ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Abrigo de cérebros
Um dicionário biográfico dos refugiados do nazifascismo
Consuelo Dieguez | Edição 182, Novembro 2021
Em março de 1937, o técnico de futebol húngaro Izidor Kürschner desembarcou no Rio de Janeiro, fugindo da perseguição nazista. Foi imediatamente contratado pelo Flamengo, que exatamente naquela época estava formando um time de craques, com Domingos da Guia, Fausto dos Santos e Leônidas da Silva. Nome importante no futebol europeu, o treinador era perfeito para os objetivos do clube carioca.
Kürschner começara a sua carreira em 1904, quando tinha 19 anos, jogando pelo MTK (Magyar Testgyakorlók Köre/Círculo Húngaro de Educação Física), criado com a participação de judeus húngaros. Ganhou três campeonatos nacionais consecutivos (de 1909 a 1911) e foi convocado cinco vezes para a seleção nacional. Em 1918, passou a atuar como técnico do time, substituindo o famoso inglês Jimmy Hogan. No ano seguinte, Kürschner foi para a Alemanha, onde preparou duas equipes que se sagraram campeãs. Em 1925, tornou-se treinador do Grasshopper-Club, de Zurique, na Suíça, com espantoso sucesso: venceu sete títulos nacionais. Sua carreira ia de vento em popa, até que Adolf Hitler apareceu em seu caminho. Com o antissemitismo se disseminando pela Europa, Kürschner decidiu abandonar tudo e vir para o Brasil.
No Flamengo, ganhou o apelido de Dori e fez a festa. Implantou as ideias que desenvolvera na Europa, revolucionando o futebol brasileiro. Na Copa do Mundo de 1938, assessorou a Seleção verde-amarela, dando origem ao chamado “jogo bonito” do futebol brasileiro. No ano seguinte, quando estourou a Segunda Guerra Mundial, foi contratado pelo Botafogo. Mas não teve muito tempo de fazer o time alvinegro brilhar. Morreu em 1941, aos 56 anos, acometido de um vírus raro.
Kürschner, ou Dori, foi um dos 15 mil judeus e não judeus que se exilaram no Brasil por causa do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra. A enorme diáspora trouxe para cá algumas das mentes mais brilhantes da Europa, em diversas áreas: música, artes plásticas, literatura, balé, circo, arquitetura, ciência, engenharia, medicina, jornalismo, empreendedorismo e filosofia.
Parte significativa desses talentos, como Kürschner, tem sua história agora contada no Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil, um livrão de 832 páginas com a biografia resumida de trezentos imigrantes de destaque. Feito com o apoio de instituições privadas e contribuições de pessoas físicas, o livro foi editado pela Casa Stefan Zweig, entidade cultural sediada em Petrópolis, no Rio de Janeiro, que promove estudos e exposições sobre o escritor austríaco que lhe dá nome e sobre os judeus exilados no Brasil. Em setembro, a versão em inglês foi lançada na Suíça, com apoio da ONU.
O dicionário é o mais completo levantamento em livro a respeito dos refugiados europeus (e alguns asiáticos), gente que ajudou o Brasil a se tornar mais culto, dinâmico, especializado, criativo e interessante. Os nomes falam por si: os escritores Stefan Zweig (austríaco), Georges Bernanos (francês) e Samuel Rawet (polonês); os críticos Anatol Rosenfeld (alemão), Otto Maria Carpeaux e Roberto Schwarz (austríacos); o casal de zoólogos Ernst Marcus e Evelyne du Bois-Reymond-Marcus (alemães); os tradutores Paulo Rónai (húngaro) e Herbert Caro (alemão); o arquiteto Alfred Agache (francês); o filósofo Vilém Flusser (tcheco); o físico Ernesto Hamburger (alemão); os artistas plásticos Frans Krajcberg, Fayga Ostrower (poloneses), Ernesto De Fiori (italiano) e Emeric Marcier (romeno); os músicos Hans-Joachim Koellreutter (alemão) e Walter Smetak (suíço); os empresários Hans Stern, fundador da joalheria H. Stern, e Siegfried Adler, da fábrica de brinquedos Estrela (ambos alemães); as atrizes Berta Loran e Ida Gomes (polonesas); os atores Gianfrancesco Guarnieri (italiano) e Louis Jouvet (francês).
