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    Ilustração: Carvall

questões educacionais

O Enem em voo cego

Por que o instituto responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio está em convulsão – e as consequências disso para a prova

Luigi Mazza | 10 nov 2021_17h44
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Na tarde de segunda-feira (8), os grupos de WhatsApp de servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) fervilhavam. Quero parabenizar todos os colegas pela decisão”, escreveu um servidor. “Tô orgulhoso desse momento”, disse outro funcionário. Apesar do tom de festa das mensagens, o que os técnicos do Inep comemoravam não era exatamente um momento feliz: no que os servidores chamaram de “movimento de resistência”, dezenas de funcionários de várias áreas pediram demissão de seus cargos comissionados em protesto contra a “fragilidade técnica e administrativa” do atual presidente do instituto, Danilo Dupas, que está no cargo desde fevereiro deste ano.

Entre 11h44 e 12h25, em sequência, treze servidores assinaram um documento online pedindo exoneração. O fato foi noticiado na imprensa, e a crise escalou. Outros servidores pediram demissão em solidariedade aos colegas. Às duas da tarde, 21 servidores já tinham pedido o boné. Até o fim da noite, o número subiu para 35. A maior parte deles eram coordenadores de áreas ou coordenadores substitutos. Houve demissionários em quatro das seis diretorias do Inep. Com a exoneração, eles não deixaram de ser servidores; apenas abriram mão dos cargos comissionados, que, por serem posições de chefia, representam para os servidores um acréscimo salarial que varia de 1 mil a 4 mil reais.

Responsável pelo Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, o Inep se viu paralisado a dez dias da prova, na qual estão inscritos 4 milhões de estudantes. A debandada dos técnicos criou um vácuo de poder justamente na área mais operacional do instituto. Abaixo do presidente, há seis diretores, cada qual com vários servidores em cargos comissionados (coordenadores, chefes de divisão, etc). Estes últimos comandam o chão de fábrica do Inep: fecham contratos, organizam a elaboração de provas, coordenam a logística e toda a burocracia. Os diretores, que subitamente perderam vários de seus coordenadores, ficaram de mãos atadas. Os servidores, ao perder seus chefes diretos, ficaram à deriva.

Em um dos grupos de WhatsApp do Inep, o clima era de euforia e espanto com as demissões em série. “Muita gente me mandando mensagem, perguntando o que está acontecendo”, relatou um dos servidores. “A casa caiu”, resumiu um de seus colegas.

 

Danilo Dupas é o quarto presidente do Inep em menos de três anos. Assumiu o cargo em fevereiro, indicado pelo ministro Milton Ribeiro, que pediu que Dupas fizesse uma gestão “em consonância com a visão educacional do senhor presidente da República”. Hoje o instituto enfrenta a maior crise desde o começo do governo Bolsonaro. Além de nomear figuras exóticas para o Conselho Consultivo do Inep – entre elas um deputado estadual de São Paulo que nunca trabalhou com educação e defende a militarização de escolas –, Dupas tentou intervir na elaboração da prova do Enem de uma forma nunca antes vista. Em maio, a cúpula do Inep quis impor uma “lista paralela” de professores para montar a prova, da qual faziam parte figuras ligadas ao movimento bolsonarista “Docentes pela Liberdade” e a escolas evangélicas. Após uma reação forte dos servidores que planejam o Enem, a lista acabou sendo engavetada e a prova ficou pronta, em setembro, sem maiores transtornos.

De lá para cá, os atritos entre Dupas e o corpo técnico do Inep só cresceram, por várias razões. Uma delas é a rotatividade dos cargos e a gestão caótica. Em abril, Dupas demitiu o então diretor de Tecnologia, Camilo Mussi, que estava no cargo desde 2016. Para o seu lugar, foi nomeado um servidor do Ministério da Economia que só durou seis meses no cargo. Pediu demissão em setembro, alegando razões pessoais. Segundo seus subordinados, os motivos foram outros: há tempos a diretoria pedia que fossem contratados novos profissionais para dar conta de uma carga de trabalho crescente, mas os pedidos nunca foram atendidos. Sabendo dos riscos de tocar uma operação dessa magnitude com uma equipe tão pequena, o diretor preferiu pular fora do barco antes que ele afundasse.

