minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    O ministro da Economia, Paulo Guedes, acionista de offshore nas Ilhas Virgens Britânicas - FOTO: PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS

pandora papers

Uma economia milionária (para o ministro)

Trecho da reforma tributária barrado no Congresso geraria cobrança sobre offshores como a de Paulo Guedes

Thais Bilenky e Marcella Ramos | 08 out 2021_20h04
A+ A- A

Ao desistir de cobrar imposto de donos de offshores por lucros obtidos no exterior todos os anos, o governo Bolsonaro e o Congresso abriram mão de uma fonte de arrecadação promissora. Caso o texto original da reforma do Imposto de Renda tivesse sido aprovado, investidores brasileiros no exterior, como o ministro Paulo Guedes (Economia), teriam de pagar Imposto de Renda sobre os lucros e rendimentos de suas offshores com base na tabela progressiva mensal (alíquota máxima de 27,5%). Além disso, pela legislação já em vigor, se repatriassem o dinheiro, ainda teriam de recolher tributo sobre ganho de capital de até 22,5% sobre a variação cambial acima do valor tributado como IR. De acordo com o Banco Central, os brasileiros tinham no exterior 204,2 bilhões de dólares em 2020, o equivalente a 1,12 trilhão de reais. 

A offshore aberta por Guedes tinha em dezembro de 2019 38,5 milhões de reais – ou 50 milhões de reais em dezembro de 2020, considerando apenas a valorização cambial. De dezembro de 2020 até esta quarta, 6 de outubro, a valorização do dólar rendeu a Guedes 2,9 milhões de reais. Especialistas ouvidos pela piauí divergiram sobre quanto seria cobrado de imposto de renda. Para dois deles, o IR já incidiria sobre esses 11,1 milhões de valorização cambial, o que geraria uma cobrança de 3,05 milhões de reais em tributos. Para os outros dois, a tributação não incide sobre a valorização cambial, só sobre o lucro – e sem saber o lucro é impossível calcular o imposto devido.

Reportagem baseada em documentos obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e publicada pela piauí revelou no domingo (3) que, em 2014, Guedes abriu a Dreadnoughts International, uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, paraíso fiscal no Caribe. Nos meses seguintes, aportou na conta da empresa, aberta numa agência do banco Crédit Suisse, em Nova York, a quantia de 9,55 milhões de dólares, o equivalente a 23 milhões de reais na época – valor que hoje corrigido pelo câmbio corresponde a 52,6 milhões de reais. Guedes era então sócio da gestora de recursos Bozano Investimentos. Até 28 de setembro de 2021 a Dreadnoughts International continuava ativa, com o ministro Guedes na condição de controlador. 

A investigação reúne mais de seiscentos jornalistas e 150 veículos de imprensa no mundo, entre eles a piauí, Agência Pública, Poder360 e Metrópoles. O conjunto dos documentos, batizado de Pandora Papers, reúne cerca de 12 milhões de registros vazados de catorze escritórios especializados na abertura de offshores em diversos paraísos fiscais, mas o grosso das informações vem das Ilhas Virgens Britânicas. Entre os documentos estão certificados de acionistas em nome dos beneficiários, justificativas para a abertura das empresas, comprovantes de aportes de recursos e e-mails dos funcionários das empresas que se encarregaram da criação das offshores.

O texto formulado pela Receita Federal e aprovado pelo Ministério da Economia foi discutido ao longo de semanas por líderes da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), recebeu na residência oficial diversos deputados às terças e quartas-feiras durante o mês de agosto para reuniões de manhã que se estendiam até o almoço. Depois da refeição, o relator do projeto, Celso Sabino (de saída do PSDB do Pará rumo ao União Brasil), continuava à mesa. Recebia colega por colega para negociar pontos específicos da proposta.

Uma pessoa destoava entre os homens brancos que compareciam regularmente à residência oficial, uma mansão espaçosa e arejada no Lago Sul de Brasília. A única mulher presente era Daniella Marques Consentino, braço direito de Guedes no Ministério da Economia e sua principal representante entre congressistas.

Sua presença era assídua. Não havia o que Lira ou Sabino falasse com que ela não anuísse previamente, segundo relatos de deputados que participaram dos encontros. Era chamada de cão de guarda por congressistas que, não raro, incomodavam-se com sua presença e se sentiam intimidados em fazer críticas ao texto. Esperavam o tête-à-tête com Sabino para falar em privado os pontos de que discordavam. Apesar de poderosa, Consentino tem comportamento informal e despojado. Considerada inteligente e rápida, a superassessora tem ótimo trânsito entre deputados da base aliada. 