Mas o livro não se atém apenas às pessoas renomadas. Página após página, multiplicam-se personalidades menos famosas, igualmente relevantes para o país. É o caso da pintora Eleonore Koch (alemã), cuja obra até agora pouco conhecida é um dos destaques na 34ª Bienal de São Paulo, aberta em setembro. É também o caso dos arquitetos Alexander Altberg (alemão), que difundiu a estética da escola Bauhaus nas construções no Rio de Janeiro, e de Daniele Calabi (italiano), pioneiro no uso de materiais pré-fabricados. O leitor descobrirá que o Brasil deu abrigo ao químico polonês Pawel Krumholz, que desenvolveu processos para a extração de elementos químicos chamados terras raras, permitindo o seu uso em escala industrial. E saberá até mesmo que a Confeitaria Kurt, que há décadas adoça a vida dos moradores do Leblon, foi criada por Kurt Deichmann, que escapou da Alemanha em 1939.
Levou um ano e meio para que o dicionário ficasse pronto. O presidente da Casa Stefan Zweig, Israel Beloch, coordenou os trabalhos, com a consultoria do historiador Fábio Koifman, autor de Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a Entrada de Estrangeiros no Brasil (1941-1945). Quinze profissionais trabalharam na pesquisa, com produção da jornalista Kristina Michahelles.
Beloch contou que o dicionário se originou de uma pesquisa feita por Koifman durante anos no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, especificamente sobre os refugiados do nazifascismo. Por isso não consta do livro quem chegou antes da ascensão de Hitler, em 1933. Como, por exemplo, Motel Gleizer, judeu da Bessarábia que desembarcou no Brasil nos anos 1920 e era pai da antropóloga Berta Gleizer Ribeiro, mulher de Darcy Ribeiro.
A família Gleizer viveu uma história trágica. A outra filha de Motel, Genny, que como o pai atuava no Partido Comunista Brasileiro, foi presa pelo governo de Getúlio Vargas e entregue aos nazistas em 1940. Mas, ao desembarcar em Marselha, na França, Genny foi salva por estivadores comunistas. O pai, sem saber disso, resolveu ir atrás dela na Europa, a fim de resgatá-la das mãos dos nazistas. Ao chegar à Alemanha, Motel foi preso e levado a um campo de concentração, onde morreu. Genny conseguiu se salvar.
Quando conversei com Beloch, em seu apartamento no bairro Fonte da Saudade, no Rio de Janeiro, ele estava empolgado com o lançamento do dicionário na Suíça, pois espera que a tradução em inglês venha a dar visibilidade internacional a essas pessoas tão importantes para o Brasil. Ao seu lado, estava seu filho, Heitor Beloch, estudante de história na PUC–Rio, que ajudou informalmente no projeto. Foi Heitor quem alertou a equipe de pesquisadores que o ator Henrique Martins, que fez enorme sucesso nos anos 1960 como protagonista da novela O Sheik de Agadir, era o judeu alemão Heinz Schlesinger, que aportou no Brasil aos 5 anos, em 1939, junto com sua família.
“Esses imigrantes trazem com eles uma grande bagagem cultural e científica, contribuindo para o desenvolvimento dos países onde buscam refúgio”, disse Beloch, ressaltando que o dicionário abre os olhos da sociedade para a importância dos refugiados para a vida de um país. É o que também diz Fábio Koifman no prefácio. “A edição desse dicionário ocorre em um tempo em que milhares de pessoas buscam asilo e têm dificuldade em encontrar refúgio”, escreve o historiador. “Uma ajuda humanitária materializada pela oportunidade de uma nova vida pode ser muito frutífera, não só para essas pessoas como também para a nossa sociedade.”
O dicionário é, por tudo isso, um elogio à tolerância e uma forte manifestação de apreço pela ciência, as técnicas e as artes – qualidades tanto mais valiosas neste momento, quando ocorre no país o movimento contrário do registrado no livro. Em vez da chegada de uma leva de talentos, o que se vê é uma multidão de cientistas indo embora, por causa das adversidades crescentes.
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