ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
A grande sacanagem
Um jovem é agredido por racistas no Recife
Angélica Santa Cruz | Edição 183, Dezembro 2021
O recifense Lucas de Lima Paiva tem 20 anos e estuda engenharia na Universidade Federal de Pernambuco. Adora ficar em casa jogando videogame, cultiva um grupo de amigos de infância muito próximos e tem um jeito simpático, principalmente quando sorri e escancara o aparelho que usa nos dentes. É doido para ter filhos, quer dar a eles a mesma educação que recebeu – sem luxos e regalias, mas de qualidade e cheia de afeto.
Por causa da pandemia, andou meio desestimulado com a faculdade e cogitou retomar o sonho antigo de ser jogador de futebol. Em 2015, foi aprovado em um teste para entrar no Sport Clube do Recife, mas não se apresentou. Quis evitar uma decepção na família que se esforçara para mantê-lo em um bom colégio particular. Mora em Boa Viagem, bairro nobre da orla do Recife. Como os pais são separados, vive com a irmã, uma estudante de medicina de 24 anos. Costuma passar horas conversando com ela.
Há um ano, Paiva convive com sentimentos que ele define como “uma mistura de revolta e incompreensão”. Com frequência, demora a pegar no sono. Fica olhando para o teto, reescrevendo um roteiro com tudo o que poderia ter acontecido caso não tivesse saído de casa naquela manhã de sábado, dia 30 de janeiro.
Dias antes desse marco em sua linha do tempo, ele foi convidado por uma amiga da época do colégio para fazer um passeio na lancha do tio dela. Paiva e o restante do grupo só teriam que levar algumas bebidas e, se quisessem, carnes para um churrasco. Ele estava sem grana. Mas o pai, dono de um escritório de contabilidade, lhe ofereceu um trabalho providencial: resolver algumas burocracias para um cliente na Junta Comercial de Pernambuco.
Paiva topou e ganhou 100 reais, certinho o que precisava para fazer bonito no passeio de lancha. Rachou o aluguel de uma van com sete amigos e, lá pelas onze da manhã, chegou ao local de encontro, um píer na Praia de Maria Farinha, em Paulista, a uma hora do Centro do Recife. A lancha faria um dos percursos mais bonitos da região, navegando pelo canal do Rio Timbó e circundando um pontal até alcançar o mar aberto. Palavra de origem tupi, “timbó” quer dizer “o que tem cor branca ou cinzenta”.
A anfitriã da lancha avisou que sua irmã e dois amigos dela também iriam ao passeio, junto com o grupo. Todos responderam: “Beleza, tranquilo.” O passeio começou. Duas horas depois, Paiva resolveu pegar uma cerveja e foi interceptado no caminho por um dos convidados da irmã, Thierry Henrique Santos Rocha. Ouviu dele que, para poder passar, teria que dar uma opinião: se a amiga que os convidara para o passeio deveria namorar com um colega chamado Ênio ou com outro, chamado Neto.
Era uma conversa chatinha. Paiva riu e, para desvencilhar do estorvo, respondeu que o namorado deveria ser uma escolha dela. Como o cara não largava do seu pé, acabou votando em Ênio. Mas Rocha não ficou satisfeito e avisou que não abriria passagem. Paiva é um rapaz tranquilo. Não criou caso e mudou de caminho.
A lancha parou em um ponto do Rio Timbó onde estavam estacionadas várias outras. Paiva conversava com um amigo quando ouviu um grito: “Tu não queria me contrariar, boy? Agora estou perto da minha galera!” O universitário não entendeu que era com ele e seguiu no papo. Irritado com a falta de resposta, Rocha partiu para cima dele. Deu um empurrão, depois um soco e gritou: “Olha pra mim, seu preto!”
Começou um alvoroço, e os amigos apartaram os dois. Rocha continuou gritando: “Tu tem o quê? Tu tem carro? Tu é um fudido na vida, isso aqui não é lugar pra tu, não!” Paiva respondeu: “O que tem a ver se eu tenho carro, cara?” – e anunciou que iria embora. A irmã de Thierry Rocha, Thayanne Santos Lins da Rocha, uma estudante de odontologia, disse: “Vai mesmo, preto e pobre não é pra estar aqui.” O namorado dela, Hygor José Rodrigues de Oliveira, fez coro: ‘Vai, maloqueiro!”
Paiva começou a acenar para pessoas que estavam a bordo de uma das lanchas paradas no ponto. Elas perceberam o que estava acontecendo, chegaram bem perto e pediram que ele saltasse para a embarcação. “Fui me equilibrando por fora e fiquei parado em cima do bico da lancha, pronto para pular na outra lancha”, conta ele. Preocupado, o piloto do barco onde ele estava interrompeu a fuga e disse que o levaria, em segurança, até o píer mais próximo, a MF Marina Clube. Paiva ficou se equilibrando lá no bico da embarcação, segurando uma bolsinha com celular e as chaves de casa e tentando demover um amigo da ideia de segui-lo.