Um de seus subordinados assumiu a diretoria de Tecnologia, mas depois de um mês, em outubro, pediu para sair. Até hoje não foi nomeado um novo diretor para a área, que é de suma importância: é ela que viabiliza o Enem Digital, versão online da prova que é aplicada para 100 mil estudantes no mesmo dia do Enem. O cargo hoje é ocupado interinamente por Roberto Mendes, servidor que agora acumula as funções de diretor e coordenador de área.

A prova digital foi finalizada a tempo e deve ser aplicada normalmente. Mas é uma temeridade que, a dias do exame, a área não tenha um diretor designado e uma equipe preparada para dar conta de possíveis emergências. “Se houver qualquer problema no dia da aplicação, não tem quem possa tomar uma decisão. E como temos cada vez menos funcionários, aumenta o risco de haver erros humanos. Se o sistema falhar pode ocorrer um vazamento de dados, por exemplo, e depois nós é que vamos ser responsabilizados”, afirma uma servidora do Inep lotada na área de Tecnologia, que pediu anonimato com receio de sofrer retaliação. Recentemente, em agosto, uma falha no sistema online do Inep expôs os dados de 5 milhões de alunos que fizeram o Enade, exame que mede a qualidade do ensino superior.

A situação não é mais tranquila na diretoria que cuida diretamente do Enem. De 2019 para cá, a área já teve seis diretores. O último a sair foi Alexandre Gomes da Silva, um coronel especializado em investigar acidentes aéreos e que nunca trabalhou com educação. Ficou três meses no cargo. Saiu em maio, logo depois da tentativa frustrada de intervir na prova. Na semana passada, o coordenador responsável pela montagem do Enem, Eduardo Carvalho de Sousa – servidor com mais de dez anos de casa – também entregou o cargo.

O clima piorou ainda mais quando, em setembro, o presidente do Inep baixou uma portaria que, na prática, altera a forma como os servidores recebem gratificações salariais. Desde 2014, por decisão do TCU, os funcionários do Inep são contemplados com gratificações quando desempenham tarefas que estão além do que seus cargos exigem, como ministrar cursos, participar de bancas examinadoras e fiscalizar provas. Desde então, a presidência do Inep tem contestado os pedidos de gratificação alegando que, como há uma nova portaria em vigor, a decisão do TCU não é mais válida. Com isso, mesmo os servidores que até então estavam indiferentes à crise passaram a se opor à gestão de Dupas.

Que o Inep vinha derretendo em meio à insatisfação crescente dos servidores, quem trabalha na casa já sabia. Só faltava a gota d ‘água. E ela veio: o plantão do Enem.

 

No final de outubro, a presidência do Inep elaborou uma minuta de portaria que falava sobre a equipe de plantão do Enem e do Enade. O texto explicava como seriam organizados os grupos de servidores que, no dia da aplicação das provas, ficariam de plantão para o caso de imprevistos ou de emergências. No vocabulário do Inep, esses grupos são conhecidos como ETIR – Equipes de Incidentes e Respostas. Todo ano ocorrem incidentes e emergências, de modo que isso se tornou procedimento padrão. A portaria, no entanto, tinha uma particularidade que chamou a atenção dos servidores: não havia uma palavra sobre a participação da autoridade máxima do Inep, o presidente Danilo Dupas, no plantão.

