ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Aos pés do povo
Homenagem a político desanima o público de uma escola de samba
Thallys Braga | Edição 186, Março 2022
A roda de percussionistas tenta harmonizar os sons de repiques, caixas de guerra e surdos de segunda. “O que eu fizer vocês repetem, valeu?”, diz o instrutor Márcio André e em seguida bate cinco vezes no repique, produzindo um estrondoso “dagaragadá”. Oito homens balançam a cabeça positivamente, mas só três arriscam imitar o mestre de bateria. “Assim não dá”, diz ele. “Não pode ter medo do instrumento. Tem que tocar forte, tocar com tesão!”
Aos poucos, chegam outros músicos à casa no número 191 da Rua Iguaraçu, em Cosmos, um bairro de classe média na periferia do Rio de Janeiro. E a roda de samba, que começou às 20 horas, vai se ampliando. Às 20h16, já são catorze percussionistas. Ao fundo, uma moça observa, de braços cruzados. Mônica Belo está ali para cantar, mas não sabe se terá oportunidade. “Somos cinco intérpretes, mas hoje só eu apareci para o ensaio. Assim, sem comprometimento, fica difícil.” Ela veste um abadá listrado de verde e branco, cores oficiais da Escola de Samba Unidos de Cosmos. A camiseta tem estampada nas costas a foto do deputado federal Pedro Paulo (União Brasil).
O deputado é o tema deste ano da Unidos de Cosmos. A homenagem estava prevista para o ano passado, mas a festa foi adiada, por causa da Covid. Em abril próximo – quando acontecerão os desfiles no Rio –, a escola finalmente levará à passarela o samba-enredo Pedro Paulo nos Braços do Povo.
A Unidos de Cosmos foi fundada em 1948 e desde então tenta chegar ao Grupo Especial, a panelinha das agremiações ilustres da folia carioca. Nunca ultrapassou, porém, a quinta posição no ranking do Grupo de Acesso, espécie de quarta divisão do Carnaval, cujas escolas não desfilam no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, mas a 18,5 km dali, na Estrada Intendente Magalhães, em Madureira.
Inconformados com o rebaixamento, os carnavalescos estão dispostos a tudo para dar mais brilho à estrela que é símbolo da Unidos de Cosmos. Pelas redes sociais e no boca a boca, tentam sobretudo ampliar a participação dos moradores do bairro no desfile deste ano. Por causa da pandemia ou do viés político do enredo, um bom número de pessoas desistiu de vestir as fantasias da escola. “Com todo respeito, o rapaz não tem nada a ver com a história de Cosmos”, diz, referindo-se ao deputado, um folião que pediu para não ser identificado por receio de criar uma saia justa com a direção da escola de samba. “Se era para homenagear um político, que fosse a Lucinha!” A deputada estadual Lucinha (PSDB-RJ) conseguiu que ruas da Zona Oeste fossem asfaltadas e ganhassem postes de luz.
Não é a primeira vez que a Unidos de Cosmos se interessa por políticos. Em 2009, celebrou Pedro Ernesto, que foi prefeito do Rio de Janeiro duas vezes, na década de 1930, e um dos primeiros a dar apoio financeiro às escolas de samba. Mais recentemente, em 2014, foi a vez de a escola cantar as glórias de José Madeira, ex-secretário municipal de Mangaratiba, cidade litorânea do Rio. A Unidos de Cosmos também já desfilou com enredos “comunistas”, festejando o cosmonauta soviético Yuri Gagarin e o militante Apolônio de Carvalho (1912-2005), fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (pcbr), hoje extinto.
A decisão de homenagear o deputado Pedro Paulo foi tomada por Clélio Rafael Júnior, ex-presidente da Unidos de Cosmos. Em 2021, Luiz Souza foi eleito para o cargo e preferiu não mudar o enredo. “Mantivemos o samba por causa de promessas que não saíram do papel. Além do mais, não tive tempo hábil para mudar o tema do desfile”, explica Souza, sem querer dar detalhes sobre as promessas e quem as fez. Apesar da desculpa, ele comenta: “Escola de samba precisa ser apolítica.”
Pedro Paulo, que vai fazer 50 anos em junho, é secretário municipal de Fazenda e Planejamento. Também ocupou secretarias na gestão de César Maia – prefeito de 2001 a 2008 – e nos mandatos de Eduardo Paes, de 2009 a 2016. Neste mesmo ano, apadrinhado por Paes, tentou se eleger prefeito do Rio, mas ficou em terceiro lugar. Para o fracasso pesaram as acusações de agressão física a sua ex-mulher, escândalo que o acompanhou durante toda a campanha eleitoral. Dois meses antes do pleito, a denúncia foi arquivada pelo STF, por falta de provas – mas era tarde demais.
O deputado cresceu em Jacarepaguá, na Zona Oeste, a 41,4 km da Unidos de Cosmos, mas é natural do bairro Cachambi, na Zona Norte, onde também fica, em Madureira, a sua escola de devoção – a Império Serrano. Essa predileção não foi um obstáculo para os nove sambistas que compuseram o samba-enredo da Unidos de Cosmos. Ao contrário, foi devidamente registrada: É rubro-negro enfim/Imperiano de fé. […] O futuro e a saudade, o amor pela cidade/Reunir a nossa escola/Com a humildade de Pedro, coragem de Paulo.
A bem da verdade, os frequentadores da quadra da Unidos de Cosmos parecem não dar muita bola para políticos e pessoas famosas que vez ou outra aparecem por lá. Para eles, o que mais importa é rever amigos, beber uma cerveja e sambar.
Quando visitou a quadra, em novembro passado, Pedro Paulo teve de insistir para o público prestar atenção em seu discurso. “Um minutinho aqui, gente. Ô bateria, um minutinho. Segura o chope aí, gente”, pediu ao microfone. Em vão. O burburinho só parou quando o presidente Luiz Souza solicitou respeito ao convidado.
O deputado, então, destacou as conquistas de Eduardo Paes no enfrentamento da pandemia e lembrou a importância do Carnaval para a economia da cidade. “Vamos com tudo!”, bradou, no fim do discurso – e desatou a cantar o samba-enredo em sua homenagem. Os foliões deram as costas, levantaram os copos de cerveja e voltaram a dançar.