ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
País do futuro
Imigrante haitiana planeja a vida de seus filhos no Brasil
Amanda Gorziza | Edição 182, Novembro 2021
No dia 14 de agosto passado, um terremoto de magnitude 7,2 atingiu o Haiti, deixando mais de 2 mil mortos e 12 mil feridos. Logo que soube da notícia, a haitiana Judith Fleurissaint Baguidy, que mora em Porto Alegre, correu ao telefone para tentar falar com sua família em Saint-Louis-du-Sud, cidade a 12 km do epicentro do terremoto. Nem a mãe nem os três filhos que ela deixou no país atenderam às ligações. Baguidy ficou desesperada.
Cinco dias depois, ela finalmente conseguiu falar com a mãe, que contou que sua casa havia sido completamente destruída. Como perderam tudo, os familiares de Baguidy tiveram que dormir na rua. “Meus filhos não tinham casaco. Não tinham comida. Tudo ficou no chão”, conta a haitiana de 41 anos.
O terremoto e a consequente crise humanitária no Haiti apressaram os planos de Baguidy de trazer os filhos para o Brasil. Ela veio para cá sozinha em 2016 e desde então nunca mais se encontrou com Junaïlove, de 9 anos, Geulssaint, de 19, e Wansley, de 21. Em julho, a família para a qual ela trabalha como empregada doméstica criou uma vaquinha online e rifas com o objetivo de arrecadar o dinheiro necessário para fazer os três passaportes e comprar as passagens. Dois documentos já foram emitidos, e até o final de outubro a iniciativa havia alcançado cerca de 30% do valor das três passagens, que custarão aproximadamente 20 mil reais.
Nação mais pobre das Américas, o Haiti padece há décadas de uma terrível crise em todas as esferas, da política à social. Em 2010, um terremoto de magnitude 7 provocou uma tragédia ainda maior que a deste ano: 316 mil pessoas morreram e 1,5 milhão ficaram feridas. Em 7 de julho passado, o presidente do país, Jovenel Moïse, foi assassinado, o que agravou o estado de coisas para a população, que enfrenta há décadas a violência incessante e uma severa carestia.
As dificuldades impulsionam a imigração, inclusive para o Brasil, que recebeu aproximadamente 154 mil haitianos entre 2010 e 2021, segundo dados da Polícia Federal. Mas vários deles já estão indo embora daqui, à medida que a crise econômica brasileira se amplia – e muitos seguem para os Estados Unidos, onde correm o risco de sumária deportação.
Em setembro, o governo norte-americano chegou ao absurdo de mandar 84 crianças brasileiras, filhas de pais haitianos, não para a terra natal delas, mas para o Haiti, onde nunca haviam posto os pés. As crianças têm direito de ser assistidas pelo governo brasileiro e repatriadas. No fim de outubro, a expectativa era de que as famílias que têm documentação começassem a retornar ao Brasil.
Judith Fleurissaint Baguidy começou a trabalhar ainda criança. Ajudava em casa quando seus pais estavam no emprego em uma fazenda em Saint-Louis-du-Sud, cidade com 51 mil habitantes no Sul do Haiti. Com 17 anos, ela deixou de frequentar a escola e aos 18 se casou. A violência disseminada no país passou a se refletir dentro de sua própria casa, com as agressões cotidianas do marido.
Um dia, ela resolveu dar um basta. Com a ajuda do padrasto, comprou uma passagem para o Brasil. Deixou os filhos com a mãe e desembarcou em agosto de 2016 no Rio Grande do Sul, com outros haitianos. “Fiquei muito triste. Chorava todo dia. E meus filhos também choravam. Tenho menina pequena que não queria comer. Ela tinha só 4 anos quando fui embora”, diz Baguidy.
Depois da chegada em Porto Alegre, ela seguiu para Bento Gonçalves, município da Serra Gaúcha, onde foram emitidos os documentos de que precisava para viver no Brasil. Baguidy tentou arrumar um emprego, mas não conseguiu. Voltou então para a capital e, em maio de 2017 – quase nove meses depois de sua chegada –, foi contratada como empregada doméstica pela família Menalda, com a qual trabalha até hoje. Parte do salário ela envia para a mãe e os filhos.
Sem apoio do governo brasileiro, sua adaptação ao novo país foi difícil. Baguidy vive há cinco anos no Brasil, mas ainda tem dificuldades de se expressar em português – em seu país, falava créole, a língua mais utilizada no Haiti (a outra é o francês). Apenas há pouco começou a fazer aulas online de português, oferecidas gratuitamente pela Associação dos Haitianos do Rio Grande do Sul. Em 2018, ela se casou pela segunda vez, com Waky Joseph. Os dois se conheciam de Saint-Louis-du-Sud e se reencontraram em Porto Alegre.
Mãe de cinco filhos, a dona de casa Paula Menalda, 51 anos, está ajudando Baguidy a trazer os filhos para o Brasil. “Neste ano, ela está muito preocupada com eles, porque a situação no Haiti piorou demais. Então, a gente começou a ajudar de alguma maneira”, diz Menalda, que é madrinha de Waldo, o filho mais novo de Baguidy, nascido no Brasil. O olhar empático e o sentimento materno aproximam as duas mulheres.
Baguidy deu à luz na rua, na manhã de 21 de dezembro de 2018. Ela começou a sentir as contrações e seguiu às pressas para o Hospital Nossa Senhora da Conceição. Ao descer do ônibus, entrou em trabalho de parto, na calçada. Um soldado da Brigada Militar que fazia patrulhamento na região foi chamado para ajudar. Waldo nasceu saudável, pelas mãos do militar.
A haitiana lamenta que, para os mais pobres, como ela, a situação econômica esteja tão complicada no Brasil. Mas exalta o Sistema Único de Saúde (SUS), contando que no Haiti paga-se muito caro por uma consulta médica. Aqui, o posto de saúde fica a duas quadras de sua casa, no bairro Sarandi, na Zona Norte de Porto Alegre, e Waldo está com a vacinação em dia, ela ressalta.
As dificuldades e a distância do restante da família não a impedem de imaginar o futuro. “Quero que todos os meus filhos estudem e trabalhem. E quero que eles morem perto da mamãe”, diz, emocionada. Sua voz não esconde seus sentimentos: muita saudade, mas muita esperança. O Brasil, país no qual tantos estão perdendo a confiança, para Baguidy é uma promessa de felicidade.