Historicamente, e por motivos óbvios, o presidente sempre participa do plantão das provas. Muitas vezes até os ministros da Educação participaram. Trata-se de uma operação complexa: ao menos sessenta servidores são escalados para trabalhar na sede do Inep, em Brasília, onde monitoram a cada segundo o que acontece nos estados e o que está sendo dito nas redes sociais. Para cada capital do Brasil é enviado um servidor do Inep, que acompanha a aplicação do Enem junto da polícia local, da equipe dos Correios e dos representantes do consórcio de empresas que aplicam a prova. Somando tudo, segundo os cálculos de Maria Inês Fini, que presidiu o Inep entre 2016 e 2018, essa operação mobiliza cerca de 600 mil pessoas em todo o país, entre servidores, seguranças, aplicadores de prova etc. É também no plantão do Enem que são tomadas decisões sobre imprevistos surgidos no dia da aplicação de provas. Alguém com voz de comando precisa estar na chefia do plantão.

A omissão de Dupas foi lida pelos servidores como uma estratégia: na avaliação deles, o presidente tomou essa atitude porque não queria ser responsabilizado caso houvesse problemas com o Enem. Dada a situação de desmanche do Inep, o risco de isso acontecer talvez nunca tenha sido tão alto quanto hoje. Na falta de um presidente, a responsabilidade por um fiasco na prova cairia direto no colo dos coordenadores que cuidam do plantão – e, com ela, as consequências. Eles poderiam sofrer processos administrativos, por exemplo.

A reação foi imediata. A Associação de Servidores do Inep (Assinep) convocou para quinta-feira (4) uma assembleia extraordinária no gramado em frente ao prédio do instituto, em Brasília. Apesar do clima chuvoso, entre cinquenta e sessenta servidores apareceram. A associação subiu o tom, na comparação com manifestações anteriores. “Não podemos permitir que essas coisas continuem a acontecer”, bradou o presidente do grupo, Alexandre Retamal, falando num microfone. “É assombroso o que está sendo desenhado em termos de ameaça às responsabilidades do Inep. Eu gostaria muito que o presidente do Inep estivesse aqui pra eu poder falar direto pra ele”, discursou, em seguida, Alexandre Santos, servidor de carreira que já chefiou a diretoria do Enem. Arrancou aplausos dos colegas.

Num panfleto de cinco páginas, redigido na véspera e distribuído no dia, a associação listou os principais problemas vividos pelos servidores: “o assédio moral, o desmonte nas diretorias, a sobrecarga de trabalho e de funções e desconsideração dos aspectos técnicos para a tomada de decisão.” Pela primeira vez, contestaram abertamente a permanência de Dupas no cargo.

No mesmo dia, pouco antes de a assembleia começar, a presidência do Inep voltou atrás e publicou uma nova minuta incluindo o presidente no plantão do Enem. Mas não foi o suficiente para segurar a reação dos servidores. Na sexta-feira pela manhã, o coordenador-geral de Logística de Aplicação, Helio Morais, pediu demissão. Pelo cargo que ocupa, Morais seria um dos principais responsáveis pelo plantão do Enem. É quem faz contato com os Correios – que distribuem a prova –, com a Polícia Federal – que garante a segurança de todo o processo –, com os servidores do Inep espalhados por todos os estados e com o consórcio de empresas que aplicam o exame. Diante de uma emergência, o papel de Morais é subsidiar o presidente do Inep para que ele possa tomar uma decisão no calor do momento. Um exemplo: o que fazer se uma enchente em Manaus inviabilizou a realização da prova em algumas áreas da cidade? E se o tema da redação tiver vazado?

Ainda na sexta-feira, a equipe de Morais cogitou uma renúncia coletiva, o que só se concretizou nesta segunda-feira, depois de muitas conversas. Diante da omissão do presidente do Inep, toda a linha de sucessão que seria responsável pelo plantão do Enem também decidiu pular fora do barco. Os três coordenadores que trabalham junto de Morais na parte de logística entregaram os cargos. A Diretoria de Gestão e Planejamento, da qual eles fazem parte, concentrou a maior parte das demissões: ao menos catorze servidores em cargos comissionados pediram exoneração. Na diretoria que cuida da elaboração e da revisão dos resultados do Enem, houve ao menos quatro baixas na segunda-feira.

