ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Teerã é uma festa
Diplomatas se divertem no Irã, agora sem o embaixador russo
Consuelo Dieguez | Edição 191, Agosto 2022
Foi em Teerã que, em 1943, os líderes das potências aliadas – Winston Churchill, do Reino Unido, Joseph Stálin, da União Soviética, e Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos – se encontraram a fim de discutir os planos para liberar a França do invasor nazista, na ofensiva que começaria pela Normandia em 6 de junho de 1944, o Dia D. Os lances finais da guerra na Europa foram traçados em reuniões nas embaixadas norte-americana, russa e inglesa na capital iraniana, entre festas e jantares. Na ocasião, os três líderes que participavam da Conferência de Teerã posaram sorridentes para uma foto histórica.
Quase oitenta anos depois – e trinta anos após a dissolução da União Soviética –, a guerra da Ucrânia abalou as relações entre Rússia, de um lado, e Estados Unidos, Reino Unido e demais países da Europa Ocidental, de outro. Chegou-se a um nível de tensão que não se via desde o fim da Guerra Fria.
Há décadas, o país dos aiatolás não abriga mais encontros entre líderes de grandes potências. Mesmo assim, um evento no meio diplomático de Teerã ofereceu recentemente um retrato em miniatura do atual estado de beligerância internacional. Em 6 de junho, a embaixada da Rússia promoveu uma festa para comemorar o dia nacional da língua russa. No grande salão contíguo à sala de jantar – com sua imensa mesa cercada por cadeiras no estilo império forradas com seda florida, em torno da qual Churchill, Stálin e Roosevelt confraternizaram em 1943 –, o embaixador russo no Irã, Levan Dzhagaryan, circulou entre duas centenas de convidados. Nenhum deles era dos países da Europa Ocidental.
Na celebração estavam presentes diplomatas de países integrantes do Brics – bloco que reúne Brasil, Índia, China e África do Sul, além da própria Rússia – e representantes de nações latino-americanas, árabes, africanas e asiáticas (as duas Coreias compareceram). O embaixador russo não escondia sua alegria e até certa comoção ao recepcionar os poucos amigos que ainda podiam prestigiar um evento promovido pelo país governado por Vladimir Putin. A maioria dos diplomatas europeus foi obrigada a se afastar do embaixador Dzhagaryan, por causa do estremecimento das relações entre seus países e a Rússia.
Levan Dzhagaryan é um sujeito simpático, efusivo e estimado pelos colegas. Também é tido como muito bem informado. Esses atributos pessoais popularizaram o embaixador na capital iraniana, onde os diplomatas se encontram com frequência em rega-bofes, coquetéis e aniversários. Pois Teerã é uma festa – ou, pelo menos, uma festa para os embaixadores. E nesse quesito a embaixada russa era, até há pouco tempo, um lugar especialmente atraente, pois sediava as melhores recepções.
O entrosamento maior se dá entre os europeus e os latino-americanos. E os encontros mais divertidos, claro, não têm caráter oficial: são reuniões de amigos para papear e beber. O consumo de álcool é permitido nas residências diplomáticas de Teerã, desde que não haja integrantes do governo iraniano, para não ferir suscetibilidades.
Para Dzhagaryan, porém, esses simpáticos convescotes com os amigos diplomatas chegaram ao fim há alguns meses, por causa da guerra da Rússia com a Ucrânia. O distanciamento ficou claro no duro discurso que fez na festa de 6 de junho. Ele criticou as sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos e pelos países europeus à Rússia e lamentou o impacto que estão tendo sobre a população. Bateu na tecla de que essa é uma guerra “por procuração”, na qual a Rússia não estaria invadindo a Ucrânia, mas confrontando os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Na visão do embaixador russo, apesar das insistentes tentativas diplomáticas de seu país para que a Ucrânia não fizesse parte da Otan, os Estados Unidos defenderam a presença da organização no país, o que, disse ele, representaria uma clara ameaça. Por essa razão, a “entrada” da Rússia na Ucrânia teria sido um gesto de “legítima defesa”. “Nossa luta não é contra a Ucrânia”, insistiu. “É contra os Estados Unidos e a Otan.”
Depois, como todo bom diplomata, amenizou o tom. “Quero dizer que não temos nada contra o povo norte-americano. Nós gostamos muito dos norte–americanos”, disse. A briga, insistiu, era contra os governantes. Para atestar a tal simpatia pelos Estados Unidos, a festa prosseguiu embalada por uma trilha sonora composta basicamente de jazz, nas vozes de alguns dos maiores cantores norte-americanos, como Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Frank Sinatra.
Ao fim da comemoração, Dzhagaryan acompanhou os embaixadores que lhe são mais próximos até a porta. Na despedida, após abraçar cada um, levantava o punho e repetia o famoso bordão com que a ativista espanhola Isidora Dolores Ibárruri, La Pasionaria, conclamava os republicanos espanhóis a resistirem ao Exército do fascista Francisco Franco: No pasarán.
No dia seguinte ao evento russo, um grupo de embaixadores europeus se reuniu numa das residências oficiais para celebrar o aniversário de um diplomata, com dança e muita conversa. Em outros tempos, Dzhagaryan estaria presente. Agora, ele era um dos assuntos da festa.
Em uma das mesas, falou-se bastante da recepção na embaixada russa. Aqueles que não compareceram queriam saber o que havia acontecido lá. Os diplomatas estavam divididos em relação ao conflito da Ucrânia. Alguns deles consideravam que não havia saída contra a agressividade de Putin a não ser aplicar sanções contra a Rússia. Outros consideravam que a Otan forçara o conflito, em vez de buscar a diplomacia para resolver o impasse.
Em relação a Levan Dzhagaryan, contudo, havia unanimidade. Todos se compadeceram ao saber que o russo se emocionara com a presença dos poucos amigos que lhe sobraram. “Que tristeza”, disse um dos diplomatas. “Levan é uma ótima pessoa.” Outro acrescentou: “Muito triste termos que abandoná-lo.” E um terceiro confessou. “De vez em quando dou um pulo escondido na casa dele, para visitá-lo.” Em seguida, todos se levantaram e foram dançar. Afinal, the party must go on.