CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Fratricídio na Fundação
Dois bolsonaristas entram em guerra na Casa de Rui Barbosa
João Batista Jr. | Edição 187, Abril 2022
Capitão de mar e guerra da reserva, Carlos Fernando Corbage Rabello mandou chamar em sua sala na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, o então diretor do Centro de Memória e Informação, Mauro Márcio de Paula Rosa. O militar havia sido empossado poucos dias antes no cargo de diretor executivo da fundação e queria saber sobre algumas melhorias a serem feitas nas bombas de caixa d’água da entidade. Em dado momento, perguntou se o “serviçal” havia prestado conta da tarefa. Paula Rosa estranhou o termo “serviçal” e disse que não sabia a quem ele se referia. Era o encarregado da manutenção, que Rabello convocou imediatamente à sua sala.
Quando o funcionário chegou, o capitão pediu: “Diz para o seu superior [Paula Rosa] quais foram as ordens que eu te dei.” O homem começou a falar, mas foi interrompido. “Vamos lá, força essa memória, quero que você repita as oito ordens que eu dei, na sequência em que falei”, insistiu Rabello. Vendo que o funcionário estava nervoso, o militar se levantou da cadeira e parodiou a música de um programa do apresentador Raul Gil: “O Raul perguntou, você não acertou, pegue o seu banquinho e saia de fininho.” O homem deixou a sala.
Paula Rosa, que foi testemunha da conversa, diz que também ele foi alvo de assédio moral e humilhação por parte de Rabello, que entrava em sua sala sem bater e pedia a ele as mais diversas explicações várias vezes por dia.
Em 23 de novembro do ano passado, o eletricista da fundação, Diego Silva Rufino, foi chamado à sala de monitoramento de câmeras. Rabello estava lá e lhe disse de forma abrupta: “Não gosto de você. Gosto de seu irmão.” Diego é negro, e o irmão dele, Carlos Rufino, tem um tom de pele mais claro. “Eu me senti muito humilhado”, relatou Diego em queixa à direção da Casa de Rui Barbosa.
Esses episódios e outros compõem um processo administrativo elaborado por oito pessoas e remetido à Controladoria-Geral da União (CGU) no dia 10 de janeiro passado. À piauí, a CGU disse não ter nenhuma apuração em curso sobre esses fatos. No mesmo mês, uma denúncia de assédio moral contra Rabello foi enviada ao Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro.
A Fundação Casa de Rui Barbosa, criada em 1966, é uma das mais importantes instituições culturais do país, responsável por preservar preciosos acervos de várias personalidades e escritores, entre eles os de Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Fica no bairro de Botafogo, na casa onde viveu o advogado, intelectual e político Rui Barbosa (1849-1923), transformada em museu. Desde 2019, a fundação é presidida pela autora de telenovelas Leticia Dornelles, que trabalhou para a Globo, a Record e o SBT.
Dornelles soube pelo Diário Oficial da nomeação de Rabello – indicado pelo secretário da Cultura, Mario Frias. O capitão assumiu em setembro de 2020, e Paula Rosa se lembra bem de como foi o primeiro dia. “Ele passou de sala em sala perguntando às pessoas o que cada uma delas fazia. O clima era de interrogatório policial.”
No dia seguinte, conforme relatos ao MPF, Rabello foi tirar satisfações com Dornelles, sua chefe, porque ela lhe havia perguntado, na frente de outras pessoas, como ele conseguira o cargo na instituição. “Você nunca mais faça perguntas sobre a minha vida. Não é da sua conta. Eu tive de ir para casa e respirar fundo até ficar zen. Porque a minha vontade era te dar uma patada ali na frente de todo mundo. Eu tenho mira oito. Não erro quase nada e não entro para perder”, disse o capitão, conforme relato de testemunhas. “Mira oito” é uma gíria para bom atirador.
Paula Rosa, que é doutor em literatura e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi contratado por Dornelles. Em 7 de abril de 2021, Rabello o exonerou*. Mas ela dobrou a aposta e, no mesmo dia, enviou um ofício à UFRJ, pedindo que Rosa fosse novamente cedido à fundação.
