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O que é o cinema?

Filmes como Top Gun e Medida Provisória disputam de modo desigual a atenção do público brasileiro

Eduardo Escorel | 08 jun 2022_09h00
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Após Tom Cruise ter recebido, em 18 de maio, uma Palma de Ouro honorária no segundo dia do 75º Festival de Cannes, Top Gun: Maverick (2022), dirigido por Joseph Kosinski, foi ovacionado de pé durante cinco minutos ao final da projeção. Passados 36 anos, Cruise revive no filme o capitão aviador Pete “Maverick” Mitchell, seu personagem em Top Gun: Ases Indomáveis.

Existe uma maneira específica de fazer filmes para serem exibidos em salas de cinema e eu faço filmes para serem vistos na tela grande, disse Cruise em uma conversa durante o Festival. Ao rejeitar o lançamento em plataforma de streaming, tornado usual por causa da pandemia, Top Gun: Maverick só veio a estrear no mercado doméstico americano na semana seguinte à exibição em Cannes, com dois anos de atraso, mas em 4.735 cinemas. No fim de semana prolongado pelo feriado do Memorial Day, de 27 a 30 de maio, obteve renda aproximada de 160 milhões de dólares. E nos seis primeiros dias a receita de bilheteria ultrapassou 321 milhões de dólares, 45% no mercado internacional, incluindo o Brasil, onde rendeu cerca de 5,8 milhões de dólares e foi visto por mais de 1,2 milhão de espectadores, incluindo as pré-estreias, até 29 de maio.

Enquanto isso, Medida Provisória (2020), de Lázaro Ramos, faturou em sete semanas cerca de 1,7 milhão de dólares (435.339 espectadores) e Detetives do Prédio Azul 3 – Uma Aventura no Fim do Mundo (2020), de Mauro Lima, a outra produção brasileira entre as dez maiores rendas acumuladas até 29 de maio, alcançou também, em cinco semanas, perto de 1,6 milhão de dólares (420.232 espectadores), segundo informações da plataforma Filme B para os dados referentes ao Brasil. Registre-se que essas duas rendas, obtidas em sete e cinco semanas, respectivamente, correspondem a cerca de 1% da receita de Top Gun: Maverick apenas no primeiro fim de semana em cartaz nos Estados Unidos, o que, por si só, já situa os três filmes em galáxias diferentes, além de distantes, no universo do cinema.

A acolhida fora de competição dada a Top Gun: Maverick pelo Festival de Cannes, assim como a calorosa receptividade da plateia, sugerem, no entanto, vontade de equiparar, de um lado, o filme de ação, produzido por 170 milhões de dólares para ser entretenimento de massa com, de outro, os demais títulos participantes, realizados, em geral, com orçamentos bem modestos em comparação. Um conjunto, como sempre, de valor desigual que ganha status discutível por ter recebido chancela de mérito artístico ao ser selecionado para integrar diversas mostras do Festival. Ou seja, perdura a crença algo ingênua de Jean Renoir segundo a qual tudo que move em uma tela é cinema, conforme ele escreveu na primeira linha da introdução de sua autobiografia Ma Vie Et Mes Films. A linguagem do cinema, sendo uma só, admitiria usos múltiplos, diversificados e conflitantes – o que, em parte, não deixa de ser verdadeiro e resulta na imensa diversidade da produção cinematográfica mundial.

Há, no entanto, aspectos negligenciados que contradizem essa suposta identidade compartilhada entre produtos audiovisuais díspares – será legítimo equiparar Top Gun: Maverick e Medida Provisória, um filme bem-sucedido para o padrão brasileiro? Ambos pertenceriam ao mesmo universo? É evidente que são produtos de naturezas diferentes, feitos com recursos financeiros e humanos desiguais e objetivos diversos. Ainda assim, no mercado interno brasileiro, ambos concorrem, lado a lado, pela atenção do público, Top Gun: Maverick com acesso a 706 salas e Medida Provisória a 49, com mais de 1.100 outros cinemas programados com Doutor Estranho no Universo da Loucura, da Disney, e Sonic 2 – o Filme, também distribuído pela Paramount, como o filme de Cruise. Domínio das telas disponíveis no país acentuado a partir da estreia na quinta-feira passada (2/6) de Jurassic World – Domínio, da Universal.

Anos-luz separam a galáxia de Top Gun: Maverick da que contém dois documentários especiais, um produzido em Portugal, lançado em 26 de maio, o outro uma coprodução entre Portugal e Brasil que estreia amanhã (9/6). Ambos demandam levar em conta primordialmente o que os diferencia do blockbuster americano. Suzanne Daveau (2019), de Luisa Homem, estreou no Rio de Janeiro, São Paulo e Manaus, em três cinemas, com uma sessão por dia. Escrita Íntima – Vieirarpad (2017), de João Mário Grilo, estreará amanhã (9/6) em São Paulo, no Rio de Janeiro e, a partir de segunda-feira (13/6) em Belo Horizonte, em quatro cinemas ao todo, sempre com uma sessão por dia.

Em termos comerciais, é desnecessário dizer que o resultado irrisório de lançamentos como esses – semelhantes aos de grande parte da produção brasileira recente – é previsível. Ao contrário do senso comum, porém, a responsabilidade por essa sucessão de insucessos nem sempre deve ser atribuída apenas aos filmes em si. A causa, em parte, tem origem na conformação do mercado exibidor, moldado para atender preferencialmente produtos de consumo de massa.

Suzanne Daveau e Escrita Íntima – Vieirarpad são filmes árduos. Nem por isso deixam de ter virtudes e, com certeza, merecem ser vistos por quem se disponha a um mínimo de empenho. Sensíveis e afetivos, são conduzidos em andamento lento, ignorando apelos do entretenimento fácil por um ritmo alucinante. Recuperam as trajetórias da personagem-título, a geógrafa Suzanne Daveau (1925- ) e do casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e Arpad Szenes (1897-1985), por meio de três períodos de sua correspondência. Elaboram formas narrativas alheias às convenções dominantes. E por isso tudo pagam, com certeza, um preço alto ao procurarem se relacionar com espectadores condicionados pela produção audiovisual dominante no cinema e na televisão.

O casal de artistas Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes formaram uma das duplas mais criativas do século XX na pintura.

Os documentários de Luisa Homem e João Mário Grilo não pretendem disputar espaço com Top Gun: Maverick. Querem apenas, e merecem, ter reconhecido seu direito de existir, sendo oferecidos em condições favoráveis e por tempo adequado aos espectadores que se disponham a deixar de lado por um momento o mundo da fantasia infantil, dedicando-se por menos de duas horas a um exercício adulto de reflexão e lucidez.

Tom Cruise disse em Cannes que faz filmes para serem vistos na tela grande do cinema. E nós – diretores e produtores independentes, brasileiros ou não – fazemos filmes para serem vistos onde?

 

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