Ilustração: Carvall
Todos escrevem a Temer
A visão do ex-presidente sobre como ele se tornou o consultor informal da República e até evitou o impeachment de Bolsonaro
“Veja como o universo gira”, introduz Michel Temer. “Quando chegou a sexta-feira que antecedeu o Sete de Setembro, muitos me ligaram falando: ‘Temer, você é ex-presidente da República, ninguém se entende mais neste país, você tem uma palavra moderada, precisa entrar nisso para ajudar na interlocução.’” Havia preocupação crescente com a postura do presidente Jair Bolsonaro no Dia da Independência de 2021. Suas afrontas ao Judiciário e ameaças golpistas tiravam o sono da parcela da população preocupada com a estabilidade institucional e democrática do Brasil. Temer sentiu-se prestigiado com os apelos.
Aos 81 anos, cabelos penteados, de terno e gravata, barba perfeitamente aparada, o ex-presidente move-se com destreza, sem pressa. Estende a mão para cumprimentar quem o visita sem timidez nem entusiasmo. Com cerca de 1,70 metro, parece menor dentro do terno escuro. Sorri discretamente, fala baixo e anda cercado por assessores, seguranças, motoristas e demais auxiliares. Ele recebeu a piauí em abril em seu escritório no Itaim Bibi, bairro de elite de São Paulo, com uma hora de atraso. Havia outros visitantes, todos homens, esperando para serem recebidos. De mulheres apenas as duas secretárias.
Na sala de reuniões, o ex-presidente se recorda dos apelos que recebeu para que mediasse a pacificação entre Bolsonaro e o ministro Alexandre de Moraes, que ele nomeou para o Supremo Tribunal Federal em seu mandato e que se tornou alvo preferencial do sucessor. “Você teve uma oposição política violentíssima no seu governo, teve uma oposição institucional daquele pessoal que tentou derrubar o seu governo e você resistiu sem ofender ninguém, sem agredir ninguém. Tem que entrar nisso”, elogiaram-no, segundo ele mesmo conta. O emedebista não revelou os interlocutores simpáticos, que incluíam “até pessoa ocupando poder”.
Na terça-feira, Sete de Setembro, Bolsonaro declarou de cima de um carro de som na Avenida Paulista, em São Paulo, que não acataria mais as decisões de Moraes, o ministro “canalha”, nas suas palavras. Depois de assistir à cena pela televisão, Temer se voltou para seus botões. “Eu aqui comigo pensei: o que eu posso fazer? Posso fazer nada”, constatou humildemente. Mas fez.
No dia seguinte – “aí que eu digo que o universo gira”, notou Temer – Bolsonaro telefonou ao antecessor. Foi quase cabalístico. “O presidente me ligou às oito horas da noite do dia 8.” No seu relato, ele tinha estado de terno o dia todo, chegou em casa, tirou o paletó e a gravata, mas ficou de camisa e calça social. Estava no escritório domiciliar quando Bolsonaro o procurou nos seguintes termos, de acordo com Temer: “Ele me diz assim: ‘Presidente, o senhor sabe, eu sei que o senhor tem muito prestígio no Supremo’”, e emendou com modéstia: “Não é tão verdadeiro assim.” Ambos se tratam por “presidente” e “senhor”. Bolsonaro se mostrou orgulhoso da multidão que se aglomerou em plena pandemia para escutá-lo discursar.
“Olha”, começou a responder o ex. “É para falar sem cerimônia, né, presidente? O seu discurso, data vênia, foi muito equivocado. Não pode… Eu não diria aquilo para duas pessoas. Talvez pudesse dizer para um amigo íntimo. O senhor disse numa multidão que o Alexandre era isso e aquilo.” Bolsonaro respondeu, segundo Temer: “Eu não quero briga com ele, presidente. O senhor podia me ajudar nisso daí.”
