ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Rede de anfetamina
O remédio Venvanse falta nas farmácias, mas é vendido sem controle em redes sociais
João Batista Jr. | Edição 190, Julho 2022
Venvanse é o nome comercial do dimesilato de lisdexanfetamina, substância que estimula a produção no cérebro de dopamina e noradrenalina, neurotransmissores que, entre outras funções, regulam a ansiedade e a capacidade de concentração. Fabricado pelo laboratório japonês Takeda, o medicamento não tem opção genérica no país e seu uso foi liberado pela Anvisa em julho de 2010 para pessoas com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). Em novembro de 2018, foi aprovado também para os que têm diagnóstico de transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP), distúrbio psiquiátrico que leva o paciente a comer de forma descontrolada, mesmo sem ter fome.
O uso do Venvanse por pessoas que não sofrem de nenhuma dessas condições tem provocado um sumiço da droga nas prateleiras de farmácias em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas e outras cidades. Como o remédio ganhou fama de ser a melhor opção para incrementar foco e produtividade, tornou-se o queridinho dos executivos que trabalham na Avenida Faria Lima, coração financeiro do Brasil. Eles tomam o medicamento para, como se diz no jargão corporativo, “performar” mais e melhor. O psicoestimulante também tem sido um recurso dos concurseiros, as pessoas que se debruçam horas sobre livros para passar em concursos públicos.
No aplicativo Telegram, há pelo menos dois grupos que vendem Venvanse, além de outras drogas controladas. O grupo denominado Venvanse-Ritalina-Concerta, com 1 162 membros, entrega esses remédios, por Sedex, em todo o Brasil. Como o Venvanse, os outros dois medicamentos são indicados para TDAH – mas quem os compra no Telegram não deseja empregá-los para este fim.
O segundo grupo se chama Venvanse; Ritalina; Psicotrópicos, tem 1 793 integrantes e também atende todo o país, com um diferencial: em Goiânia, a entrega é feita em até duas horas. Os preços praticados são iguais nos dois grupos: de 530 a 600 reais por caixa, dependendo da dosagem do remédio. Nas farmácias, com receita médica, a caixa fica entre 350 e 450 reais.
No Telegram, os grupos são abertos: é possível entrar sem convite. Os traficantes de remédios controlados aceitam pagamento por cartão ou Pix. Preços e encomendas são discutidos às claras. No Twitter, o negócio é mais discreto. O perfil @RitalinaVenvansebr conta com apenas seis seguidores e não segue ninguém. Na sua descrição na rede social consta um número de WhatsApp, com código de área do Paraná, para quem deseja fazer encomendas. Há outros perfis vendendo a droga pelo mesmo esquema.
Aquilo que se vende em redes sociais repercute em redes sociais. O perfil @FariaLimaElevat, que satiriza o mundo financeiro de São Paulo, tuitou em abril deste ano: “Boatos que o Venvanse está em falta no mercado e não é pela crise na Ucrânia.” Em junho, foi a vez do youtuber Felipe Neto, que sofre de TDAH, deixar seu protesto indignado e desaforado no Twitter: “Olha só, seu arrombado, o Venvanse é um remédio usado pra tratar uma doença q eu tenho. Se tu usa essa porra como droga, tu vai foder gente q precisa, vai dar merda q nem deu com a Ritalina (q ficou absurdamente difícil de comprar). Quer se drogar? Não fode os outros, babaca.”
Ao ser perguntado sobre a venda irregular do medicamento que produz, o laboratório Takeda disse à piauí que “firmemente rechaça qualquer iniciativa que estimule o uso de medicamentos sem prescrição médica”. Também reconheceu que, por “variações de demanda”, seja possível que pacientes com receita médica enfrentem dificuldades de encontrar o produto em farmácias. O laboratório não forneceu dados sobre as vendas. Tampouco a Anvisa deu essas informações, alegando que, por ser um medicamento “único no mercado” – ou seja, fabricado por um só laboratório –, seus dados comerciais seriam “reservados”.