O plantão do Enem, com isso, se desmanchou por inteiro em apenas um dia. Até agora, ninguém sabe ao certo o que acontecerá durante a aplicação da prova, daqui a menos de duas semanas. Quase todo o setor de logística do Inep está travado desde a debandada, na segunda-feira, o que põe em risco o planejamento dos próximos exames e a fiscalização de contratos. Pelo conjunto da obra, a associação dos servidores estuda entrar com uma ação contra Dupas no Ministério Público Federal.

Questionada pela piauí sobre a realização do plantão do Enem, a assessoria de imprensa do Inep não enviou resposta até o fechamento desta reportagem. Nesta quarta-feira, convocado a depor na Câmara dos Deputados, Dupas asseverou que tanto o Enem quanto o Enade – marcado para o próximo dia 14 – “serão realizados normalmente”. “As provas estão prontas, e as equipes já foram capacitadas. Está tudo certo e não se preocupem”, disse Dupas, se dirigindo aos estudantes brasileiros enquanto lia um discurso escrito.

 

“O que o presidente do Inep está fazendo é apagar o nosso radar que monitora todas as operações do Enem. Sem os servidores, sem o acompanhamento da prova em tempo real, é como se a gente fizesse um voo às cegas”, resume o servidor Alexandre dos Santos, tentando dimensionar os riscos que estão em jogo no Enem deste ano.

A ex-presidente do Inep Maria Fini corrobora, de forma ainda mais incisiva. “Você acha que são poucos os bandidos que tentam invadir as nossas redes? Que publicam uma prova falsa do Enem fingindo que é a verdadeira? E todas as intempéries que acontecem no dia do exame?”, ela enumera, de forma dramática. “Você acaba tendo que acudir escola que ficou sem luz, outra que ficou sem água. Surgem problemas que têm que ser resolvidos na hora pelo diretor de Tecnologia. Mas o Inep não tem diretor de Tecnologia desde setembro! Você não tem como improvisar essas coisas. São bases de dados extremamente complexas. A essa altura já era pra estar tudo planejado, até a pizza de quem vai fazer plantão de madrugada. É um processo que vinha se aperfeiçoando nos últimos 24 anos. Não é brincadeira. Eu estou extremamente preocupada com o que pode acontecer.”

Em contato com deputados e servidores do Inep, Fini tem dito que não vê possibilidade de Dupas permanecer no cargo. “Se ele mantiver a coisa como está ou se tentar trocar os coordenadores, o problema continuará o mesmo. Resumindo: se ele ficar, não tem Enem”, afirmou à piauí, categórica. “E se ele sair da presidência do Inep, vai ter que ser feita uma intervenção. Botar um decano para tomar conta do Inep por noventa dias, pedindo para os coordenadores voltarem para os seus cargos, e aí abrir uma mesa de negociação.” O decano ideal, na avaliação de Fini e de outros servidores, é Carlos Moreno, diretor de Estatísticas Educacionais. Servidor de carreira do Inep desde 1985, ele está há onze anos à frente da mesma diretoria. Sai governo, entra governo, ninguém ousa tirá-lo do cargo. “Ou é feita essa intervenção, ou não teremos nem Enem nem Censo da Educação Básica nem Censo da Educação Superior nem nada”, sentencia Fini.

O professor Chico Soares, que presidiu o Inep entre 2014 e 2016, também acompanha com apreensão o desenrolar da crise. “Estou vendo servidores de altíssima qualidade pedindo demissão. Pessoas com quem eu trabalhei. O Hélio, da logística, está no Inep há anos. O Eduardo, coordenador do Enem, tem doutorado em física, é especializado nesse trabalho”, lamenta Soares. “Quando uma pessoa como essa está deixando o cargo eu penso comigo mesmo: está acontecendo uma coisa de outro patamar. Nunca houve algo assim.”

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