O ex-presidente compreendeu a natureza do pedido. “O senhor quer que eu fale com o Alexandre, não é? Com o Alexandre eu tenho interlocução naturalmente, né? Muito cautelosa, muito cerimoniosa, não precisa exagerar, né? Sabe que tem gente que acha que, porque nomeou alguém, é dono de alguém. Não é.”
Bolsonaro ficou de retornar no dia seguinte. Temer desligou e foi até a casa do ex-tucano e ex-advogado que ele fez virar ministro do Supremo.
O telefone celular de Temer toca. Ele interrompe a entrevista e pede licença à reportagem para atender. “Flavio, olha aqui, passa aqui quinta-feira, À tarde, viu? Tá bom? Dá uma ligadinha para a Gilda, por favor, que eu estou numa reunião, e ela vê o melhor horário. Obrigado, querido, tchau.” Gilda é a secretária que acompanha o emedebista há décadas.
Temer retoma o fio da meada. “Aí eu, conversando com Alexandre, digo que seria útil para o país uma reconciliação. ‘Você é professor de direito constitucional, quem sabe podemos dar uma solução'”, relata – dispensando o “senhor” desta vez.
Gilda entra na sala de reuniões. Temer fala sobre o telefonema de instantes antes. “Flavio vai ligar pra você. Quinta-feira à tarde dá? Eu tô aqui, né?” A diligente secretária fica confusa. “Na semana que vem?” O chefe responde que não, naquela semana mesmo. “Hoje é quinta-feira”, ela observa respeitosamente. “Ah, hoje é quinta!”, ele percebe. “Fala amanhã pra ele, então. Tenho uma coisa de manhã, às 10 horas, né?” Ela confirma e o relembra: “Tem o almoço.” Almoço? “Amanhã é sexta”, ela nota mais uma vez com paciência. Há muitos anos, Temer senta à mesa de restaurantes sofisticados com amigos da velha guarda da advocacia paulistana às vésperas dos fins de semana. Sem mais dizer, ele determina que Gilda agende antes do almoço e retoma a entrevista.
No dia 9 de setembro, como combinado, Bolsonaro retornou para Temer às 6h30 da manhã, meia hora depois que o emedebista costuma acordar diariamente – ele tem por hábito fazer caminhadas matinais nos arredores de sua casa, localizada no bairro residencial e arborizado de Alto de Pinheiros.
“Tocou o telefone, era ele. Disse, tô mandando um avião aí para pegá-lo, pro senhor almoçar comigo. Eu disse, presidente, para eu ir aí só pra conversar não fica bem pro senhor nem pra mim. Muito menos pro senhor. Agora, em face da conversa de ontem, eu listei uns tópicos aqui. Se o senhor estiver de acordo, daí eu posso ir e nós conversaremos. Para minha surpresa, ele disse: oh, estou de acordo, muito bom.” Os tópicos, segundo Temer, eram aqueles que estariam na carta divulgada horas depois:
– “Cumpro decisões judiciais”
– “Alexandre é um professor e jurista”
– “Aquilo foi no calor do momento”
– “Eu quero harmonia no país”
– “Eu quero harmonia entre os Poderes”
“Eu estava preocupado, confesso a você, com uma eventual conflagração civil”, rememorou o ex-presidente. “Havia caminhoneiros em Brasília de Santa Catarina, todos instrumentados e aparelhados para invadir o Judiciário, invadir o Legislativo se pedissem o impeachment dele. Seria uma conflagração civil, e iam pedir.” A piauí perguntou quem pediria para Bolsonaro sair. “O pessoal do Congresso.” Mas quem especificamente? Ele se impacientou. “Ah, isso eu não sei, querida. Você faz cada pergunta.”
O avião da Força Aérea Brasileira decolou com Temer às dez e meia da manhã de São Paulo, pousou em Brasília ao meio-dia. O ex-presidente foi direto ao Palácio do Planalto, onde Bolsonaro o recebeu. “Ele me levou pra salinha de almoço que tem lá.”
