorraca, que atuou em quatro montagens do diretor, como Don Juan, em 1995, e Entredentes, em 2014.
Latorraca tinha acabado de fazer a caminhada diária, em círculos, numa área aberta de sua cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas, quando atendeu a piauí. Ele definiu Thomas como uma pessoa cheia de coragem e bom humor, que adora colocar desafios aos atores. “A peça estreia, mas ele continua ali, todos os dias, propondo mudanças. É enriquecedor”, afirmou, por telefone.
Depois do apelo, Thomas foi convidado a vender seus trabalhos na plataforma digital Tropix. E dirigiu a distância, pelo aplicativo Zoom, a peça online G.A.L.A, com Fabiana Gugli, que estreou em 22 de setembro no Canal Sesc Avenida Paulista, no YouTube. Não é o único trabalho teatral em andamento: ele também prepara uma peça, dessa vez presencial, estrelada por Marco Nanini. Com Gerald Thomas, nunca haverá um último ato – seja num chalé na Suíça, seja na pindaíba em Manhattan.