Foto: Vitória Pilar
O PF na era das vacas magras
Nos restaurantes de comida popular, comerciantes substituem carne bovina pela de porco, porco por frango e frango por ovo para tentar manter os preços e a clientela
Entre os corredores de um supermercado de Teresina, no Piauí, Adelina Bitencourt, de 54 anos, caminha pacientemente. Ela sabe que não é bom negócio ter pressa quando sai às compras. A paciência tem sido uma estratégia para driblar o alto preço dos alimentos – que a cada semana parece aumentar. Bitencourt se acostumou a ir a dois ou três supermercados em uma noite, o que fez de domingo a sexta, em busca do menor preço. Já sabe de cor e salteado os dias de promoção das hortaliças em um lugar X ou de frios no lugar Y. Para Bitencourt, vale a pena: se conseguir carne mais barata, tomate mais em conta ou arroz em promoção, é lucro no dia seguinte.
Quando começou a pandemia da Covid, ela teve a ideia de montar um negócio de comida. Vende pratos feitos, o popular “PF”. A inspiração veio dos anos de trabalho em buffets, preparando grande quantidades de comida para grandes quantidades de pessoas. Com a boa mão na cozinha, desempregada, montou as “quentinhas da Dedé”, como anunciou no WhatsApp, primeiro só para delivery. Quando ela começou o negócio, tinha em mente que serviria as comidas do buffet em PFs populares: tortas recheadas, carnes com molhos especiais, guarnições coloridas, mas tudo embalado em marmitex de alumínio e tampas de papel.
Com a disparada no preço dos alimentos, o menu da Dedé foi encolhendo. No começo do negócio, um prato com dois pedaços de carne, arroz, farofa, macarrão, feijão e salada chegava a 15 reais. Para não tirar nenhuma guarnição, ela tirou um pedaço da carne bovina — a inimiga do carrinho, que hoje chega a 50 reais o quilo. Com um pedaço de proteína a menos, o valor da marmita cai para 13 reais. O que não adiantou muito, já que os preços ainda continuam altos, e os clientes, sumindo. Na era das vacas magras, Dedé criou, não por inspiração vegetariana, mas por simples corte de custos, um prato sem carne. Entrou uma nova peça no menu: o “bife do olhão”, que nada mais é do que ovo, servido frito ou cozido. Esse PF custa 9,99 reais – e tem freguesia certa.
A salada também sumiu do cardápio. Se antes ela oferecia duas opções, agora trabalha somente com a tradicional salada verde: algumas rodelas de tomate e cebola perdidas entre as folhas de alface. A batata tem sido uma aliada para a cozinheira preencher as lacunas do PF. Em Teresina, o quilo da batata oscila entre 3 e 4 reais, o que lhe garante outros malabarismos na hora de montar o prato. Uma saída tem sido o escondidinho de carne – mas, claro, com mais batata e menos carne – que aparece no cardápio de três a quatro vezes na semana. Ele também apela para carnes de segunda, mas até elas têm estado mais caras. O esforço de Bitencourt também é pensando nos seus clientes, a maioria trabalhadores, estudantes e famílias das zonas médias e pobres da cidade. No começo ela até tentou vender comidas de cardápio de buffet, mas com o preço da carne bovina disparando, junto com cereais, verduras e legumes, foi abandonando a ideia e focou no PF.
O aumento dos preços da carne bovina, explica Patrícia Costa, economista e pesquisadora do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), se deve a um conjunto de fatores externos e internos. Com a pandemia, muitos países reduziram a produção de carne, e o Brasil aumentou as exportações do produto. Em junho deste ano, as exportações de carne bovina registraram seu pico, com receita de 1,14 bilhões de dólares. Comparado a junho de 2021, o aumento foi de 36,8% (835 milhões de dólares), apontam dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) divulgados pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Com mais carne brasileira sendo vendida no exterior, o preço subiu no mercado interno e sobrecarregou uma população empobrecida, a mesma que perdeu emprego e renda durante a pandemia. A mudança foi brusca: se antes a carne ocupava boa parte do orçamento dos brasileiros, uma pesquisa do Datafolha revela que, durante a pandemia, 67% estavam deixando de consumir o alimento.
Maria do Socorro de Menezes sabe bem os desafios para manter a clientela. Há oito anos ela vende PFs em Teresina, por encomenda e livre demanda. Da Zona Norte à Zona Sul, ela fornece marmitas armazenadas em uma grande caixa de isopor que coloca no porta-malas do carro. A maior parte dos clientes está nas periferias da cidade: trabalhadores do centro comercial e vendedores de feiras públicas. O marido ajuda, dirigindo o automóvel e negociando com os clientes.
Quando começou o negócio, em 2014, o PF custava 5 reais. Nos últimos tempos, ela desistiu do cardápio tradicional, fixo, e só decide o menu do dia seguinte depois de conferir os valores de tudo no supermercado. Nos últimos dois anos, o preço da carne ajudou a definir o custo do PF – que agora está em 15 reais. Ela não cortou a proteína, mas a venda de quentinhas caiu. Se antes vendia 150, agora só vende cerca de 70. A maior parte são clientes fixos, que já conhecem o produto de longa data. Por outro lado, captar novos clientes tem sido quase impossível. “Não sei como as pessoas estão se alimentando, mas acredito que não tem sido fácil nesse tempo difícil que o país está”, diz.
A inflação dos alimentos também chegou aos restaurantes dos bairros de classe média. Há seis anos, o administrador Marcos Aurélio Ferreira Moreira fundou com o marido um restaurante próximo a uma das principais avenidas da cidade, a Nossa Senhora de Fátima. No horário do almoço, ele disputa a concorrência com restaurantes italianos, casas de churrasco e a alta culinária gourmet no horário do meio-dia. O casal oferecia o PF, bem servido, em um marmitex de 750 ml para entrega. Caso o cliente quisesse aproveitar o lugar, um restaurante ambientado com itens retrôs, a comida do PF era servida em grandes louças brancas. Entre o alumínio e o porcelanato, foi tentando inovar até onde pôde para deixar o prato atraente, farto e manter a clientela fiel.
De janeiro a maio deste ano, o PF de Moreira, de real em real, subiu de 14 para 16 reais, depois 17, até chegar a 18 reais. Dentro do PF, malabarismos: ele foi trocando a carne pelo frango, o frango pela carne suína, o suíno pelas vísceras. E o ovo começou a brilhar no porcelanato. “Diariamente eu compro de tudo, proteínas e vegetais. Os preços estão em disparada. Todo dia é uma remarcação diária dos valores. Uma etiqueta hoje já tem o valor trocado amanhã. Financeiramente vai ficando inviável”, declara Moreira.
Enquanto o preço dos alimentos subia, os clientes iam sumindo do salão. O resultado não foi outro: Moreira fechou as portas na hora do almoço, cortando de vez o PF. Foi a primeira vez, desde que fundou o negócio, que ele precisou tomar uma medida tão drástica assim. Mantém apenas o bar de drinks à noite e não sabe tão cedo quando irá reabrir as portas do seu restaurante na hora do almoço. E, quanto a isso, é incisivo: “Enquanto o preço da comida não baixar, não consigo tão cedo desfilar um prato feito no salão”, relata à piauí.
Para tristeza de comerciantes e consumidores, a tendência é que o preço da carne bovina continue subindo. A partir do segundo semestre, o gado entra no período de entressafra, quando se abate menos, devido ao tamanho dos novos bezerros. De setembro a dezembro, a expectativa é que haja ainda menos quantidade de carne circulando no país. A prioridade do produtor será manter as exportações. O resultado não deve ser outro: a carne bovina, que hoje já está a quase 50 reais o quilo nos supermercados e açougues, terá novo galope nos preços. Pelo cenário previsto, Bittencourt terá de buscar novos substitutos para o bife, o PF de Menezes deve sofrer novos cortes e subir de preço, e Moreira tão cedo não deve reabrir o seu restaurante no pico do meio-dia para vender PF na louça de porcelanato branco.
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