Cinco minutos depois, a lancha chegou à marina. Paiva saltou no píer, mas foi seguido e rapidamente cercado por Rocha, sua irmã e o namorado dela. Com o corpo tremendo de raiva, pensou: “Ele já fez o que queria comigo, vou brigar.” Um amigo tentou puxá-lo dali, mas acabou levando tapas. Até que Paiva foi arrastado para a cozinha por funcionários do restaurante da marina – que também ouviram os insultos racistas vindos dos três agressores, a essa altura ensandecidos.
Já anoitecia quando o trio foi preso pela Polícia Militar e levado à Delegacia Metropolitana de Paulista, enquanto alguns clientes da marina gritavam: “Racistas!” Paiva também foi à delegacia para depor sobre o ocorrido. Os passageiros que estavam na outra lancha, indignados, se dispuseram a testemunhar a seu favor. Alguns deles eram advogados.
O crime foi enquadrado como injúria racial. Em outubro passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que se trata de um crime imprescritível e pode ser equiparado ao de racismo. Em novembro, o Senado seguiu esse entendimento e aprovou, por unanimidade, uma proposta que aumenta a pena de um a três anos para dois a cinco anos, além de multa. O texto agora vai para análise da Câmara dos Deputados.
Mas, à época, o trio só precisou pagar fiança de um salário mínimo cada um e foi para casa. Como Paiva contava com pencas de vídeos que mostram as agressões e depoimentos de testemunhas a seu favor, o Ministério Público de Pernambuco resolveu mudar a tipificação, denunciando os agressores por crime de racismo, que é inafiançável e imprescritível. Juntou à lista os delitos de injúria racial e lesão corporal.
Se condenados, os três podem pegar até oito anos de prisão. O processo está na 1ª Vara Criminal da Comarca de Paulista desde março. Os advogados de Paiva também entraram com uma ação civil por danos morais, que corre na 4ª Vara Civil do Recife. Em setembro passado, a juíza intimou os réus para apresentarem a contestação.
Depois do episódio, Lucas de Lima Paiva deu entrevistas, participou de lives, recebeu mensagens de apoio. Foi reconhecido no supermercado como “o garoto que apanhou na marina”. E aquele dia continua martelando em sua cabeça.
Não é que ele ignorasse o racismo. Quando entrou para a faculdade, ganhou um carro do pai e passou a ser parado por policiais que já chegavam esculachando: “Bota as mãos pra cima! O que tu fez pra ter esse carro?” Às vezes, alguém se aproximava na rua, insistindo para que ele aceitasse uma moedinha. Ao visitar a família da avó, que mora em uma comunidade, levou tapas de policiais na cabeça só porque estava passando na frente deles, na via pública. E teve um Carnaval em que quis acompanhar amigos do colégio na ideia de pintar os cabelos e ouviu da mãe: “Lucas, você sabe que você é preto. A polícia vai lhe estranhar.”
Thierry Rocha, um dos agressores, responde a outro processo, por receptação de combustível roubado no município de Glória do Goitá, na Zona da Mata pernambucana, onde tem um posto de gasolina e uma loja de conveniência. Um mês depois das agressões, a irmã dele, Thayanne Rocha, foi exonerada do cargo de assessora especial do gabinete de um deputado na Assembleia Legislativa de Pernambuco, mas continua no curso de odontologia. E Hygor de Oliveira, o namorado dela, abriu há cinco meses uma revendedora de gás de cozinha. Na época, o advogado dos três, Rafael Torres, chegou a afirmar que teria provas de que os clientes foram agredidos. Procurado pela piauí, ele não respondeu aos pedidos de entrevista.
Paiva sabe que é um sujeito de sorte por ter recursos para levar o caso adiante na Justiça, ao passo que, como ele diz, “milhares de brasileiros estão passando por coisas infinitamente piores neste momento e não terão a menor condição de se defender”. Considera improvável que seus agressores sejam condenados e presos. Se isso acontecer, ele acha que o caso, pelo menos, terá um efeito exemplar.
O fato de ter sido brutalmente escorraçado de um ambiente onde estava com total senso de pertencimento, ao lado de amigos de colégio, o levou para uma dimensão que ele não conhecia. “Tenho raiva de ter ido. Tenho raiva de mim por não ter batido neles. Tenho muita raiva porque isso aconteceu só porque sou negro. Às vezes tenho uma revolta que, para ser sincero, nem sei explicar. Essa grande sacanagem me mudou.”