Filme impossível
Transcorrido e filmado durante a pandemia, Mundo Novo tem características de obra inaugural do cinema brasileiro produzido na crise sanitária
Considerado uma “impossibilidade”, informam os créditos finais de Mundo Novo (2021), o projeto acabou se tornando um filme graças a “todos aqueles que somaram”, inclusive o apoio da Lei Aldir Blanc. Escrito por Álvaro Campos e elenco, dirigido também por Campos e produzido por Diogo Dahl, o que parecia inexequível será exibido sexta-feira (17/12) no Festival do Rio, após ter participado da 45ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, no final de outubro.
Em e-mail há uma semana, Campos escreveu: “o fato é que em 2021 juntei uma equipe do Morro do Vidigal e atores desconhecidos pra gravar um longa em plena pandemia. Em seis dias. Com 70 mil reais. E por milagre ele aconteceu e ganhou espaço, mesmo que filmado no estilo da guerrilha que aprendi na EICTV [Escola Internacional de Cinema e Televisão] de Cuba”. Nas palavras do diretor, é “um filme simples. E rico só de sinceridade”.
Ser simples é uma das virtudes de Mundo Novo que, de fato, transborda sinceridade. Mas vai além. A começar pelo fato de ser um dos primeiros, se não for o primeiro, filmes de ficção brasileiros gravados durante a pandemia cujo enredo não só transcorre durante a crise sanitária, mas incorpora como prática corriqueira os procedimentos pessoais surgidos em decorrência da propagação da Covid-19 – os personagens além de usarem máscara seguem os demais protocolos sanitários básicos. Mundo Novo adquire assim características de obra inaugural. Não tem origem na era a.P. (antes da pandemia) nem sofre de envelhecimento precoce, como acontece com parte considerável da produção a que temos assistido desde 2020.
Ter sido realizado além do mais com rapidez, e por custo de produção baixíssimo, é outro feito de alto mérito. Apesar das dificuldades decorrentes da pandemia, incluindo a paralisia da produção audiovisual e o emperramento burocrático dos meios de apoio ao setor, Campos e a equipe de Mundo Novo demonstraram que fazer cinema independente pode ser uma atividade vital, ou seja, necessária para a manutenção da vida. A existência do filme reafirma o óbvio que tem sido desconsiderado – o exercício profissional, inclusive para artistas e técnicos, mulheres e homens, é um direito fundamental e condição de sobrevivência a ser garantida e respeitada.
Quanto ao filme em si, não lhe faltam qualidades específicas, sem as quais não passaria de um caso circunstancial instigante. Com apuro visual resultante da alta qualidade da fotografia em preto & branco de Rita Albano, locações bem escolhidas e elenco de talento formado com nomes pouco conhecidos, Mundo Novo oferece, como pano de fundo, visão realista de uma área circunscrita da Zona Sul do Rio de Janeiro, na qual o Vidigal e o Leblon, o morro e a planície, ambos diante do mar, se contrapõem também em termos sociais. É nesse cenário que o pequeno grupo de personagens se movimenta, convive, conversa, diverge, concorda, discute, briga etc., instigados pelo desejo que Cons (Tati Villela), advogada, e Marcelo/Presto (Nino Batista), artista grafiteiro, têm de comprar um apartamento para morar no Leblon.
Quase tudo se passa no alto do Morro do Vidigal, onde fica o atraente casarão onde moram Charles (Kadu Garcia), que trabalha no mercado financeiro e é irmão mais velho de Marcelo/Presto, e Carlos (Paulo Giannini), livreiro. Com vários níveis, escadarias, muitos cômodos e terraços, o imóvel reflete o embate dos diversos pontos de vista e interesses dos integrantes do grupo, sem maniqueísmos, nem interpretações caricatas. Some-se a isso o final aberto, sem resolução, e nos vemos diante de uma estrutura dramática verdadeiramente moderna, pouco usual no nosso cinema.
Resta especular sobre o sentido do título Mundo Novo. Terá sido a pandemia que mudou o mundo e “não tem mais volta, não”, como Marcelo/Presto diz para Cons sentado na mureta, com o Vidigal e o Leblon a seus pés? Creio talvez não ser bem essa, ou apenas essa, a intenção por trás do nome. Parece haver algo relacionado às “camélias do quilombo do Leblon […] as camélias da segunda abolição/Cadê elas?/Somos assim, capoeiras das ruas do Rio/Será sem fim o sofrer do povo do Brasil/Nele, em mim, vive o refrão/As camélias da segunda abolição virão […]” – versos de Gilberto Gil e Caetano Veloso que encerram Mundo Novo.
Busca rápida no Google ensina que As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura, de Eduardo Silva, publicado em 2003, foi escrito após o autor notar a existência de três pés de camélia no jardim da Casa de Rui Barbosa e, a partir daí, entender melhor o sentido de um texto do próprio Rui Barbosa em que a flor é apresentada como símbolo da resistência à escravidão (Fonte: release Companhia das Letras). O quilombo do Leblon “abrigava escravos fugidos, mas também reuniões, discussões e ações sobre o fim da escravidão no Brasil” (Leblon, Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo, conforme citação de Ivan Finotti, “Livro resgata memória do Quilombo do Leblon”, Folha de S.Paulo, 20.nov. 2019). Parece haver em Mundo Novo, portanto, a tentativa de associar, através da música de Gil e Veloso, o Vidigal, onde é situado parte do enredo, com o antigo local de resistência à escravidão no Alto Leblon.
Que Mundo Novo possa ter passado quase em branco na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, depõe mais contra a própria Mostra do que em desfavor do filme. Dados seus predicados, não ter recebido a atenção que merece da mídia e do público deve resultar em parte da baixa frequência atual às salas de cinema e do maior interesse dos cinéfilos festivaleiros paulistanos por produções estrangeiras, mas também do gigantismo da Mostra que leva muitos filmes, em especial brasileiros, a participarem do evento quase incógnitos.
O Festival do Rio, com características semelhantes à Mostra, inclusive o gigantismo, também torna difícil para muitos filmes se destacarem. Vejamos o que acontecerá nos próximos dias com Mundo Novo, que terá duas sessões na Première Brasil, participando da competição Longa Ficção. Uma na sexta-feira (17/12), às 18 horas, no Cinépolis Lagoon, com ingresso gratuito; outra no sábado (18/12), com ingresso pago, no Estação NET Botafogo 1, às 13h30.
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No próximo domingo (19/12), como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam com Gabriel Rocha Gaspar e Vanessa Oliveira sobre De Bala em Prosa – Vozes da Resistência ao Genocídio Negro (Editora Elefante, 2020), no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Gaspar e Oliveira escreveram Brancos, Sangrem Conosco, apresentação da coletânea de textos em prosa escritos por afrodescendentes a partir das mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, vítimas de 257 tiros dados por doze militares em 7 de abril de 2019. Esse será o último programa #DomingoAoVivo de 2021, que voltará a partir de 30 de janeiro. Será um programa peculiar pois terá como tema central um livro em vez de um filme. O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/Gs2GFe57JuQ .
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