Em 23 de fevereiro passado, Rabello foi nomeado presidente da Biblioteca Nacional, que também fica no Rio. Na Casa de Rui Barbosa, a sensação foi de alívio. A nomeação, porém, desagradou o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, o sanfoneiro das lives de Jair Bolsonaro e adversário de Frias. Em 8 de março, uma portaria derrubou a nomeação, mantendo Rabello no cargo antigo. Na Casa de Rui Barbosa, o clima voltou a ficar tenso.
A Secretaria da Cultura integra a estrutura do Ministério do Turismo, mas, pelas costas, a equipe de Machado Neto trata Frias como “oportunista” e “analfabeto funcional”, por causa dos erros que comete em seus posts nas redes sociais. Ele escreve coisas como “assesso” e “agradeçe”. Frias esteve uma única vez na Casa de Rui Barbosa, em 5 de fevereiro de 2021, quando recebeu dezesseis sugestões de projetos para a fundação. “Ele disse que iria analisar, mas não levou adiante nenhum deles”, conta Paula Rosa.
Leticia Dornelles caiu nas graças da família Bolsonaro após criticar quem fazia piada a respeito da bolsa de colostomia do presidente. Com isso, ela ganhou, nas redes sociais, seguidores como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro de Bolsonaro que previu que a pandemia não mataria nem mil brasileiros. Dornelles também escreveu textos para o site Terça Livre, de Allan dos Santos, o investigado por disparar fake news que está foragido nos Estados Unidos.
Foram o terraplanista Osmar Terra e o pastor Marco Feliciano (PL-SP) que sugeriram o nome de Dornelles ao governo federal. Ela assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa em outubro de 2019 e três meses depois exonerou cinco servidores do Centro de Pesquisa, setor considerado a alma da entidade. À época, disse que se tratava de uma medida administrativa, e não política, mas Dornelles foi acusada de perseguir qualquer voz contrária a Bolsonaro. Um mês depois, ela concedeu a honraria Amigo da Fundação Casa de Rui Barbosa a Bolsonaro, ao vice-presidente Hamilton Mourão e ao amigo Feliciano.
Uma ex-funcionária da fundação – que pediu para não ser identificada por temer retaliações – comenta a situação atual: “A Leticia fez uma perseguição ideológica contra todos os funcionários, os proibiu de se manifestar politicamente em redes sociais e ameaçou com processos. Agora está provando do próprio veneno: virou alvo de um bolsonarista militar.”
Dornelles diz que seu trabalho na fundação não é devidamente reconhecido e queixa-se da imprensa e de intelectuais. Ela conta ter mandado fazer obras de reparo do museu, digitalizar o acervo histórico, contratar a primeira brigada de incêndio e comprar uma impressora em Braille. Um de seus planos principais é “internacionalizar” a fundação e “levar Rui Barbosa para o mundo”.
Com esse objetivo, buscou parcerias com embaixadas. A Polônia – país governado pelo ultraconservador Andrzej Duda, aliado de Bolsonaro – gostou da ideia e mandou fazer um busto de Rui Barbosa.
Em janeiro deste ano, Dornelles recebeu o convite para a inauguração do busto em Cracóvia, em 22 de fevereiro, e mandou um ofício à Secretaria Especial de Cultura pedindo autorização para viajar. A resposta foi que Frias iria à inauguração, aproveitando a viagem que faria com a comitiva de Bolsonaro à Rússia e à Hungria.
Frias, porém, acabou excluído da viagem presidencial, depois que veio a público que ele gastara 39 mil reais dos cofres públicos para se encontrar em Nova York, em janeiro passado, com o lutador de jiu-jítsu e bolsonarista Renzo Gracie. O busto de Rui Barbosa foi inaugurado na Universidade Jaguelônica, em Cracóvia, com a presença do embaixador brasileiro na Polônia. Procurados pela piauí, Frias e Rabello não se pronunciaram.
Dornelles não desistiu de seus planos de internacionalização. Em 18 de março passado, ela embarcou para Nova York a fim de fazer a curadoria da mostra de oito painéis Rui Barbosa: Cidadão do Mundo, que será inaugurada na sede da ONU em julho.
Quem ficou no comando da Fundação Casa de Rui Barbosa?
O desafeto Rabello.
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* Trecho corrigido em relação à edição impressa. Mauro Márcio de Paula Rosa foi exonerado em 7 de abril de 2021, e não em setembro daquele ano.