A pedido da piauí, a consultoria de análise de dados Bites detectou nos últimos doze meses uma média de 135 mil pesquisas mensais no Google por Venvanse – e outras 297 mil buscas por variações, entre elas, dosagem, detalhes da bula e preços. Estima-se que a pergunta “Como potencializar o efeito do Venvanse?” é feita ao Google mais de setecentas vezes por mês. Nos últimos noventa dias, cresceram em 250% as buscas por “Venvanse em falta”. A procura pelo remédio gera mais de 100 mil visitas mensais para links de venda em sites de drogarias. Há ainda um fato curioso: pesquisas sobre dimesilato de lisdexanfetamina na Wikipédia sempre diminuem nas férias escolares, sugerindo uma associação entre o período de estudo e o uso da droga.
Esse interesse todo não pode vir apenas de quem realmente precisa do medicamento. “Estima-se que menos de 5% da população mundial sofra de TDAH”, diz Ricardo Feldman, psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein e fundador do Centro Feldman de Saúde, em São Paulo. O médico alerta para os males que o uso indiscriminado de remédios como o Venvanse pode causar: dependência química, aumento da pressão arterial, síndrome do pânico, dificuldades para dormir e depressão, entre outros.
“Existe o risco de o corpo ficar mais tolerante, e com as dosagens aumentando há o risco de depressão e crises de ansiedade”, diz o endocrinologista Theo Webert. Ele compara o uso indiscriminado do Venvanse por pessoas do mercado financeiro no Brasil ao emprego do Adderall nos Estados Unidos. Também indicado para o déficit de atenção, o Adderall – que é proibido no Brasil – ficou conhecido como a droga do Vale do Silício, onde estão as maiores empresas norte-americanas de tecnologia.
O interesse pelo Venvanse tem levado algumas pessoas a buscar o remédio pelo caminho regular, a prescrição médica, mas de forma malandra. A psiquiatra Camila Magalhães, fundadora do centro Caliandra Saúde Mental, em São Paulo, relata que nos últimos tempos pacientes novos já entram no consultório declarando que sofrem de TDAH, na esperança de saírem com a receita para o medicamento. “As motivações para esse abuso são multifatoriais”, diz a médica. “Há desde a perda de peso até o suposto aumento de foco.” O Venvanse tornou-se, diz ela, uma droga da elite: “Não é todo mundo que pode gastar no mínimo 400 reais em uma caixa com 28 comprimidos.”
Estudiosa do chamado chemsex (o “sexo químico”, praticado com ajuda de substâncias psicoativas, como o ecstasy, ou que melhoram o desempenho, como o Viagra), Magalhães relata que já se usa o Venvanse para esse fim. Médicos têm ouvido pacientes contar que costumam abrir a cápsula do remédio para aspirar o conteúdo, como se faz com a cocaína, para obter efeito rapidamente. Misturado ao álcool, o efeito é potencializado.
Para além da dependência química, os danos colaterais do Venvanse são devastadores e podem desencadear inúmeros problemas ao usuário que faz uso dele sem prescrição médica. “Por consumir muita energia do corpo, o organismo responde com fadiga, dificuldade para dormir e aumento do trânsito intestinal”, explica Magalhães. Ela observa que muitos usuários entram em um ciclo vicioso, empregando a anfetamina – que tira o sono – para trabalhar ou estudar e depois recorrendo a soníferos para dormir à noite.
Para Magalhães, o remédio ecoa o espírito do nosso tempo. “Existe uma positividade tóxica nas redes sociais, nas quais todos se apresentam como felizes, lindos e com boas performances em seus trabalhos”, diz. “A droga responde a essa velocidade frenética, ao culto ao ‘eu’ e ao alto desempenho, tão presentes na sociedade do imediatismo.”
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