A agricultora Maria Helena Barbosa trabalhando na terra em Solânea, na Paraíba Foto: Marcelo Pedroso/AS-PTA
Na seca, com sede de saber
A luta de uma agricultora para entender melhor as mudanças climáticas
Quando o galo canta, a agricultora Maria Helena Barbosa, de 39 anos, já está de pé. Vinda de uma família de agricultores, também se tornou uma e desde que nasceu está em contato com a terra em Solânea, no semiárido da Paraíba. Antes mesmo de começar a estudar, com 7 anos, começou a trabalhar na roça e só aos 8 entrou na escola. Naquele tempo, conta, “chovia mais do que chove hoje” — mas a técnica e os instrumentos para lidar com a seca eram mais escassos, o que tornava mais sofrido o dia da jovem agricultora. Irmã mais velha de oito filhos, Helena revezava os anos de estudo com a irmã que veio depois dela – um ano uma delas estudava e, no outro, não. Foi o jeito que a família encontrou para que uma das meninas cuidasse dos irmãos mais novos enquanto a mãe, que era merendeira escolar, ia trabalhar. Só aos 18 anos Helena terminou o ensino fundamental. Até hoje vive da terra: mora com o marido, Antônio Barbosa, 36 anos, e dois filhos, Laura, de 5 anos, e Guilherme, de 11, num assentamento rural de onde vem o sustento da família, que planta milho, feijão, batata e fava.
A agricultora faz de tudo um pouco: de manhã, prepara os filhos para a escola, junto do marido, cuida dos animais, da plantação e da casa. À tarde, colhe na mata com o marido a madeira que vendem para quem usa fogões a lenha. À noite, enquanto assiste às novelas, faz crochê e costuma revender as peças. Tudo o que aprendeu — o crochê, o plantio, o tempo certo da colheita, os sinais de chuva ou seca, o corte de madeira — aprendeu com a mãe, que aprendeu com a mãe dela, num saber repassado de geração em geração, na família e na comunidade.
O Brasil tem hoje 3,9 milhões de estabelecimentos rurais que, como o terreno de Helena, são classificados como de agricultura familiar, segundo o Censo Agropecuário de 2017. No entanto, apenas 18,7% deles são comandados por mulheres. São elas que cuidam da casa e da plantação. Entre 2006 e 2017, o número de mulheres na condução de estabelecimentos agropecuários aumentou e, mesmo assim, o acesso ao conhecimento e organizações dessas produtoras ainda é irrisório: 91,3% dos participantes de cooperativas são homens — e apenas 8,7%, mulheres. São essas instituições que levam para o campo a educação, através de programas de formação, debates e outras iniciativas.
Na família de Helena, a mãe da agricultora tinha voz ativa e começou a frequentar reuniões da AS-PTA, uma associação para Agricultura Familiar e Agroecologia. Foi sua mãe quem chegou em casa com a ideia de ter uma cisterna, reservatório de água que assegura o abastecimento mesmo em épocas de seca. O pai questionou, disse que não tinha condições de bancar a manutenção do equipamento. Mas a mãe insistiu, conseguiu trazer a cisterna para o terreno da família, e nunca mais precisaram ir buscar água longe. “Acho que com o passar do tempo ele foi entendendo que, sem a minha mãe, não teria nada, porque foi ela quem foi tendo coragem para as coisas”, afirma. Era ela, a mãe e os irmãos que acordavam cedo e percorriam mais de 5 km para buscar água para uso.
Helena e o marido participam do Programa de Microfinança Rural do Banco do Nordeste, o Agroamigo. Ele é o titular, mas não há nada que faça sem a palavra dela. Pagam a parcela juntos e pensam, também juntos, em como vão investir o dinheiro, se nos bichos, se na plantação ou em melhorias. Helena participa de reuniões da comunidade e divide atividades e decisões com o marido — mas sabe que é uma exceção e que da porta pra fora a realidade é outra. “A gente tem que lutar, né? Eu tenho um esposo abençoado, tomamos todas as decisões juntos. Se a gente chega em casa cansados, um cuida da casa, o outro do almoço. Mas vejo várias mulheres desistindo das reuniões, tem delas que dizem que meu marido é besta, mas eu nem ligo.”
