A preparação do ator
Abusos e assédios são inadmissíveis; resta por definir a margem de liberdade consensual a ser preservada na construção de um personagem
Elogiei o que me pareceu ser o “costumeiro trabalho excepcional de preparação de elenco, devido a Fátima Toledo, […]”, ao comentar Urubus (2020), de Claudio Borrelli, faz três semanas (10/11). Para minha surpresa, nove dias depois recebi, enviado por Paulo Betti, o artigo sobre o “manifesto de solidariedade à atriz Denise Weinberg, que afirmou ter sido torturada pela preparadora de elenco Fátima Toledo” (publicado na revista Fórum em 18/11)! Mesmo sem presumir ter havido relação direta entre meu elogio e a mensagem enviada por Betti, não excluo de todo essa possibilidade. Daí minha tentativa que segue de entender a polêmica.
Admiro o trabalho de Toledo desde que assisti a Pixote em 1981. Ao receber o artigo que Betti mandou, custei um pouco a me lembrar das críticas feitas ao método dela nas décadas seguintes, às quais, admito, nunca dei grande atenção. Não me recordo, de qualquer modo, de ter havido alguma denúncia equivalente a tortura, como a que foi feita agora. Acusação que em qualquer circunstância deve ser considerada a sério, ainda mais partindo de uma atriz consagrada do porte de Weinberg, desde que não enseje um linchamento e seja assegurado o direito de Toledo se defender.
Tampouco guardava lembrança do artigo do jornalista e escritor Emilio Fraia, publicado na edição 28 da piauí, em janeiro de 2009, cujo título e linha fina – Como não ser ator e “No curso de Fátima Toledo, a preparadora de elenco de nove entre dez filmes nacionais, é proibido representar” – têm, estranhamente, parti pris desfavorável a Toledo. O texto em si, porém, é equilibrado. Critica alguns aspectos, mas reproduz uma gama de avaliações positivas. Lido hoje, deixa claro que a contestação ao método vem de longe, mas era aprovado por alguns cineastas conceituados.
Fraia começa o artigo descrevendo o exercício do “cachorrinho” com sarcasmo. Feito no primeiro dia do curso de preparação para atuar a cargo de Toledo, “consiste em ficar de quatro, a língua para fora, respirando, respirando. Um pedaço de guardanapo de papel é posicionado no chão, estrategicamente, para receber as estalactites de saliva”. O texto registra ainda o ato repetido da professora de acender cigarros, assim como a crítica de Pedro Cardoso à “perda de autonomia” do ator e o comentário contundente, feito por Mário Bortolotto, ator e diretor de teatro, que se refere “a uma tortura psicológica para conseguir o resultado” do não ator.
Para Cardoso, haver agora no mercado esses adestradores de atores faz parte da desautorização do ator como autor do seu próprio trabalho – “Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é o ator que faz?!, ele ironizou”.
Segundo Bortolotto, “quando [Toledo] pega ator de verdade, faz os caras sofrerem para render uma coisa que eles poderiam render só com o trabalho deles. […] Vejo os atores reclamando muito, mas não fazem isso publicamente porque ela virou uma grife. É uma pessoa forte no cinema nacional, então ninguém fala mal, senão não vai ser chamado para o próximo filme. […] Sem falar que ela trabalha muito a coisa do improviso, né? O roteiro é praticamente ignorado em prol de uma suposta espontaneidade do tipo ‘falem com suas próprias palavras’”.
Em oposição a essas críticas, elogios se sucedem: Hector Babenco afirma que “ela injeta autoconfiança nos não atores. No Pixote, isso foi importante para que os meninos se relacionassem de igual para igual com a gente”; para Sérgio Machado, “a Fátima nos dá atores à flor da pele. Quando se está à flor da pele, é mais fácil ficar alegre, ficar triste. A pessoa fica disponível, grita e chora mais facilmente”; Karim Aïnouz considera que “a novela é tão distante da verdade que, no cinema, os diretores e espectadores acabam tendo uma avidez por experiências físicas reais. Por isso, o trabalho da Fátima é importante”; Walter Salles “considera que um elenco preparado por Fátima adquire ‘uma densidade’ rara. ‘Nenhum ator mente. Todos passam a habitar os seus personagens de forma visceral. Ela potencializa o que está no papel. Basta ver os filmes e atores premiados nos últimos anos no Brasil. Fátima está quase sempre por trás deles.’”
