ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Jornada do herói
Indígenas filmam sua luta contra grileiros em Rondônia
Bernardo Esteves | Edição 186, Março 2022
Os grileiros se empoderaram no governo de Jair Bolsonaro, um presidente que se elegeu prometendo acabar com as multas ambientais e não demarcar novas terras indígenas. É o caso de Martins, retratado no filme The Territory. Ele construiu “um ranchinho” no meio de uma terra indígena em Rondônia e quer levar a família para morar ali. “É só o povo acreditar e vir cada um cuidar do seu pedaço de chão”, afirma, no documentário (que não diz o prenome do grileiro). “E hoje eu já acredito que isso aqui é meu.”
Martins e seus ajudantes levaram o documentarista norte-americano Alex Pritz para vê-los colocar fogo numa área de floresta recém-desmatada e ofereceram ao diretor uma perspectiva única para registrar a queimada. As imagens perturbadoras revelam a complexidade da operação e desmascaram as mentiras de Bolsonaro, que em seus discursos já atribuiu as queimadas na Amazônia a ONGs, aos povos indígenas e até a Leonardo DiCaprio.
O território em questão é a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que foi criada em 1985 e ocupa uma área de quase 19 mil km2, um pouco menor que o estado de Sergipe. Vivem ali integrantes de nove povos indígenas, incluindo três que permanecem isolados. Os uru-eu-wau-waus hoje são menos de duzentos, mas eram milhares quando foram contatados em 1981. Cercada de fazendas, a terra indígena funcionou como um escudo contra o avanço do desmatamento. Sempre esteve na mira dos invasores, mas a corda esticou nos últimos anos. “Esse governo afetou nossa vida de forma drástica”, disse Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, um líder indígena de 21 anos, protagonista do filme.
Quando viu que Bolsonaro iria ganhar as eleições, Pritz decidiu vir ao Brasil fazer um filme sobre os que estavam lutando pela Amazônia. Preferiu se concentrar na resistência do povo Uru-Eu-Wau-Wau, depois de conversar com a indigenista Ivaneide Cardozo, outra personagem central do filme. Conhecida como Neidinha Suruí, ela é fundadora da Kanindé, uma associação que atua na defesa dos uru-eu-wau-waus, e mãe de Txai Suruí, a ativista indígena que discursou na Conferência do Clima das Nações Unidas em Glasgow (Escócia), em novembro do ano passado, e que coproduziu o filme.
Pritz foi ao território pela primeira vez em 2018, pouco depois das eleições, e ficou espantado ao deparar com pessoas que se sentiam autorizadas a invadir a terra indígena, estimuladas pelo discurso de Bolsonaro. “Era para ser só uma viagem de preparação, mas logo nos demos conta de que a história estava acontecendo naquele momento, que era urgente e era intensa”, disse o diretor à piauí. Pritz decidiu começar o filme de uma vez. The Territory estreou no fim de janeiro no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e venceu em duas categorias: o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio do Público de Documentário do Cinema Mundial. Ainda não tem data de estreia no Brasil.
O filme mostra a conversão de Bitaté em líder. Nas cenas iniciais vemos o jovem indígena, então com 18 anos, brincando no rio com crianças. Ele é apontado por seus pares para ser presidente da Associação do Povo Indígena Uru-Eu-Wau-Wau – Jupaú, que defende os interesses de seu povo, mas parece não se sentir preparado.
Bitaté foi chamado a ter mais protagonismo depois do assassinato de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, um professor que era o articulador dos Guardiões da Floresta, grupo criado para monitorar a terra indígena com ajuda de novas tecnologias, como drones e GPS. O corpo de Ari foi encontrado perto de sua moto numa estrada que corta o território, com sinais de lesão no pescoço. As investigações não apontaram o culpado do assassinato, mas os uru-eu-wau-waus não têm dúvida. “Foi claramente uma retaliação dos invasores que a gente vem denunciando”, contou Bitaté. O indígena disse que sua cultura não lhe permite falar das pessoas que já se foram, mas deu um jeito de evocar o amigo. “Não superamos a morte do Ari.” O crime aconteceu em 18 de abril de 2020, na véspera do Dia do Índio. “Essa comemoração não existe mais pra gente.”
A pandemia foi outro baque para os uru-eu-wau-waus, e o coronavírus deixou lembranças sinistras. “A maioria do meu povo morreu de gripe, malária e outras doenças que nunca tínhamos visto”, afirmou Bitaté. Como a equipe de Pritz não pôde mais ir ao território, cujo acesso foi proibido para não indígenas, o diretor decidiu enviar câmeras profissionais aos uru-eu-wau-waus e fez oficinas de filmagem e edição por teleconferência. Assim, eles próprios continuaram a registrar sua luta contra os invasores. Pritz recebeu quase oitenta horas de imagens gravadas pelos indígenas.
Com o vírus, veio também uma nova investida dos grileiros. “Para os invasores a pandemia nunca existiu”, disse Bitaté. “Sentimos pressão de todos os lados.” Numa chamada de vídeo com a piauí no início de fevereiro, ele contou que dias antes os Guardiões da Floresta haviam encontrado uma área desmatada equivalente a quatro campos de futebol a apenas 4 km da sua aldeia. “A gente hoje não consegue dormir bem, com medo de que possam nos atacar.”
Cansados de esperar alguma ação de órgãos como a Funai ou o Ibama, paralisados no governo Bolsonaro, Bitaté e outras lideranças do povo Uru-Eu-Wau-Wau decidiram defender eles mesmos seu território. “Vamos pro mato fazer o que deve ser feito para tentar parar os invasores”, disse. As imagens filmadas pelos indígenas mostram os resultados dessa reação. Os uru-eu-wau-waus puseram fogo numa cabana de madeira que servia de base para os grileiros. No filme, Bitaté mostra para a câmera o aparelho de gps, para atestar que os grileiros haviam cometido uma infração, e diz: “Dentro da terra indígena a gente queima tudo.”
Bitaté é também quem lidera o grupo que cerca um invasor encontrado numa trilha e lhe dá voz de prisão, enquanto seus colegas miram com arcos e flechas. “O senhor está preso. Até nós chamarmos os órgãos responsáveis”, anuncia o rapaz no documentário, antes de tranquilizar o homem de olhar assustado. “A gente não vai fazer nada. A gente só está usando arco e flecha porque é nosso trabalho e estamos monitorando.” O indígena dá ao invasor uma máscara para proteção contra a Covid e borrifa suas mãos com álcool em gel antes de levá-lo para a aldeia.
“Eu amo a cena da prisão”, disse Pritz. “É um exemplo maravilhoso da coragem de Bitaté.” Para o diretor, trata-se da conclusão de um ciclo no qual o adolescente inseguro do início ganha confiança e empatia para liderar seu povo. A sequência é uma amostra do tom intenso e muito pessoal das filmagens feitas pelos indígenas. “Essas imagens têm uma urgência que nós não conseguiríamos reproduzir”, comentou Pritz.
O invasor foi levado pela polícia, que chegou à terra indígena acompanhada de agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Mas Bitaté não se deixou iludir pela prisão. “Ele pagou fiança e saiu, e hoje provavelmente está solto”, disse o jovem líder. “Para a gente foi um pouco vitorioso e um pouco uma derrota.”
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