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    Ilustração: Carvall

questões penais

Bagatela que custa a liberdade

Princípio da insignificância existe para pequenos delitos, como furtar pão ou sabão em pó – mas cresceu 150% o número de casos em que ele é solicitado para beneficiar quem cometeu crimes de porte ilegal de armas e munições

Amanda Gorziza | 21 mar 2022_16h34
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Em 27 de dezembro de 2020, no Rio de Janeiro, um homem foi preso em flagrante ao roubar em uma farmácia um pacote com 24 rolos de papel higiênico, no valor de 24 reais. Apesar da quantia irrisória, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça do estado a um ano e três meses de prisão no regime inicial fechado. Segundo o órgão, não seria possível aplicar o princípio de insignificância – quando a conduta praticada causa uma lesão jurídica inexpressiva e não apresenta perigo social –, pois o réu era reincidente. Em dezembro de 2021, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro entrou com um habeas corpus (HC) no Superior Tribunal de Justiça pedindo a absolvição com base no mesmo princípio da insignificância. A partir de outras situações semelhantes, o ministro do STJ Humberto Martins reconheceu que não houve crime e concedeu parcialmente o HC para suspender o cumprimento da pena. O homem foi solto. “Considerando que o paciente não agiu com violência, bem como o valor insignificante dos objetos e os precedentes favoráveis sobre esse tema, […] defiro parcialmente a liminar unicamente para suspender o cumprimento da pena”, disse o ministro em sua decisão, no dia 21 de dezembro.

Assim como nesse caso, há muitos outros processos em que o valor roubado é irrisório – um pão, chocolates, sabão em pó… Mas mesmo assim eles tramitam na Justiça, ajudam a superlotar os tribunais e levam pessoas para a prisão, superlotando ainda mais as cadeias. De acordo com a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, o princípio da insignificância, também chamado de bagatela, não está só ligado à questão financeira. Sintetiza também toda a irrelevância de qualquer caso pelo qual não vale a pena mover a máquina do sistema de Justiça, incluindo polícia, Ministério Público e Judiciário, para promover uma ação penal. A insignificância é aplicada quando a Justiça deixa de tratar um delito como um crime, devido à sua baixa relevância material e social. Segundo o Supremo Tribunal Federal, para um processo ser reconhecido como bagatela é preciso cumprir quatro requisitos: inexpressividade da lesão jurídica, conduta inofensiva, nenhuma propensão para o mal da ação e baixo grau de reprovação do comportamento.

Em geral, quem alega o princípio da insignificância é a defesa, e o Ministério Público é chamado a se pronunciar. Mas o MP também deve reconhecer quando os processos se enquadram nesse caso, sem a necessidade de a defesa pedir. Se houver entendimento de que o princípio da insignificância se aplica ao caso, é concedido o habeas corpus e não há mais punição.

De acordo com um levantamento realizado pelo Núcleo de Acompanhamento Criminal da Procuradoria-Geral da República junto ao STJ (Nucrim), no qual Frischeisen também é coordenadora-adjunta, entre janeiro e dezembro de 2021, o princípio da insignificância foi requerido em pelo menos 591 habeas corpus e recursos em habeas corpus realizados na Corte Superior. No total, esses processos exigiram 1122 manifestações do Ministério Público Federal. O problema é que os pré-requisitos para um delito ser considerado insignificante abrem porta a várias interpretações, e o princípio acaba sendo alegado em casos completamente diversos – como porte ilegal de munição e roubo de carro, por exemplo. Na área federal, o princípio da insignificância pode ser acionado em crimes de até 20 mil reais, mas não pode haver reiteração, segundo a subprocuradora. 

Segundo o próprio levantamento, os números não representam a totalidade do tema, mas informam em quais tipos penais a insignificância foi mais recorrente no ano passado. De modo geral, os crimes de furto simples, de alimentos ou material de higiene, representaram o maior percentual de HCs e RHCs ajuizadas em 2021 com a justificativa do princípio da insignificância, totalizando 223. É o caso, por exemplo, do homem que roubou papel higiênico.

Furtos qualificados, em que ocorre o rompimento ou destruição de obstáculo, abuso de confiança ou fraude, somaram 181 casos. Mas há quem tente usar o princípio da insignificância para tráfico de drogas – 58 ocorrências – ou crimes do sistema nacional de armas, como porte ilegal de arma e munição, com 55 casos. Também foi alegada a insignificância em 54 casos dos chamados crimes tentados – por exemplo, alguém que tentou furtar algum bem, mas não o executou por questões alheias à vontade.

Só chegam ao STJ processos que não geraram acordo nem na primeira nem na segunda instâncias. Com isso, de acordo com a coordenadora de defesa criminal da defensoria do Rio de Janeiro, Lucia Helena Oliveira, muitos casos simples, que poderiam ser resolvidos mais rapidamente, como o do homem que furtou papel higiênico, vão para cortes superiores. “Temos muita dificuldade de conseguir reconhecer o princípio da insignificância na primeira instância de um modo geral.” 

