ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Os pássaros loucos
O diário de um espanhol que se perdeu na Chapada Diamantina
Clarice Cudischevitch | Edição 190, Julho 2022
O Natal de 2015 se aproximava quando Hugo Ferrara Tormo desapareceu no Parque Nacional da Chapada Diamantina, região de 152 mil hectares na Bahia. O espanhol de 27 anos era daqueles viajantes destemidos, mas, quando ele não deu notícias nas festas de fim de ano, a família estranhou e decidiu acionar a polícia brasileira.
Seus pais resolveram oferecer uma recompensa de 15 mil reais a quem tivesse informações sobre o filho. E, para acompanhar as buscas, que já se prolongavam, deixaram Barcelona e foram até a Bahia, com a filha, Paola Ferrara Tormo. Como lhes pareceu que as autoridades não estavam muito empenhadas na tarefa, contrataram uma equipe de resgate com cães farejadores. Em vão. Hugo Ferrara não foi encontrado.
Algum sinal do rapaz só apareceu quase um ano e meio depois de seu desaparecimento, em abril de 2017. Um guia da Chapada Diamantina achou, numa região montanhosa do Vale do Capão marcada por cânions e cachoeiras vultosas, uma mochila do rapaz, com um diário no qual ele havia registrado os seus dias finais. Paola e a mãe voltaram à Bahia para reconhecer os pertences.
Seguindo as indicações do diário, os bombeiros encontraram, em maio daquele mesmo ano, os restos mortais de Ferrara. Ele foi enterrado em Barcelona, no mês de março de 2018. Na certidão de óbito consta que sua morte, cuja causa nunca foi determinada, ocorreu em 26 de dezembro de 2015.
No diário, Ferrara conta as dificuldades que enfrentou após se acidentar. As anotações, algumas imprecisas, foram escritas em espanhol, português e inglês nas páginas de um manual de iPad e do livro O Clube dos Anjos, de Luis Fernando Verissimo. Foram preservadas seis folhas, o mesmo número de dias que, supõe-se, ele permaneceu vivo depois de uma queda.
Alguns trechos foram apagados pela água das chuvas. Ainda assim, o material conservou-se em bom estado por um ano e quatro meses, fechado em uma bolsa impermeável. “Acho que ele sabia que ia morrer e teve o cuidado de preservar os escritos para que soubéssemos o que ocorreu. É uma lembrança bonita que tenho dele”, diz Paola, de 30 anos, que pela primeira vez autorizou a imprensa a divulgar as anotações completas.
Dia 1. Comecei minha jornada de Brasília ontem de ônibus, chegando hoje às 5h da manhã em um posto de gasolina no meio do nada. Peguei carona até o Vale do Capão, onde comecei minha caminhada até Lençóis, muito rude o rapaz na entrada do Parque da Chapada Diamantina.
Esse é o início do relato de Ferrara, que vinha da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Na época, a região da Chapada Diamantina sofria com incêndios havia mais de cinquenta dias.
Eu vi algumas terras bonitas por onde poderia passar. Elas pareciam estar todas queimadas! Em alguns momentos tinha fumaça e fogo no chão!
Ferrara chegou ali em 20 de dezembro de 2015 para fazer, sozinho, uma trilha na região da Cachoeira da Fumaça, uma das mais altas do Brasil, com 380 metros. O registro de sua entrada no livro de assinaturas da Associação de Condutores de Visitantes do Vale do Capão, logo no começo da trilha, informa que seu plano era alcançar a parte de cima da queda d’água, um percurso que levaria duas horas. De lá, seguiria para outra cachoeira, conhecida como 21, cujo acesso é difícil e perigoso.
Após a primeira parada, no topo da Fumaça, Ferrara provavelmente se perdeu. Como ele mesmo conta, seguiu o fluxo de um rio, descendo em movimentos arriscados por cachoeiras sem água na época, devido à seca. Em uma das cachoeiras, pisou em falso e caiu de uma altura de 5 metros, batendo num platô. Depois, caiu novamente de uma altura de 2 metros. Quebrou um joelho, um pulso e alguns dentes.
Após a queda, ele escreveu (em inglês no original):
Eu estava vivo. Não acreditei. Mas não consegui me mexer muito, aos poucos fui descendo, já que parecia haver outra cachoeira. Levei uma hora para percorrer 40 metros, peguei algumas coisas que acreditei serem importantes para o frio e deixei todo o resto para trás.
Segundo o diário, essa outra cachoeira que Ferrara avistou em seguida era alta demais para ele tentar descer – tinha mais de 30 metros de altura. Ele resolveu gritar bem alto, na esperança de ser ouvido e resgatado pelos helicópteros que combatiam as queimadas. Mas não foi bem-sucedido. Procurou, então, um lugar para dormir. Encontrou um “espaço quase plano”, como relatou. De onde estava abrigado, só via o sol das 11h30 às 13 horas. Num misto de espanhol e português, escreveu:
Ultima noite choveu, non dormi, estaba tudo o chao mullado, ter a tenda e peor q non ter não, TB a perna facia muito dor, hoje, agora a tenho [a tenda] debaixo como colchão.
Suas últimas refeições foram noodles. E nos dias finais, quando o diário fica confuso e delirante, ele contou como as aves o divertiam:
Os pássaros brincam, voltam loucos. É um festival. […] Carica! o: bolsa roxa vazia apenas. Helicópteros, já não vejo, vi só um, nem escuto. So quite sos Egiptio… era inútil. Água mosquitos. Boa noite.
Em 25 de dezembro, anotou: Hoje é o sexto dia. Embaixo da data, acrescentou as palavras: Fum Fum Fum. É o título de uma música catalã tradicional de Natal (fum, em catalão, significa “fumaça”). “Acredito que essa anotação tenha sido uma forma de ele sentir que celebrava o Natal conosco, em família”, diz sua irmã. Ferrara não escreveu mais nada depois desse dia.
Hugo Ferrara trabalhava em Londres como agente de turismo. Gostava de circo, de dançar e de viajar. Era alegre e teimoso, segundo Paola. “Ninguém mudava sua opinião”, ela conta. “Amigos que estavam com ele na Chapada dos Veadeiros falaram que não tinha medo de nada. Tinha muita capacidade física, mas não tinha consciência do poder da natureza.”
Paola pensa em escrever a história de Hugo Ferrara para conscientizar viajantes sobre a importância de cada um conhecer seus limites e respeitar a natureza. Instrutora de meditação, ela sente uma conexão especial com a Chapada Diamantina, em especial com o Vale do Capão, onde seu irmão morreu. O lugar é um destino famoso de viajantes em busca de espiritualidade, e Paola tem vontade de morar lá. Na Espanha, quando percebem que ela fala português e perguntam qual é sua ligação com o Brasil, ela costuma responder: “Tenho família na Bahia. Parte do meu coração está lá.”