Depois de comerem e tratarem dos termos da carta que Temer propunha que Bolsonaro assinasse publicamente como gesto de pacificação, o presidente perguntou ao ex se ele ainda ficaria algumas horas na capital. “Vi que ele queria mostrar a carta para mais alguém, né?”
“Claro, sem dúvida alguma. Eu volto depois”, respondeu Temer, que então foi fazer hora no Palácio do Buriti, onde despacha o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, seu correligionário. Quando retornou ao Planalto, Temer perguntou: “O senhor já divulgou pra imprensa?” A resposta era positiva. “Aí eu liguei pro Alexandre. Num primeiro momento ouvi [Bolsonaro] falando assim, ‘ah, você é… não sei se ele é corintiano, o Alexandre, palmeirense, alguma coisa assim. Olha, a única briga que eu quero com o senhor é de futebol, você é corintiano, eu sou São Paulo, sei lá, não quero ter outra briga”, relatou Temer. O ministro do Supremo torce ostensivamente pelo Corinthians, e Bolsonaro, para o Palmeiras, embora se deixe fotografar usando camisas de outros clubes.
“Afastei-me para deixá-los à vontade, né? Foram três ou quatro minutos, ele me devolveu o telefone, eu falei, muito bem, presidente, coisa boa. Agora o senhor vai ver que solucionou a [ameaça de] greve dos caminhoneiros. O senhor vai ver que às 5 horas esse pessoal se desmobiliza, como se desmobilizou.” O emedebista ficou satisfeito com os resultados de sua articulação. Não apenas evitou o impeachment, como ainda atendeu aos apelos populares, na sua avaliação.
“Quando eu saí, me surpreendi com a repercussão. Tive a seguinte concepção: interessante, o povo não quer briga, o povo está cansado dessa discussão ao rés do chão, o povo quer uma coisa mais elevada. Foi um gesto modesto porque nada mais foi que aplicar o texto constitucional.”
Uma semana depois, Temer precisou telefonar para Bolsonaro para evitar um mal-entendido. O emedebista participou, na casa do investidor Naji Nahas, em São Paulo, de um jantar entre homens e charutos, no qual o presidente foi ridicularizado por um humorista, que zombou do episódio da carta. Bolsonaristas reclamaram da intermediação de Temer, que, no entanto, sentiu-se protegido pelo presidente. Numa nova conversa telefônica, Bolsonaro afirmou que não dava importância para a reclamação dos mais aguerridos dos seus defensores.
A trégua de Bolsonaro com o STF durou seis meses. Em março, o presidente voltou a ofender ministros: “Se não em ideias, cala a boca. Bota a tua toga e fica aí, sem encher o saco dos outros.”
No meio-tempo, Temer seguiu exercendo o papel de conselheiro – pelo menos do seu ponto de vista é assim que ele atua desde que deixou a Presidência: “As pessoas vêm me consultar, trocar ideias.” A pedido da piauí, ele listou os seus interlocutores recentes.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) “veio me visitar uma vez”. Com o Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, “eu falei umas duas vezes ao telefone”. No atual período de pré-campanha eleitoral, diversos aspirantes a presidente pediram sua bênção. A senadora Simone Tebet, do MDB do Mato Grosso do Sul, “começou a campanha dela aqui [no seu escritório], não é? O Moro veio aqui, o Doria fala sempre comigo, o Eduardo Leite esteve comigo”.
Por partes. Com Doria há uma relação antiga e próxima. “Jantei com ele algumas vezes no Palácio dos Bandeirantes a convite dele só nós dois”, descreve, batucando na mesa. “Gentilíssimo. Gentilíssimo.” Pigarreia. “Numa outra ocasião, ele me convidou para aquelas tais reuniões de secretariado, eu fui lá de manhã. E em outra ocasião ele reuniu os meus ministros para um almoço comigo, tem oito ou nove ministros aí [que se tornaram secretários de Doria no governo de São Paulo].”