Frente aos prós e contras, como avaliar o trabalho de Toledo do ponto de vista ético? Outra declaração de Machado, citada no mesmo artigo, é um elogio que, dependendo do ponto de vista, pode ser considerado uma sentença condenatória: “Quando a Fátima queria fragilizar a Alice Braga, fazia um trabalho de pressão, colocava uma pessoa deitada em cima dela. Eu tinha na equipe um maquinista que era lutador de jiu-jítsu. Ele ajudava, ficava em cima da Alice, que começava a chorar de um jeito… A Alice ali, com as roupas pequenas da personagem, tentava se mexer, o maquinista a imobilizava, ela chorava, se fragilizava. Tudo no maior respeito. Aquilo era muito comovente. A Alice estava ali chorando, se entregando, isso fez com que toda a equipe também se entregasse. É por isso que no Cidade Baixa o espectador vê uma paixão tão grande” – como alguém que observa de fora e só assiste ao resultado pode criticar a preparadora do elenco quando o diretor e a atriz estão de acordo com seu método de trabalho? Alice Braga declara que “passou com ela [Toledo] pelos processos de trabalho mais intensos e profundos. ‘Mas que me fizeram crescer e buscar cada vez mais me desafiar e alimentar mais’” (Newsletter F5, Folha de S.Paulo, 19/11, atualizado em 24/11).
Denise Weinberg reagiu com veemência aos elogios feitos a Fátima Toledo por Wagner Moura no programa Roda Viva (1/11), em que ele se referiu ao trabalho da preparadora de elenco em Marighella: “A Fátima é uma pessoa que admiro muito, que me ensinou muito”, disse Moura. “É uma parceira. […] Eu acho que o trabalho da Fátima é muito poderoso. Quando eu resolvi fazer o teste de elenco, para mim importava não só o talento daqueles atores, mas eu queria conhecê-los. Eu queria saber quem eles eram para ter perto de mim pessoas que pensassem o filme junto comigo, e isso se encaixa perfeitamente no que a Fátima faz, tanto que o nome dos atores terminou virando o nome dos personagens. Tem a ver com o trabalho dela […].”
A reação enfática de Weinberg evocou a experiência que ela teve trabalhando com Toledo em Linha de Passe (2008): “Uma pessoa do mal, que não entende nada sobre nosso ofício, que me provocou uma hemorragia muito séria por suas condições bárbaras de treinamento, dignas de uma fascista e torturadora. Não consigo entender sua [referindo-se a Moura] defesa por esse ser que deveria e já está fora do nosso meio, graças a Deus” (https://cultura.uol.com.br/noticias/43895_atriz-denuncia-tortura-e-abusos-de-preparadora-de-elenco-do-filme-marighella.html ). A agressividade dos termos e o teor da acusação impressionam. A ferida permanece aberta, a ponto do elogio de Moura, mesmo passados treze anos, levar Weinberg a ter necessidade de se manifestar.
Fátima Toledo não tardou a reagir: “Me deparar com uma cruzada vil de tentativa de destruição de minha reputação com base em mentiras, corroboradas por uma corrente de cancelamento partindo de pessoas que não conhecem meu trabalho, certamente será objeto de medidas judiciais cabíveis”, afirma em entrevista. E ainda: “Em todos esses quarenta anos, a confiança que tantos atores, não atores, diretores e produtores depositaram no método só foi possível por essa entrega honesta para juntos descobrir, enxergar e ir além do lugar-comum”, Fátima completa.
Segundo ela, nunca ninguém foi forçado a participar de alguma preparação, workshop ou classe. “Essa escolha sempre foi e continuará sendo de cada participante” (Newsletter F5, referência acima).