 

De 2020 a 2021, houve um aumento de quase 150% no número de pedidos de insignificância para crimes do sistema nacional de armas: foram 22 processos enviados para manifestação do MPF em 2020 e 55 no ano passado. Em parecer enviado ao STJ em setembro de 2021, o MPF defendeu que o princípio da insignificância não deva ser aplicado ao crime de posse e porte ilegal de munições. Frischeisen defende que, mesmo que as munições não sejam utilizadas, a posse coloca em risco a segurança da população. “Eu normalmente peço insignificância quando envolve tentativa ou furto de alimento e higiene pessoal. Por outro lado, não aplico em casos de furto de cabo de cobre, combustível de oleoduto, carro e porte de munição. Isso varia de pessoa para pessoa no MPF”, afirmou a subprocuradora em entrevista à piauí. De um modo geral, o STJ segue o mesmo pensamento, da aceitação da insignificância nos crimes de furtos simples de bens de uso pessoal e alimentos e de furtos tentados. 

 

Mas ainda há casos em que, devido à reincidência, o princípio da insignificância não é aplicado. No final da manhã do dia 16 de janeiro de 2018, um homem furtou 14 chocolates e 16 engradados de cerveja no interior de uma loja de varejo localizada em Copacabana. Na época, os produtos eram avaliados em 302 reais. Na saída do estabelecimento, ele foi abordado, os produtos restituídos ao comerciante, e o homem foi levado à delegacia. Ele foi condenado à pena de um ano e dez dias-multa. O MPF se manifestou favorável à concessão do habeas corpus com base no princípio da insignificância, mas o STJ negou, devido à recorrência do réu na prática de delitos patrimoniais.

O princípio da insignificância está longe da unanimidade. Muitas vezes, uma comunidade pode entender que, se não há resposta do Judiciário diante de pessoas que realizam pequenos furtos recorrentes, ela se sente no direito de praticar justiça com as próprias mãos. Na avaliação de Frischeisen, a alternativa para processos como esse, que envolvam furto de alimentos ou produtos de higiene, é o acordo de não persecução penal, ou, no caso de drogas, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). O acordo tem uma grande vantagem, pois a pessoa não é considerada “culpada”. Com isso, se cometer novo crime no futuro, ela não será considerada reincidente. Quem é reincidente acaba recebendo punições mais severas. “O problema é que a reincidência gera um efeito desproporcional no contexto de furtos simples”, afirma a subprocuradora.

O acordo de não persecução penal foi inserido no Código do Direito Penal em 2019, por meio do Pacote Anticrime. Esse é mais um mecanismo que possibilita a solução consensual para evitar um processo. Mas ele impõe condições a serem cumpridas. Pode ser aplicado nos crimes cujas penas mínimas sejam inferiores a quatro anos e que não tenham sido cometidos com violência e grave ameaça. Por exemplo, furtos de bens e objetos pessoais e direção sob influência de álcool ou outra substância psicoativa. De acordo com o promotor do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Ricardo Silvares, esses requisitos para que um caso possa obter o acordo de não persecução penal abrange muitos crimes, alguns deles com certa gravidade. 

Através desse mecanismo, o MP pode, ao invés de processar a pessoa, fazer um acordo com ela, no qual há uma indenização à vítima e prestação de serviço à comunidade, por exemplo. Se o autor do fato aceitar, o juiz homologa o acordo e ele cumpre. Com isso, o Estado perde o direito de puni-lo. “É uma maneira de despenalizar o sistema e evitar a aplicação de pena privativa de liberdade. Além de ser uma forma de evitar processos e diminuir a quantidade dos que estão em andamento”, afirmou Silvares.

Levantamento realizado pelo Ministério Público de São Paulo a pedido da piauí apontou que, do início de 2020 a 8 de março de 2022, foram aplicadas 25,7 mil acordos de não persecução penal. Com a maior proporção de ocorrências, 5,3 mil se referem ao artigo 306 do Código de Trânsito, ou seja, dirigir embriagado ou sob efeito de substância psicoativa. Em seguida, furto simples aparece com 2,8 mil casos, e qualificado, com 2,1 mil. Casos envolvendo a posse irregular de arma de fogo receberam quase 2 mil acordos no período. O cidadão pode ter direito a um novo acordo se houver um intervalo de cinco anos do novo crime.

Diferentemente da subprocuradora Luiza Frischeisen, o promotor Silvares entende que, quando identificam um caso de princípio da insignificância, não é nem caso para acordo de não persecução penal, mas de arquivamento do caso, pois não há propriamente um crime. Mas ele também afirma que “o acordo pode ser uma boa solução para alguns casos, pois evita uma condenação. Se a pessoa comete novamente o crime ela continua sendo primária.” Quando não existia o acordo, as pessoas que furtavam bens de pequeno valor eram processadas, mas ficavam em regime aberto, o que era substituído por pena restritiva de direito, então não chegavam a ir para a cadeia. Depois, se cometiam novamente um furto da mesma natureza, já eram considerados reincidentes, então acabavam na prisão. Segundo o promotor do MPSP, o acordo é uma forma de evitar encarcerar pessoas por crimes pequenos, superlotando ainda mais os tribunais e o sistema penal. Ambos os profissionais alertam que, para analisar os reais efeitos desse mecanismo na quantidade de prisões e habeas corpus emitidos, é preciso aguardar mais alguns anos.

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