Apesar de ser um desafeto de Doria no PSDB, o ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite também foi recebido. “Veio tomar um café comigo num sábado em casa, conversamos bastante.” Tempos depois, Leite voltou a procurar Temer sobre mudar de partido para se lançar candidato a presidente. O emedebista estava em Dubai na ocasião e o atendeu por telefone. “Eu disse, olha, não posso dar palpite no que você irá fazer. Mas ele insistiu. Então respondi que daria uma opinião muito pessoal. Eu acho mais confortável pra você ficar no PSDB, porque, se você sair, você vai apanhar muito como alguém que disputou prévia e, porque perdeu a prévia, saiu do partido. Não fica bem.”
Outro que foi beijar a mão do ex-presidente foi Sergio Moro. Em fevereiro, quando ainda se colocava como pré-candidato a presidente pelo Podemos (agora, no União Brasil, não sabe se disputará uma vaga como deputado federal). O inusitado do gesto é que Temer, que foi preso pela Lava Jato do Rio de Janeiro, é um crítico convicto da operação que o ex-juiz simboliza. “Queria ouvi-lo sobre reformas fundamentais para o país, o senhor foi três vezes presidente da Câmara dos Deputados, presidente da República”, introduziu Moro, segundo Temer. “Doutor Moro”, reagiu, “não tenho o que sugerir. Cumpra a Constituição. Cumpra efetivamente. Se cumprir, o país estará em ordem.” Era uma indireta às ilegalidades cometidas pela Lava Jato. O ex-juiz disse que havia estudado direito com os livros escritos pelo ex-presidente. “Deve ter sido delicadeza. Certamente nunca pegou um livro meu”, comentou, sarcástico.
Um assessor de Temer entrou na sala de reuniões. Discutia com o ex-presidente uma nota publicada pelo jornal O Globo, segundo a qual o ex-presidente Lula fechou as portas para o emedebista, que o teria procurado para uma conversa.
“Nunca procurei”, sussurra o emedebista. “Gente dele veio falar comigo, isso sim. Eu falei, olhe, eu não posso falar com ele neste momento. Eu sei que ele fala pra base dele, mas ele fala que houve golpe.” O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) é considerado um golpe por setores que acusam o então vice-presidente de conspirar com o Congresso para sentar na cadeira mais poderosa do país.
Temer diz que o advogado Cristiano Zanin, que representa Lula nas ações contra a Lava Jato, foi quem tentou promover uma conversa entre os dois. “Ele veio [ao escritório] a propósito de uma questão advocatícia e no meio da conversa perguntou se não seria bom… Eu disse, olhe, não é o momento de falar”, relata, batucando na mesa.
A piauí procurou Zanin, que não quis comentar. A interlocutores reservadamente o advogado conta que, diante de reclamações de Temer sobre a acusação de golpista, sugeriu que a queixa deveria ser feita diretamente a Lula para que as arestas fossem aparadas. As conversas ocorrem informalmente, não a pedido de Lula, mas em consequência de encontros causados por outros motivos. Por exemplo, recentemente, ambos foram colocados na mesma mesa num evento em homenagem a Johnny Saad, presidente do Grupo Bandeirantes, de quem Temer é amigo e para quem Zanin advoga.
Se há mágoas com Lula, com Bolsonaro há “respeito”, diz Temer. “O que eu verifico é o seguinte. Ele nunca falou mal do meu governo, em momento nenhum, nunca. Pelo contrário até. [Bolsonaro diz] Se não fosse o Temer ter feito a reforma trabalhista, se não fosse o Temer ter enfrentado a questão da Previdência, nós não teríamos aprovado. Ele até é elogiativo em relação ao meu governo, então eu tenho respeito por ele em função disso.”
Tudo dito, nada resolvido. Não publicamente. Temer batuca na mesa quando questionado em quem votará em outubro para presidente. “Isso você me pergunta em… agosto”, despista. Vai mudar alguma coisa até lá? “Não sei, não sei…”
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