ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Glúten e glitter
A padaria O Pão Que o Viado Amassou arrasa em Curitiba
Isadora Rupp | Edição 182, Novembro 2021
Quando o palco ainda era o local de trabalho do ator, trapezista e professor de circo Gabriel Castro, ele penou para que os críticos o chamassem pelo prenome em seus comentários. “Madonna, Cher, Beyoncé, Alcione – nenhuma delas precisa de um sobrenome”, diz ele, trajado de chef de cozinha, com a calça quadriculada e o dólmã (o casaco branco com vários botões), além da touca bordada com uma pequena bandeira LGBTQIA+.
Castro, que acabou desencanando do fato de preferirem escrever o seu sobrenome, é o criador da padaria O Pão Que o Viado Amassou, em Curitiba, que não existe somente para vender baguetes e bolos, mas quer também ampliar o diálogo das pessoas em geral com o movimento LGBTQIA+. No casarão no bairro Rebouças (área industrial da cidade até a década de 1970), os clientes se espalham pelo jardim em mesas com cadeiras nas cores do arco-íris para comer o sanduíche Vai Passar Mal (trecho da música Corpo Sensual, de Pabllo Vittar) ou a focaccia de alecrim e sal grosso, devidamente adornada com glitter comestível.
O glitter foi incorporado depois de inúmeros testes e dores de coração pelo tanto de receita que deu errado – 5 gramas do produto custam 15 reais. “Alguns pães ficam bons com o glitter se você coloca na massa antes de assar, outros depois. Ih, bicha, é chato, é pesquisa”, explica Castro, de 35 anos. Agora, ele tem insistido na criação da David Broa, em formato de raio, uma homenagem ao músico David Bowie.
Para a sobremesa, a opção é o Cookie Brilha, com gotas de chocolate e massa reluzente. Quem deseja receber em casa, pode optar pelo Comboiola, que inclui pão de batata e um pão doce em formato de trança, chamado Queen Bey (no caso, a cantora Beyoncé).
Os clientes que preferem a parte interna da padaria podem se alojar ao lado de um altar construído para a cantora Cher, com uma inscrição que diz: “Vai quebrando, Cher, toda a maldição e feitiçaria.” Ou conferir uma linha do tempo com datas significativas para o movimento LGBTQIA+ no Brasil, como a da eleição da vereadora Kátia Tapety, em 1992, no Piauí, primeira mulher trans a assumir um cargo político no Brasil. A equipe da padaria, formada por quinze pessoas, é 100% LGBTQIA+ e atende com toucas também da cor da bandeira do movimento, cheias de glitter, claro.
Castro faz questão de que a linha de frente do atendimento seja formada por pessoas trans. “A gente está no centro do Rebouças. Para muitas senhoras, o único contato com uma pessoa trans vai ser aqui”, diz. O padeiro também escolheu o ponto comercial com cuidado: um casarão com amplo recuo da rua e portão alto e gradeado. “Infelizmente tudo o que se refere à classe LGBTQIA+ ainda é resistência. Sei o ódio que a minha placa atrai. Não poderia ter uma casa virada para a rua. Não ia ter vidraça que sustentasse.”
Gabriel Castro começou a produzir pães depois da chegada da pandemia. O ator tinha voltado recentemente para Curitiba, depois de fazer em Portugal um mestrado em teatro (baseado nas teorias do sociólogo Pierre Bourdieu) e passar três meses nos Estados Unidos, onde trabalhou em um circo. Entrou em 2020 com todo o gás, ocupado com as suas aulas de circo e os preparativos do Siri Bloco para o pré-Carnaval de Curitiba (sim, existe folia na República da Lava Jato). Mas teve que parar tudo, por causa da quarentena.
Recluso no apartamento que dividia com dois amigos no Centro de Curitiba, Castro decidiu fazer pão. A primeira receita veio do algoritmo: “Pão fácil sem sovar” foi a frase que ele digitou no YouTube. Apareceu uma receita de pão italiano que ficava pronto em três horas. Ele tentou. Deu errado. Tentou de novo – e nada. A sujeira na cozinha não era um problema, mas um alento. “Precisava ocupar a cabeça e sempre tinha o que limpar. O pão foi um grande amigo para manter a sanidade. E aí virou um esporte, porque eu queria acertar o diacho do pão”, ele relembra.
Por fim, o pão vingou. No começo, Castro dividia a iguaria somente com os colegas do apartamento. Depois, passou a deixar na portaria do prédio para que outros amigos viessem buscar. Começaram a sugerir que ele vendesse os pães, mas Castro resistia. Certo dia uma amiga perguntou como estavam os amigos com quem dividia o teto. “Estão bem. Comendo o pão que o viado amassou”, ele respondeu. Clique! “Eu me ouvi falando isso e pensei: ‘Eita! Vender pão não faz sentido. Mas, se ele for veículo para outra conversa, aí acho legal.” Castro divulgou a venda em cinco grupos do WhatsApp e iniciou as entregas, feitas pelos “motobofes”.
Na primeira semana, recebeu a encomenda de vinte pães. Depois quarenta, sessenta. O fogão de quatro bocas do apartamento ficou pequeno. Ele foi para a casa dos pais, que estavam reclusos no litoral, e aproveitou a cozinha com fogão de seis bocas. Depois, a prima de um amigo cedeu a escola de panificação, então vazia, para que ele preparasse os pedidos, que só aumentavam. Antes de abrir a loja em 23 de setembro de 2021, Castro passou um mês em São Paulo fazendo um curso na escola de panificação Levain, do chef Rogério Shimura.
O Pão Que o Viado Amassou usa a sua página no Instagram (hoje com mais de 40 mil seguidores) para conversar sobre o movimento LGBTQIA+ e tentar extrapolar a bolha. Os posts não são apenas sobre os produtos, mas tratam de diferentes temas.
O ator e padeiro vê na rede a chance de disseminar a cultura queer, que tem códigos muito próprios. “Da mesma forma que alguém fala: ‘E aí, mano?’, tá tudo certo falar: ‘E aí, viado?’ A gente pode enriquecer esse diálogo de diversas maneiras”, acredita Castro, que nunca perde o humor, mas se esmera no comentário crítico. “Todos os ambientes foram construídos para nos diminuir. E, se acabamos nos diminuindo por causa disso, fazemos aporte em um capital simbólico que não queremos. Ih, citei o Bourdieu!”, assusta-se.
O Pão Que o Viado Amassou tem tido excelente receptividade da vizinhança e dos clientes em geral. Até agora, a única reclamação das senhorinhas do bairro é que a padaria não serve chá.