ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
A fazedora tem pressa
Uma funcionária pública desperta as instituições para as necessidades dos contribuintes sem-teto
Angélica Santa Cruz | Edição 186, Março 2022
Funcionária da Receita Federal em São Paulo há sete anos, Eleonora Rigotti Meinberg tem um temperamento fazedor, uma ânsia para resolver as coisas de maneira rápida e eficiente, que ela descreve assim: “Vou lá, faço. Show! Próxima…”
No Natal de 2015, por exemplo, ela soube que alguns sem-teto – maltrapilhos, cabelos desgrenhados, sem banho – estavam com vergonha de participar de um almoço especial oferecido por uma igreja católica nas imediações da Avenida Paulista. Rigotti juntou-se a um punhado de colegas de trabalho e obteve autorização para abrir os banheiros do subsolo de uma das delegacias mais movimentadas da Receita Federal na cidade, no bairro da Consolação. Para convencer os chefões, usou um argumento de base tributária: “Se um morador de rua compra um Corote em um bar, paga ISS e ICMS. É um contribuinte, como qualquer outro. Portanto, tem o direito de usar os prédios públicos. Não existe cidadão de segunda classe. Todo mundo paga por tudo.” Corote é uma bebida alcoólica barata com sabores de frutas.
Durante cinco anos, no dia 25 de dezembro, os cinco chuveiros quentes do prédio ficaram abertos para quem vivia nas ruas. Com o tempo, o serviço foi batizado de “banho solidário” e passou a funcionar também em outras datas comemorativas, como a Páscoa. Quando a pandemia chegou, o prédio foi fechado e o banhão, suspenso. Rigotti ficou inconsolável.
Em abril de 2020, ela encontrou outra oportunidade de auxiliar os pagadores de tributos sem casa para morar. Estava em home office quando viu na tevê a notícia de que o governo iria liberar um auxílio emergencial, em cinco parcelas de 600 reais. Os cadastros para receber o benefício deveriam ser feitos online. “Na hora me deu um tilt: ‘Ué, mas a maioria dos sem-teto não tem celular!’”, conta.
No dia seguinte, colocou máscara e escudo facial, vestiu camiseta, legging e tênis. Escreveu em uma cartolina a frase “Cadastro! Consulta Benefício Emergencial”, e prendeu em uma mochila, com um cabo de vassoura. Vista de longe, lembrava aquele pessoal que anuncia a compra de ouro. Foi oferecer ajuda na ladeira da Rua José Bonifácio, um dos lugares no Centro de São Paulo onde há distribuição de marmitas.
Em segundos, viu-se cercada por um grupo de interessados. “Preenchi o primeiro cadastro, coloquei meu número de celular, deu certo. Fui fazer o do segundo e descobri que estavam exigindo um número diferente de telefone para cada cadastro.” Ali mesmo, ela acionou uma corrente entre familiares, amigos, parentes de amigos e amigos de parentes que se dispuseram a fornecer seus números. “Foi até bom, porque as pessoas, presas em casa, se sentiam ajudando”, diz.
Não demorou para a servidora pública perceber que o buraco era bem mais embaixo. Mesmo os sem-teto que tinham benefícios aprovados não conseguiam sacar o dinheiro na Caixa Econômica Federal. Às vezes, eram impedidos por seguranças de entrar nas agências, porque estavam com roupas sujas e carregavam grandes sacos com objetos pessoais. A confusão era grande. Alguns gerentes achavam que para pegar o benefício era preciso ter uma conta-corrente, quando bastava o código enviado para o celular cadastrado.
As pessoas em situação de rua ficavam por ali, sem conseguir colocar as mãos no dinheiro a que tinham direito. Rigotti passou a ir com elas nas agências, àquela altura com horários e número de funcionários limitados por causa da Covid. No começo, precisou dar carteiradas para impor sua presença. “Mostrei meu crachá de assistente técnico-administrativa da Receita Federal”, conta, com uma expressão que pode ser lida como “fazer o quê?”. Depois, travou amizade com os gerentes – e aí já transpunha direto as complicadas portas giratórias, sacava o benefício e entregava aos sem-teto.