“Daniella sempre foi, não apenas nesse processo, mas sempre foi a pessoa mais próxima do ministro Paulo Guedes. Sempre que estive com o ministro, ela sempre estava presente”, diz Isnaldo Bulhões (AL), líder do MDB, presente às reuniões na casa de Lira. 

Durante as negociações, o trecho que imporia a taxação das offshores foi retirado da reforma. Depois da revelação da empresa de Guedes nas Ilhas Virgens Britânicas, a Folha de S.Paulo resgatou declaração do ministro da Economia em julho durante um seminário no qual discorria sobre as mudanças propostas no sistema tributário brasileiro. “Ah, ‘porque tem que pegar as offshores’ e não sei quê. Começou a complicar? Ou tira ou simplifica. Tira. Estamos seguindo essa regra”, disse ele. No Congresso, críticos do ministro passaram a dizer que ele atuou em benefício próprio. Deputados presentes na negociação do texto disseram que Lira solicitou a mudança a Sabino, que a acatou. Mas todos os envolvidos negaram a autoria da iniciativa de isentar as offshores.

A assessoria de imprensa do presidente da Câmara rebateu a versão de que ele teria solicitado a mudança. “A reforma foi amplamente discutida com todos os líderes, de todos os partidos”, desconversou. O relator não respondeu de quem foi o pleito. Limitou-se a dizer, em nota encaminhada por sua assessoria, que “nega que houve qualquer pedido do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da equipe econômica para retirar a taxação de recursos em paraísos fiscais. Vale ressaltar que o projeto original, que previa a taxação, é de iniciativa do Poder Executivo. Portanto, não faz o menor sentido a narrativa que está sendo dada pela imprensa”. 

Nem a oposição nem mesmo a base aliada se convenceram, e convocaram o ministro para se explicar no plenário da Câmara em data a ser marcada. “É ilegal que funcionários públicos de alto escalão, com acesso a informações privilegiadas, mantenham offshores em paraíso fiscal”, protestou o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição, referindo-se ao fato de o Código de Conduta da Alta Administração Federal proibir, em seu artigo 5º, “investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas”  . “Enquanto a offshore de Paulo Guedes faturou milhões em pouquíssimo tempo, a inflação castiga o povo, que faz fila por restos de pelanca e ossos.”

 

Após dois dias sem manifestação pública oficial, Guedes contratou uma dupla de advogados criminalistas para representá-lo no caso. Em uma nota, Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Velloso afirmaram que protocolariam uma petição à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal “esclarecendo de forma definitiva que o ministro jamais atuou ou se posicionou de forma a colidir interesses públicos com privados”.

“Com relação à empresa Dreadnoughts, os documentos que serão protocolados deixam claro que o ministro desde dezembro de 2018 se afastou da sua gestão, não tendo qualquer participação ou interferência nas decisões de investimento da companhia.

Da mesma forma, os documentos demonstram que não houve qualquer remessa ou retirada de valores para o exterior da companhia mencionada, desde quando Paulo Guedes assumiu o cargo de ministro da Economia, sendo certo que este jamais se beneficiou no âmbito privado de qualquer política econômica brasileira”, afirmou a defesa.

Paulo Guedes falou pela primeira vez publicamente sobre a offshore nesta sexta-feira (8), em evento promovido pelo banco Itaú. Repetiu que não participou das decisões envolvendo a empresa, mas não mostrou nenhum documento para comprovar o que disse. O site O Antagonista divulgou no mesmo dia uma carta da administradora da Dreadnoughts, a Trident Trust, de quem Guedes é cliente. Na carta, a Trident diz que o ministro foi diretor da empresa até 21 de dezembro de 2018. A carta não afirma, porém, que Guedes deixou de ser acionista da empresa. 

Em janeiro de 2019 consta uma mudança na direção da offshore de Guedes, segundo a Junta Comercial das Ilhas Virgens – mas o órgão não informa qual foi a mudança, quem entrou ou saiu. Como revelado pela piauí em base em documentos obtidos pelo ICIJ, certificado da Dreadnoughts mostra que Guedes é um dos três detentores, junto com sua filha e sua esposa, de 50 mil ações da empresa. A revista solicitou, mas os advogados não enviaram documentos mostrando a alegada saída de Guedes da diretoria da Dreadnoughts, nem os demonstrativos de que não houve transação financeira feita pela empresa após o ingresso do ministro no governo Bolsonaro. Alegaram sigilo bancário. Também não disseram qual é o atual cargo do ministro na offshore.

*

Colaboraram Ana Clara Costa e Allan de Abreu

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí