Heroísmo em questão
Filme iraniano premiado em Cannes estreia no Brasil no momento em que regime do Irã mantém três cineastas presos
No Festival de Cannes de 2021, Um Herói, de Asghar Farhadi, recebeu o Grande Prêmio – segundo em importância, após a Palma de Ouro – ex æquo com Compartment n° 6, do finlandês Juho Kuosmanen. Passado mais de um ano, Um Herói estreia amanhã (28/7) no Brasil, dezessete dias depois de ser noticiado que Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof e Mostafa Aleahmad, cineastas iranianos como Farhadi, estavam presos.
O jornal The Guardian (19/7) informou que Panahi fora preso em 11 de julho, quando foi com advogados e colegas ao escritório do promotor para saber sobre o bem-estar de Rasoulof e Aleahmad, detidos três dias antes. Panahi e Rasoulof haviam sido detidos em 2010, acusados de fazer ‘propaganda contra o sistema’, criticando o governo em seus filmes e em protestos. Condenado a seis anos de prisão, Panahi cumpriu dois meses e obteve liberdade condicional revogável. Foi impedido de sair do Irã e de fazer filmes [ao menos em tese], tendo ficado confinado a maior parte do tempo à sua própria casa durante os últimos doze anos […] Segundo o porta-voz do judiciário, Panahi deu entrada para cumprir sua sentença na prisão de Evin [centro de detenção de prisioneiros políticos, em um bairro de Teerã, denunciado como local de tortura e assassinato de dissidentes].” Assistir a Um Herói em tais circunstâncias, no mínimo preocupantes, não pode deixar de influir na maneira de ver o filme.
Considerado por alguns um cineasta que não afronta “diretamente os preceitos religiosos, nem o sistema político” da teocracia iraniana (Ivonete Pinto, Cinemas Periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos) e acusado em um post, no ano passado, de ser “pró-governo e antigoverno ao mesmo tempo”, Farhadi refutou essa imputação com veemência em carta aberta divulgada no Instagram: “Como você pode me associar a um governo cuja mídia extremista não poupou esforços para me destruir, marginalizar e estigmatizar nos últimos anos? Um governo para o qual deixei claro minhas opiniões sobre o sofrimento que causou ao longo dos anos – desde os eventos de janeiro de 2017 [série de protestos públicos contra o regime e o Líder Supremo que prosseguiram até janeiro do ano seguinte] e novembro de 2019 [nova onda de protestos iniciados dessa vez após o anúncio do aumento no preço da gasolina], até a amarga e imperdoável tragédia que causou o assassinato dos passageiros do avião ucraniano [derrubado em janeiro de 2020 por um míssil disparado por engano dos militares iranianos. Morreram 176 pessoas no desastre], da cruel discriminação contra mulheres e meninas à forma como o país permitiu que o coronavírus massacrasse seu povo.”
Quando a carta de Farhadi foi divulgada, em novembro de 2021, Um Herói havia sido indicado oficialmente pelo governo do Irã para concorrer ao Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional. No mesmo post, Farhadi se dirigiu também diretamente ao governo: “Por muitos anos, vocês acusaram meus filmes de serem ‘falsos’, e agora é incrível ver vocês fazerem o contrário. Se até agora fiquei calado sobre as perseguições que me infligiram é apenas porque quis me concentrar no meu trabalho, no qual realmente acredito. Se a indicação do meu filme para concorrer ao Oscar levou-os à conclusão de que estou em dívida com vocês, declaro explicitamente agora não ter nenhum problema se essa decisão for revertida. Já não me importo com o destino do filme que fiz com todo o meu coração. Seja dentro ou fora do Irã, esse filme viverá por seus méritos.”
A inscrição de Um Herói foi mantida. Incluído na primeira seleção, a chamada shortlist da Academia de Hollywood, o filme não foi, porém, nomeado entre os cinco finalistas. O Oscar de Melhor Filme Internacional foi atribuído a Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi, lançado no Brasil em março deste ano.
Farhadi é um cineasta consagrado em seu país e no exterior. Seus filmes têm sido premiados em vários festivais desde 2003, havendo críticos que qualificam alguns como obras-primas. Já ganhou dois Oscars, realizou Todos Já Sabem (2019) na Espanha, falado em espanhol, e Um Herói é uma coprodução Irã-França. Sua trajetória é marcada, inclusive, por sua postura crítica não apenas aos políticos, mas à política. Em 2012, ao receber o Oscar por A Separação (2011), declarou na cerimônia de premiação da Academia imaginar que muitos iranianos mundo afora estivessem felizes: “… porque no momento em que entre os políticos se fala de guerra, intimidação e agressão, o nome de seu país, Irã, é falado aqui através de sua gloriosa cultura, uma cultura rica e antiga que foi escondida sob a pesada poeira da política. Ofereço com orgulho este prêmio ao povo do meu país, ao povo que respeita todas as culturas e civilizações e despreza a hostilidade e o rancor” – palavras que teriam tornado Farhadi um herói instantâneo para os iranianos.
A reflexão sobre heroísmo elaborada no roteiro de Um Herói ecoa, talvez de modo imprevisto, a postura dos cineastas, presos ou não, frente às imposições da teocracia iraniana. Atitude pautada, mesmo correndo o risco de ser esquemático, por realismo conciliador da parte de uns e confronto heroico da parte de outros.
É revelador saber, conforme Farhadi diz em entrevistas, que Um Herói, teve origem na encenação de Vida de Galileu, de Bertolt Brecht, a que ele assistiu quando era estudante. A peça apresenta duas visões divergentes sobre a necessidade do heroísmo. Discípulo do célebre astrônomo, Andrea Sarti é o personagem definido na edição francesa do texto como “um monge muito estúpido”. Decepcionado com seu mestre quando ele renega diante da Santa Inquisição suas convicções sobre a rotação da Terra, Sarti diz: “Infeliz o país que não tem heróis!” Ao que Galileu responde pouco adiante: “Não. Infeliz o país que precisa de heróis.”
Depois de ter assistido à encenação de A Vida de Galileu, a pergunta que Farhadi declara ter feito a si mesmo foi: “Por que a maioria dos nossos heróis está morta? Quando as pessoas morrem, elas se transformam para se tornarem heróis. E eu entendi por quê. Quando elas se vão, quando elas morrem, quando elas estão mortas, elas estão muito distantes de nós.”
Colocando-se na posição de espectador do seu próprio filme, Farhadi pergunta: “Precisamos de algum herói? E é uma coisa real? Ou é uma fantasia, porque às vezes penso em ‘herói’ como um modelo que nos encoraja a seguir, mas que não é realista.” (entrevista completa disponível em https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-features/a-hero-asghar-farhadi-florian-zeller-video-interview-1235078518/ ).
A influência de Brecht em Um Herói, na verdade, vai além de ter sido a inspiração original, permitindo estabelecer um paralelo entre o astrônomo Galileu Galilei de Brecht e Rahim Soltani (Amir Jadidi), um homem comum que é o protagonista do filme de Farhadi.
“Galileu faz sua própria desgraça”, escreve Bernard Dort em Lecture de Brecht. O mesmo acontece com Rahim, que comete uma sucessão de erros ao longo dos dois dias da narrativa elíptica conduzida com maestria por Farhadi.
Segundo Dort, “Galileu acredita que pode ‘comer sem perigo na tigela do diabo’, para surpresa de seu amigo Sagredo: ‘Enquanto se trata de sua ciência, você tem muitas dúvidas, mas basta alguma coisa lhe parecer agilizar sua prática para que se torne crédulo como uma criança? Você não acredita em Aristóteles, mas crê no grão-duque de Florença!”
Galileu tem consciência dos “riscos aos quais ele se expõe”, adverte Dort. “Sabe que é de sua pesquisa que depende o nascimento de uma nova era”, enquanto Rahim, “crédulo como uma criança”, de erro em erro agrava sua situação até voltar para a prisão após sua liberdade provisória, com cabelo e barba raspados, sem ter conseguido pagar a dívida que o levou a ser preso, mas parecendo aliviado por se libertar da pressão social – incluindo a do sistema prisional e da mídia – para ser um herói, o que nunca foi sua intenção.
“Estaríamos enganados, porém,” escreve Dort, “se quiséssemos ver na Vida de Galileu […] a exaltação de um herói realista que age por astúcia e desconsidera qualquer moralidade preconcebida. Galileu […] é de fato um personagem coerente, plenamente consciente e, em certo sentido, exemplar. Mas seu drama ultrapassa sua própria pessoa – seu drama não é amar demais os bens deste mundo, nem ter traído uma falsa ideia de heroísmo. É ter traído objetivamente a ciência.”
“A novidade da obra de Brecht”, para Dort, está no “espectador ser chamado menos a julgar do que a compreender Galileu não em si mesmo, segundo critérios psicológicos ou morais, mas no mundo em que ele vive, com este mundo, isto é, histórica e politicamente.”
Se for possível assistir à via crucis de Rahim em Um Herói à luz do Galileu de Brecht, não creio que possa haver guia melhor.
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Destaque (II)
“…A mancha da cegueira nacional não é inata nem pequena… Uma cegueira que nos impede de reagir àquilo que desfila à nossa frente e que olhamos com os dois olhos bem abertos: a destruição a marretadas de leis, instituições, estado de direito, civilidade em sociedade. Ou, pelo menos, assim pareceu ao longo desta semana particularmente sombria. Raras vezes houve traficância política tão espúria no Congresso Nacional em detrimento de um Brasil viável no futuro. Nesse quesito, igualam-se em cinismo, demagogia e hipocrisia os bolsonaristas e oposicionistas que votaram (469 votos a 17) a favor da PEC de estelionato eleitoral, embrulhada em papel de presente social…”. Dorrit Harazim, “Estamos cegos?”, O Globo, Domingo, 17.7.2022
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