De abril a julho de 2020, Rigotti saiu de casa todos os dias entre as 11h e 12h30, para prestar assistência nas ruas. Lidou com casos absurdos, como os dos mais excluídos entre os excluídos: os que não tinham documentos. Uma identificação com foto era obrigatória para sacar o auxílio emergencial, mas as unidades do Poupatempo, encarregadas de emitir as carteiras de identidade, pararam de funcionar. “Comecei a encher o saco de autoridades que conheço, pedindo providências. Estavam todas confusas, sabiam menos do que eu, um caos. Alguns, irritados, me bloquearam no celular.”
A certa altura, o Ministério Público Federal de São Paulo convocou reuniões online com vários órgãos para achar maneiras de resolver os problemas na distribuição do auxílio para os sem-teto. “Eleonora participou de todas. Relatava os problemas, sugeria soluções e criticava quando não dava certo”, recorda Priscila Costa Schreiner Roder, a procuradora federal que puxou as conversas. “Com base nas informações de Eleonora, conseguimos que a Caixa fizesse uma agência-modelo no bairro da Sé, com funcionários treinados para atender à população carente e tradutores para os imigrantes”, diz Anna Trotta Yaryd, promotora de Justiça de Direitos Humanos da área da Inclusão Social do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Na noite de 4 de maio de 2020, a atuação de Rigotti tomou contornos tragicômicos. Ela foi chamada para participar de uma reunião virtual de emergência, convocada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A pauta: como ajudar os indocumentados. Quando entrou no encontro online, topou com um clima de chumbo. As promotoras perguntavam por que raios, àquela altura da pandemia, os órgãos responsáveis ainda não estavam organizados para atendê-los. Os representantes da Polícia Civil explicaram que as unidades do Poupatempo haviam sido fechadas em respeito a um decreto estadual – eles até poderiam tentar emitir os RGs usando malas portáteis que colhiam digitais, mas, com o fechamento dos prédios públicos, não tinham onde fazer isso.
Rigotti entrou na conversa. “Eu disse: ‘Péra, vou arrumar um lugar!” Por volta das oito da noite, chegou à unidade do Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), na Sé, onde funciona o Chá do Padre, um dos maiores serviços de atendimento à população vulnerável de São Paulo. “Ela perguntou se a polícia poderia fazer os RGs aqui. Os frades responderam que sim. No dia seguinte, já apareceu com tudo articulado, trazendo dois delegados. Uma iniciativa impressionante”, diz Rosangela Pezoti, coordenadora de programas do Sefras.
Por dois dias, Rigotti foi até a Praça da Sé buscar indocumentados para levá-los até o prédio onde funciona o Chá do Padre. Nesse período, foram emitidos quatrocentos RGs. A procura ficou tão gigantesca que o mutirão foi transferido para um prédio da Polícia Civil na região central. “No fim, os policiais foram incríveis. E olha que teve uns bafos na fila, como o cachorro de um sem-teto que mordeu um delegado”, conta.
Outros perrengues, claro, brotaram. Depois que os auxílios foram liberados, destrinchar o complicado calendário de pagamentos virou missão árdua. Rigotti fez cartazes explicativos e colou em lugares estratégicos do Centro da cidade – inclusive em francês e espanhol, para orientar os imigrantes haitianos e venezuelanos.
Nos meses mais dramáticos da quarentena, vários grupos se formaram para levar comida para os sem-teto no Centro de São Paulo. Havia os que, vestindo camisetas iguais, davam as mãos e soltavam gritos de guerra antes de distribuir quentinhas. Havia os que preferiam fazer uma oração antes de começar as doações. Rigotti fazia o gênero solitário e rápido, pouco afeito a gestos escancarados (“não gosto de abraços”). Nem alta nem baixa, magrinha e com seus longos cabelos escuros quase sempre presos, passava sem alarde pela crescente massa humana da população em situação de rua – hoje quase 32 mil pessoas, de acordo com o último Censo feito pela Prefeitura de São Paulo, 31% a mais que em 2019. Com 35 anos, formada em políticas públicas pela USP, ela defende que, para ajudar pessoas de um jeito eficiente, bom mesmo é despertar as instituições pagas pelo povo para que assumam a bucha.
Casada com um advogado, Rigotti está grávida. Com medo dos efeitos da Ômicron, só sai de casa para o essencial. As autoridades podem, por um tempo, dormir sossegadas.