ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Pôquer e poesia
Carol Martins, ás das cartas que faz versos eróticos
João Batista Jr. | Edição 189, Junho 2022
O ritual é sempre o mesmo. Horas antes de um torneio de pôquer, a jogadora profissional Carol Martins, paulistana de 40 anos, deixa as redes sociais de lado para assistir, em streaming, a programas que vão do reality RuPaul’s Drag Race à série Ozark. O objetivo é, em suas palavras, “desintoxicar o cérebro”.
Além do Circuito Paulista de Hold’em e do Brazil Series of Poker, ela disputa torneios todas as segundas e terças-feiras no Boteco do Tonico e no H2 Club, em São Paulo. Joga-se a modalidade chamada Texas Hold’em, a mais popular do pôquer. Só senta à mesa quem aposta valores de 1,2 mil a 2 mil reais. O prêmio varia entre 15 mil e 30 mil reais para o primeiro colocado.
Martins não põe dinheiro do próprio bolso na mesa. Ela faz parte do seletíssimo grupo de profissionais bancados por investidores. Quatro empresários são, digamos assim, donos do passe de Martins, que quase sempre joga em nome de um deles. Quando ela ganha, o lucro é rateado entre as partes. Neste mês, dois de seus investidores vão enviá-la a Las Vegas para disputar o World Series of Poker, o maior campeonato mundial, com entradas de 500 a 1 mil dólares. Para participar do torneio principal, investem-se 10 mil dólares – e o prêmio pode chegar a 10 milhões.
Em fevereiro, Martins se tornou a única brasileira contratada pela Poker-Stars, a maior plataforma de jogos online do mundo. “Meu maior objetivo é popularizar o pôquer entre as mulheres. Por isso faço questão de dar aulas, tanto individuais quanto para empresas”, diz. No pôquer virtual, ela chega a ficar com dez abas de jogos diferentes abertas ao mesmo tempo. Para enxergar melhor as partidas, espelha a tela do computador na tevê de 60 polegadas. Há torneios que duram cinco dias. Como o pôquer é considerado um esporte, e não um jogo, empresas e clubes têm autorização para realizar disputas em dinheiro.
Além de ser uma das jogadoras de pôquer mais conhecidas do Brasil, Martins é uma raridade no universo desse jogo, majoritariamente masculino. De acordo com a organização de empoderamento feminino Poker Power, apenas 4% dos jogadores em todo o mundo são mulheres. Existem torneios exclusivamente femininos, mas os mais importantes – para as mulheres – são mistos.
Formada em artes cênicas pelo Teatro Escola Macunaíma e em rádio e tevê pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Carol Martins entrou por acaso no universo do pôquer, que congrega 9 milhões de jogadores no Brasil, entre profissionais e amadores, segundo a Confederação Brasileira de Texas Hold’em.
Há onze anos, recém-separada de sua primeira mulher, foi morar com um amigo, cuja família gostava de fazer rodadas amadoras. Ela se interessou e passou a ler sobre técnicas e estratégias. “No começo, além da questão lógica e matemática, eu me encantava pelo lado fetichista das cartas”, conta. Depois, passou a jogar em casas de pôquer, como a paulistana H2 Club, frequentada por Vanderlei Luxemburgo, Ronaldo Fenômeno e Neymar. “De Neymar, aliás, eu já ganhei uma partida”, lembra Martins.
Na H2, foi convidada pelo jogador de pôquer Felipe Mojave para integrar um time. O hobby virava profissão. Um ano e meio depois, ela recebeu a oferta para participar de uma equipe exclusivamente online chamada Step Team. “Jogava dez horas por dia, todos os dias.” Há cinco anos, os investidores apareceram para financiar os torneios de Martins, que, com isso, pôde se dedicar à sua outra paixão.
Incentivada pela amiga e escritora Fernanda Young, Martins reuniu poemas escritos como cartas de amor no livro Cartas Estranhas para Amores Inventados, lançado pela Chiado Books em 2019, alguns meses após a morte de Young. “Seus poemas insones, descrições de desejos que a atormentam e que poucas vezes parecem ser alcançados, conduzem o leitor a uma trama que vai além dos versos”, escreveu Young na contracapa do livro.
O erotismo dos versos, como no poema Orelha – A orelha é o lugar mais erótico que pode ter./Foi por ela que sua voz entrou/e fez questão de remover/todos os conceitos que/demorei uma vida para absorver –, espelha a personalidade da autora. Com seus cabelos lisos, boca carnuda e quinze tatuagens espalhadas pelo corpo, Martins é uma mulher naturalmente sexy. Chegou a trabalhar como dançarina burlesque na noite de São Paulo, em boates como Madame Satã. “Eu tinha alguns personagens, como Gigi in Velvet, que era uma pin-up. Usava roupas com asas enormes como aquelas da Victoria’s Secret”, conta.
Quando Carol Martins tinha 2 anos, seus pais se divorciaram. A menina ficou com o pai. Apaixonada por matemática e literatura, vencia as gincanas de álgebra e os concursos de redação na escola. Desde criança, tinha o sonho de ser atriz. Atrevida, ela vendeu, durante a entrevista para uma vaga de estágio em uma emissora de tevê a cabo, o projeto de um programa sobre moda, do qual seria a apresentadora. Batizado de Be Fashion, a atração durou oito anos pelo Canal de São Paulo, veiculado pela TVA.
Ela sempre se reconheceu como lésbica. Mais tarde, na vida adulta, descobriu-se bissexual. Duas de suas três ex-mulheres tiveram com ela as primeiras relações homossexuais. Contrariando o estereótipo do fã de carteado, Martins é 100% abstêmia – por ter convivido com problemas causados pelo alcoolismo em sua família e por não apreciar o sabor da bebida. “Sou a última a sair das festas, com a diferença de que me lembro de tudo que as pessoas falam e fazem”, brinca. “A última vez que tomei uma bebida foi aos 19 anos.”
A jogadora tampouco come carne vermelha ou qualquer alimento que tenha ovo ou milho, porque esses produtos desagradam seu paladar. Detesta café e sempre bebe Coca-Cola Zero para acompanhar as refeições. Ser abstêmia traz vantagens: “No pôquer, eu fico completamente concentrada e focada na minha estratégia de jogo.”