ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Arte nos cabelos
As esculturas de Jacy Carvalho com seus fios crespos
Emily Almeida | Edição 183, Dezembro 2021
Depois de assistir a uma performance da cantora norte-americana Solange Knowles, a influenciadora digital carioca Jacy Carvalho teve a ideia de um novo projeto e resolveu apresentá-lo a seus seguidores no Instagram. Em 23 de maio do ano passado, ela postou na rede social uma foto sua diante de um fundo neutro, com os olhos fechados, o colo nu, a pele negra reluzindo e um penteado surpreendente. Carvalho havia trançado meticulosamente seu cabelo crespo e moldado a trança em forma circular por trás da cabeça, criando uma grande auréola.
Essa foi a primeira imagem do projeto que ela chamou de Escultura Crespa e nasceu de sua vontade de mostrar às pessoas a beleza e as muitas possibilidades artísticas contidas no seu tipo de cabelo. Desde então, Carvalho publicou no Instagram uma série de fotos em que suas madeixas servem às mais variadas invenções: penteados na forma de um cilindro longo (como os que aparecem na arte do Egito antigo), de raízes de plantas, de pétalas de flores e de uma rede enfeitada com búzios que desce pelo rosto.
A ideia de cada penteado surge quando ela menos espera: às vezes inspirada por música ou uma imagem, outras, por uma forma da natureza que a sensibiliza. Ela então desenha um esboço e elabora o conceito da criação, escolhendo a forma e a tonalidade. Fios sintéticos, madeira, náilon, cola quente, arame… É longa a lista de materiais que utiliza para transformar o cabelo em uma escultura e manter a sustentação dos fios. O tempo de execução também varia e, em alguns casos, pode levar dias.
Ser uma criança negra de cabelo crespo não é fácil. “Desde pequena, de alguma forma, me faziam sentir que meu cabelo estava errado”, conta Carvalho, de 31 anos. Sua mãe recorria a produtos químicos para alisar o cabelo da filha, até que adquirisse uma aparência diferente do estado natural.
Não se tratava apenas de uma questão estética. O alisamento era uma forma de proteção – a mãe sabia que, no Brasil, cabelos crespos não são bem aceitos. Ela também trançava o cabelo de Carvalho e de seus irmãos, seguindo uma tradição ancestral e muito difundida entre as pessoas negras, o que permitiu à menina aprender desde muito cedo os segredos do entrançamento das madeixas.
Na adolescência, o seu gosto por penteados e looks de estilo mais artístico desabrochou. “Eu me vestia e fazia penteados que minha mãe achava estranhos”, diz. Pouco a pouco, ela foi se aperfeiçoando na elaboração dos penteados, com a ajuda de vídeos na internet que ensinavam diferentes técnicas. Até que um dia decidiu parar de consumir o conteúdo alheio e começou a desenvolver suas próprias criações.
Mas descobrir a beleza de seu cabelo crespo foi um caminho ainda mais longo. Ela só conheceu a textura real de seus fios aos 24 anos, quando decidiu fazer a chamada “transição capilar”. Trata-se de um processo em que se abandona o alisamento com produtos que alteram a textura dos fios, e é feito um corte, chamado big chop, que retira toda a parte de cabelo afetado pela química, para recomeçar do zero.
Na mesma época, uma gama de blogueiras e influenciadoras digitais passou a assumir o cabelo natural. Carvalho resolveu gravar vídeos no YouTube para dar dicas às pessoas que, como ela, estavam passando pela transição capilar. “Não considerava aquilo um trabalho, somente um hobby de fim de semana.” Passou também a fazer tranças em outras pessoas, para complementar a renda. Ao mostrar o resultado do trabalho nas redes sociais, atiçou a curiosidade dos seus seguidores, que começaram a pedir conselhos variados: desde que tipo de trança fazer até que produto usar.
A partir de 2018, a internet tornou–se para ela um trabalho em tempo integral, com o aumento do número de seguidores nas redes sociais. A influenciadora conta atualmente com 615 mil inscritos em seu canal no YouTube e 298 mil seguidores no Instagram. Seu principal assunto, claro, são os cabelos. Há pouco, abriu a loja online Ciara Cabelos, com produtos capilares.
A nomenclatura de curvaturas dos fios de cabelo vai de 1a a 4c – sendo 1a, 1b e 1c para os tipos de cabelos lisos; 2a, 2b e 2c para os ondulados; 3a, 3b e 3c para os cacheados; e 4a, 4b e 4c para os crespos. Quando se busca por cabelos naturais na internet, a maioria absoluta dos resultados se refere aos de fios ondulados ou cacheados. Também as dicas de produtos e penteados são direcionadas majoritariamente para cabelos assim. Em filmes, novelas, publicidade, desfiles e revistas de moda raramente se veem pessoas com cabelo crespo. E, mesmo entre os que defendem a valorização do cabelo natural, há texturas que são mais bem aceitas e ganham destaque.
“Eu não tinha muitas opções para me inspirar quando comecei, porque todos os vídeos falavam sobre como fazer para definir os cachos, deixá-los comportados e sem frizz, mas meu cabelo era totalmente o contrário”, diz ela, que tem crespos tipo 4c. Foi assim que, mesmo depois de iniciar a transição capilar, ela voltou a usar produtos químicos para deixar seu cabelo cacheado. Mas, por fim, desistiu – e hoje vive feliz com seu cabelo ao natural.
Carvalho se orgulha do que o Escultura Crespa foi capaz de produzir entre seus seguidores. “O projeto serviu para mostrar que nossos fios também são arte”, diz. “As pessoas ficam maravilhadas com as possibilidades artísticas dos nossos cabelos.” Cabelos crespos, é bom lembrar.