A carta-manifesto “Abuso não é Arte!” foi divulgada com mais de 220 assinaturas de “artistas, trabalhadoras e trabalhadores da cultura” pela ONG Respeito em Cena. Segundo Paulo Betti, um dos signatários, o documento pretende ser a favor de Weinberg, a quem presta solidariedade, assim como “a todas as pessoas que já sofreram abusos e assédios de qualquer tipo no meio artístico e fora dele”, mas sem ser contra Toledo, que não é mencionada – conciliação difícil considerando o teor da crítica feita à preparadora de elenco. Segundo Betti, “atores não querem ser adestrados como animais” e a carta-manifesto é a favor “de que os diretores e preparadores cuidem mais do nosso interesse” (Folha de S.Paulo, Ilustrada, 25/11).
É incontestável que “abusos e assédios” são inadmissíveis, quanto mais “condições bárbaras de treinamento” que causem danos físicos ou mentais a atrizes e atores. Resta por definir, porém, a margem de liberdade consensual a ser preservada na preparação e filmagem, de modo a permitir que ao criar personagens seja possível alcançar maior profundidade, indo além do modelo de interpretação consagrado na televisão.
Quando se aposentou aos 60 anos, em 2018, após 36 de carreira, Daniel Day-Lewis – “o maior ator de todos os tempos”, segundo a revista Esquire – nos deixou uma galeria de personagens notáveis, na criação dos quais ele impôs a si mesmo exigências terríveis em nome da excelência artística. Um dos requisitos mais amenos foi aprender tcheco, embora o roteiro do filme, passado na Tchecoslováquia, fosse falado em inglês. A cada novo projeto, Day-Lewis enfrentava uma nova prova de fogo: passou um ano e meio treinando boxe; escreveu uma carta para Stephen Frears ameaçando quebrar as pernas dele se não o escolhesse para o papel do jovem trabalhador punk; irrompeu em lágrimas e abandonou o palco no meio de uma apresentação de Hamlet; aprendeu a construir canoas, lutar com machadinhas, esfolar e cozinhar animais, e atirar correndo com uma pederneira (antiga arma de fogo acionada por uma fagulha) de 5.4 kg; exigiu ser sempre chamado de “Sr. Presidente” no set, manteve seu sotaque do Kentucky durante toda a filmagem e assinava cartas para seus colegas como “Abe”; emagreceu 22.7 kg e passou dois dias e duas noites em uma solitária sem comida ou água; aprendeu a escrever e pintar com os dedos do pé e passou oito semanas em uma clínica de paralisia cerebral em Dublin – sem ser a única, essa era a escola de Day-Lewis.
Sir Anthony Hopkins, por sua vez, aos 83 anos, não pretende se aposentar, tendo declarado que gosta de trabalhar: “Eu gosto de sair de casa e fazer algo diferente, gosto da novidade. Minha mulher Stella se preocupa com minha saúde e uma vez disse: ‘Você quer continuar até cair morto?’ Eu respondi: ‘Acho que sim, a menos que minha saúde acabe primeiro.’ E ela disse: ‘Bem, isso é bom, se é realmente o que você deseja fazer.’ E é. Atuar é minha paixão.”
Hopkins sempre afirmou que “atuar não é tão difícil”. Referindo-se à sua atuação em Meu Pai (2020), ele disse: “Sempre tento, especialmente como estou envelhecendo, simplificar o processo. Eu não analiso muito. E quando você tem um ótimo roteiro, é como se tivesse o mapa do caminho a seguir. Então, apenas segui o roteiro. Simples assim. E eu não precisava parecer velho, porque estou velho. Então, minhas costas doem e meus joelhos doem. Quando eu era mais jovem, queria complicar tudo. Mas agora, trabalhando como ator, eu apenas aprendo as falas e apareço no set e espero que meus instintos estejam bem” (entrevista completa disponível em https://castingfrontier.com/blog/anthony-hopkins-on-simplifying-acting/.) Sem ser a única, essa é a escola de Hopkins.
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No próximo domingo, 5 de dezembro, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia e Vanessa Oliveira conversam com Claudia Pinheiro e Nanna de Castro, diretora e roteirista de O Novelo (2021), no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. O Novelo estreou em 25 de novembro, após ter sido premiado, em agosto, no 49º Festival de Gramado, como Melhor Filme pelo voto do público, e Nando Cunha ter sido escolhido Melhor Ator. O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/fKhELnTwfio.
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