ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
O casal federal
Dois socialistas e um bebê no Congresso Nacional
Luigi Mazza | Edição 185, Fevereiro 2022
O corredor estava abarrotado de homens de terno e mulheres de tailleur. Enquanto alguns caminhavam apressados, outros formavam rodinhas de conversa. Eram onze da manhã de uma quarta-feira, pico da semana de trabalho na Câmara dos Deputados. Vários projetos de lei eram discutidos simultaneamente nos plenários onde funcionam as comissões da Casa. No meio da muvuca, Débora Cruz destoava da cena: ziguezagueando pela galeria, ela dava pequenos piques e freava, pilotando um carrinho de bebê. Fazia de tudo para que a criança não abrisse um berreiro: cócegas, caras e bocas.
Esse tipo de serviço faz parte da rotina profissional de Cruz, que trabalha como assessora de imprensa da deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP), mãe da criança. O bebê de sete meses, Hugo, circula com frequência pelo Congresso. Como ele ainda está em fase de amamentação, Bomfim não tem alternativa senão levá-lo para o trabalho. O que vem a calhar, já que o pai do menino, Glauber Braga (Psol-RJ), também é deputado.
O casal tenta programar suas agendas de modo que um dos dois sempre esteja disponível para cuidar da criança. Muitas vezes não dá certo. Naquela tarde de dezembro do ano passado, a assessora andava de lá para cá com o carrinho de bebê, apreensiva, aguardando que Braga e Bomfim saíssem do Plenário 10, onde participavam de uma reunião da Comissão de Educação da Câmara, da qual fazem parte. Eles estavam atrasados para uma consulta no pediatra.
Tanto Bomfim quanto Braga tinham um projeto para relatar. Preocupados com o horário, os dois pediram ao presidente da sessão, deputado Gastão Vieira (Pros-MA), que invertesse a pauta do dia, permitindo que o casal votasse seus projetos antes dos demais colegas. “É uma decisão de avô. Sempre me sensibilizo com essas coisas”, justificou Vieira. Mas o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) não aceitou a mudança – e Hugo chegou atrasado à consulta.
Glauber Braga, de 39 anos, e Sâmia Bomfim, de 32 anos, se conheceram no exercício da militância. Ele despontou na política em Nova Friburgo, no estado do Rio, e está em seu quarto mandato na Câmara. Ela ganhou notoriedade no movimento universitário em São Paulo e agora exerce seu primeiro mandato. Depois de um ano trabalhando lado a lado na bancada do Psol em Brasília, os dois começaram a namorar no final de 2019. O romance, catalisado pelo isolamento social na pandemia, logo se converteu em união estável.
Hugo é o primeiro filho do casal. O menino nasceu em junho de 2021, em São Paulo, de parto natural. Foi uma jornada exaustiva: Bomfim começou a sentir as contrações numa segunda-feira, mas a criança só nasceu três dias depois, na quinta-feira à tarde. A equipe médica precisou usar ocitocina para induzir o parto. “Eu fiquei muito abalada. Não sei de onde tirei forças na hora do nascimento”, diz a deputada.
Na sala de parto, uma caixinha de som reproduzia uma playlist de músicas ambiente. O pai lembra que, em dado momento, reconheceu os acordes iniciais de Reconvexo, samba de Caetano Veloso que se tornou uma espécie de canção oficial do casal. “Quando ouvi a música tocar, imediatamente me tranquilizei e pensei: ‘Ele vai nascer agora’”, conta Braga. “Mas a música foi passando, e o Hugo não nascia. Até que, na última palavra, quando o Caetano canta ‘Reconvexooo’, a gente ouviu o choro: ‘Uááá!’ E ele nasceu.”
O nome da criança foi uma sugestão do pai, que quis homenagear o ex-presidente da Venezuela, um de seus ídolos. “Hugo Rafael Chávez Frias, nascido em Sabaneta de Barinas”, recita Braga, com devoção. A mãe não embarcou na ideia de primeira. “Não vetei, mas não era algo que me tocava, a princípio”, explica Bomfim. Isso mudou quando, durante uma de suas leituras, ela descobriu que Nahuel Moreno, revolucionário argentino que inspirou o morenismo – corrente socialista à qual a deputada se filia –, também se chamava Hugo. “Aí eu aceitei. Virou uma homenagem do pai e da mãe.”
Com a chegada do bebê, os deputados incorporaram à militância socialista as questões da maternidade. Em maio do ano passado, antes de Hugo nascer, Bomfim e Braga protocolaram juntos um projeto de lei que cria o Estatuto da Parentalidade. O texto, que ainda está nas etapas iniciais de tramitação, propõe que pais e mães tenham direito a seis meses de licença após o nascimento de um filho. A lei atual reserva quatro meses para a mãe e cinco dias para o pai – o que acaba jogando todo o trabalho de criação no colo das mulheres.
“Tudo o que dizem sobre a dupla jornada da mulher eu passei a viver”, diz Bomfim, em seu gabinete na Câmara, onde o casal recebeu a piauí. A deputada vestia uma blusa rosa, molhada no ombro por uma golfada que Hugo havia lançado minutos antes. Nas paredes do gabinete há pôsteres de Karl Marx e Marielle Franco. A essa paisagem se somou recentemente um tapetinho de borracha colorido, onde fica o bebê. Os assessores já se habituaram a trabalhar ouvindo músicas do Mundo Bita e de Sandy e Junior – o hit Quando Você Passa, lançado pela dupla em 2001, é infalível para acalmar Hugo.
O casal espera que, com o fim da amamentação exclusiva, a rotina do bebê se torne menos intensa e possam matricular a criança numa creche. Mas nem isso será fácil. “O trabalho aqui na Câmara começa de manhã e termina de madrugada. Que creche vai aceitar uma criança com esses horários?”, lamenta Bonfim. “Mesmo contratando uma babá seria complicado. Ela precisaria trabalhar manhã, tarde, noite e madrugada…”
O menino, enquanto isso, vive uma rotina de congressista. Acorda cedo e vai para o Congresso no colo dos pais, que moram em um apartamento funcional em Brasília. Ao longo do dia, Hugo acompanha reuniões de gabinete e tira sonecas, supervisionado pelo casal ou por seus assessores. Com meses de vida, já embarcou em mais aviões do que a maioria dos brasileiros numa vida inteira. É habitué da ponte aérea Brasília-São Paulo-Rio de Janeiro, cidades onde está amarrado a compromissos profissionais e familiares.
A experiência política do casal rendeu certos aprendizados para a criança, que já exibe – acreditam os pais – a mesma verve de esquerda. Segundo eles, o menino chora quando se depara com bolsonaristas. “Da última vez, o Hugo estava no elevador, sorrindo, até que entrou uma figura simbólica da extrema direita. Foi só olhar para ela que ele começou a berrar: ‘Uááá!’”, diverte-se Braga, com um sorriso de canto de boca, orgulhoso. “Na primeira vez você pensa que é exagero de pai e de mãe. Mas quando acontece de novo…”, prossegue o deputado. “Do nada o tempo virou. Impressionante”, completa a mãe.
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