A agricultora relata com tristeza histórias de colegas que desistem de participar das atividades comunitárias porque precisam lavar roupa, ou porque a família é contra, ou o marido não pode ficar com os filhos, ou simplesmente “têm mais o que fazer”. Seu engajamento comunitário lhe rendeu muitas conquistas, e a mais recente foi um fogão ecológico que adquiriu através de um programa da associação. “Ah, esse fogão é uma maravilha! Gasta pouca lenha, sabe? Tenho maior zelo”, afirma. Também aprendeu a produzir a silagem de milho, um alimento de baixo custo que serve para alimentar o gado. Os quatro irmãos e o marido da agricultora também já têm um certificado de formação em cisternas, e os filhos participam de diversas atividades culturais.
O professor Humberto Barbosa, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), doutor em ciências do solo e sensoriamento remoto, afirma que as mulheres são ainda mais vulneráveis às mudanças climáticas e secas extremas, por causa de variados fatores. Os homens são os primeiros alvos de programas de crédito e assistência técnica, por exemplo. São eles também que migram – enquanto as mulheres ficam para cuidar da casa e dos filhos. “A economia e o meio ambiente vão fazer com que essa mulher, dependendo do grupo dela, sofra mais com as mudanças climáticas. E se ela for negra? E se ela for de uma comunidade indígena? Isso tudo vai aumentar esse risco. Exemplificando, se estivéssemos contratando um seguro para isso, o valor iria aumentar dependendo dessas comunidades, porque os riscos climáticos vão ter impactos diferentes”, pontua.
O professor da Ufal lembra que, no cenário rural, muitas vezes as mulheres são as que mais fazem a diferença. Os homens migram para as cidades, vão para as capitais, procuram um outro trabalho, mas, na maioria das vezes, as mulheres não têm escolha e ficam com os filhos na terra. “As mulheres têm um papel muito importante no campo. É invisível, mas internamente, a gente sabe que quem manda mesmo são elas. O Estado acha que é o homem, toda a governança, o repasse não só de assistência técnica, quando existe, de recursos, de empréstimo, é sempre olhando para a figura do homem, mas a tomadora de decisões e quem faz isso muito bem é a mulher”, acrescenta.
Em Solânea, cidade de Helena, são 1,6 mil estabelecimentos agropecuários e 460 comandados por mulheres, segundo o Censo Agro 2017. Dessas, 106 nunca frequentaram a escola e 96 só têm registro escolar até a alfabetização. Muitas querem adquirir mais conhecimentos sobre agricultura, e Helena, pensando nisso, se inscreveu no curso Agricultura Resiliente ao Clima, realizado pelo projeto DAKI Semiárido Vivo, com 50% das vagas destinadas às mulheres. As aulas começam nesta quarta, 9. Mesmo com a dificuldade para conseguir uma boa conexão à internet, as agricultoras estão se mobilizando para assistirem às aulas.
Helena se emociona quando fala do seu primeiro certificado voltado para a agricultura, mesmo com a seca sendo uma velha conhecida sua, os novos caminhos alternativos para lidar com as mudanças climáticas são sempre bem-vindos. “No final do ano, se Deus quiser, eu recebo meu primeiro certificado. Nós, mulheres, não podemos nos acomodar dentro de casa. A gente tem que lembrar que temos marido, casa, mas também que somos mulheres. Quando a mulher sai pra buscar algum objetivo para dentro de casa, ela não sai pra abandonar os filhos, ela sai em busca de melhorar a vida dentro do seu lar. E melhora, viu?”
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