ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Feira extraordinária
A galeria do artista Vik Muniz em um mercado de Salvador
Clara Rellstab | Edição 183, Dezembro 2021
Na Cidade Baixa, em Salvador, colada à Baía de Todos-os-Santos, está a Feira de São Joaquim. Com mais de 2 mil feirantes e 39 mil m2 de extensão, o espaço é o principal centro de abastecimento da cidade e ali se encontra de tudo um pouco, na confusão típica dos mercados populares. Para comer, alimento de gente e alimento de santo. Para o lar e para si, objetos de palha, barro e couro. Para o espírito, imagens de orixás e santos, guias e patuás. Para todos os sentidos, vai haver agora na feira uma galeria do artista plástico Vik Muniz.
“Chamar de galeria é algo presunçoso”, diz Muniz, sobre o espaço Lugar Comum, cuja inauguração está prevista para este mês de dezembro (ainda sem data definida). Trata-se de um box da feira, com uma ampla vitrine e em formato de “cubo branco” – modelo arquitetônico que vigora na maioria das galerias, com as paredes dos espaços quadrangulares pintadas de branco. As obras não serão comercializadas.
O projeto é bancado pelo próprio artista, e a ideia é permitir que pessoas que não frequentam museus e galerias tenham acesso à arte contemporânea. “Os espaços de arte estão sempre localizados em áreas de convergência econômica, e isso faz com que a experiência da arte contemporânea se torne algo elitista e alienadora”, diz Muniz à piauí. “A ideia é levar esses cubos brancos a áreas onde eles não costumam existir.”
Ele planeja replicar o modelo da Lugar Comum em outros locais, como a Feira de Caruaru, em Pernambuco, e no distrito Capão Redondo, em São Paulo. Para isso, está elaborando um protótipo de espaço expositivo móvel que pode ser implantado em qualquer lugar com o auxílio de uma carreta com guindaste. Os primeiros a expor na galeria em Salvador serão o carioca Ernesto Neto e o suíço Not Vital. Artistas como Maria Nepomuceno, Efrain Almeida e Vanderlei Lopes também estão no radar da Lugar Comum.
Vicente José de Oliveira Muniz, que fará 60 anos neste mês, é paulistano, filho de pais pernambucanos. Sob a alcunha de Vik Muniz, teve seu trabalho abraçado por Nova York, para onde se mudou em 1984. Hoje é um dos nomes mais cotados da arte mundial, graças a obras surpreendentes, pela invenção e o enfoque crítico, como The Best of Life – na qual recria imagens famosas da cultura pop com materiais inusitados como manteiga de amendoim e geleia – e Sugar Children – série de retratos de crianças negras caribenhas delineados com açúcar sobre fundo preto.
A fama internacional fez com que Muniz passasse anos entre Nova York e Paris, sem pisar muitas vezes em seu país – até que Salvador entrou no roteiro. “Eu vinha muito pouco ao Brasil, por não encontrar nenhum contexto sociocultural que me satisfizesse. Fui a Salvador em 1999, para um trabalho com o Projeto Axé [organização sem fins lucrativos que ajuda jovens de rua], e a cidade foi o portal por onde consegui me reaproximar da minha cultura natal”, conta.
Em 2000, ele se mudou para o Brasil, revezando entre Rio de Janeiro e São Paulo. O retorno levou à primeira retrospectiva de seu trabalho, apresentada em museus de São Paulo, do Rio e de Belo Horizonte, e no filme Lixo Extraordinário, dirigido por João Jardim, Karen Harley e Lucy Walker, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2011. O filme mostra Muniz em ação com os catadores de um dos maiores lixões do mundo, o do Jardim Gramacho, um bairro de Duque de Caxias, no estado do Rio – os dejetos recolhidos por ele deram origem a uma série de obras que colocam em questão os critérios de avaliação da arte.
Muniz decidiu criar a galeria em Salvador em agradecimento à cidade que renovou seu interesse pelo Brasil. E escolheu a Feira de São Joaquim porque ali, na sua visão, “o visitante vivencia uma variedade enorme de apelos quase agressivos aos sentidos: tudo remete ao plano físico da existência, à maneira como ele se manifesta bruto e necessário na nossa consciência.” O artista também mandou reformar uma casa na capital baiana para passar temporadas com sua companheira, a produtora cultural Malu Barretto.
A Feira de São Joaquim originalmente se chamava Feira do Sete e ocupava um espaço em frente à rampa do Mercado Modelo, ao lado do Porto de Salvador, onde barcos e saveiros desembarcavam na cidade tudo que não havia por lá. Com a modernização do porto, a feira mudou-se em 1959 para o endereço atual, na Avenida Oscar Pontes, e recebeu o nome de Feira de Água de Meninos, por ficar próxima de onde os órfãos da Casa Pia de São Joaquim tomavam banho de mar. Nessa época, a feira foi cenário de histórias de Jorge Amado, dos trabalhos de Carybé e apareceu em dois filmes do Cinema Novo: A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, e Sol sobre a Lama (1963), de Alex Viany.
Em 1964, o local foi alvo de um incêndio criminoso, episódio lembrado por Gilberto Gil em Água de Meninos, canção de seu álbum de estreia, Louvação, de 1967: Tocaram fogo na feira/Ai, me diga, minha sinhá/Pra onde correu o povo/Pra onde correu a moça/Vinda de Taperoá?/[…] Água de Meninos acabou. A feira foi reconstruída e reinaugurada em 1970, com o nome atual, em referência ao vizinho Terminal Marítimo de São Joaquim, de onde saem os barcos que levam à Ilha de Itaparica.
Em 2012, um projeto de reforma foi iniciado, mas até hoje somente 5% do espaço passou por melhorias. “Pra nossa felicidade, vem essa galeria de Vik Muniz”, diz Nilton Raimundo Ávila Filho, o presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes e Feirantes da Cidade de Salvador. Ele conta que a Lugar Comum es-tá instalada na parte reformada, em um local onde antes havia um bar. “A Feira de São Joaquim é um espaço democrático e pulsante. Já é muito frequentada pelo povo de axé, mas queremos a participação de outras fatias da sociedade.”
De agora em diante, quem for à Feira de São Joaquim, além de fazer suas compras na banca do Seu Pascoal da farinha, da Solange do milho e do Almir do mocotó, vai poder visitar também a galeria do “Seu Vik”. Como diz Ávila Filho, numa máxima: “A feira gosta de quem gosta de feira.”