ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
90 segundos em Siena
Uma secular corrida de cavalos está de volta, após a Covid
Damian Platt | Edição 191, Agosto 2022
Tradução de Isa Mara Lando
Os moradores de Siena dizem: Palio è vita (Palio é vida). O Palio é a tradicional corrida de cavalos realizada desde 1633 na cidade medieval italiana – hoje com cerca de 60 mil habitantes. Ocorre duas vezes por ano, em 2 de julho e 16 de agosto, em torno da praça central, a Piazza del Campo, com seu formato de concha. O primeiro Palio de 2022 veio carregado de uma significação especial, pois as corridas foram suspensas nos dois anos anteriores, devido à pandemia. No passado, a competição foi cancelada em raras ocasiões: após um terremoto em 1798, por causa de um surto de cólera em 1855 e durante as duas guerras mundiais.
Cada Palio é disputado pelas várias contrade (distritos) de Siena, que fica no topo de uma colina, na região central da Toscana, e foi uma das cidades-Estados autônomas que antecederam a fundação da Itália moderna. Um dos propósitos originais de cada contrada era fornecer soldados para os exércitos que defendiam Siena de cidades rivais.
Cada corrida dura, em média, noventa segundos, e o objetivo é um só: a vitória. Chegar em segundo lugar é uma vergonha. Um cavalo sem cavaleiro pode vencer. Os jóqueis, que montam os animais em pelo, usam trajes com as cores da respectiva contrada, e levam na mão um chicote feito de pênis de bezerro para bater uns nos outros e instigar seus cavalos.
Não existem apostas, mas grandes somas de dinheiro mudam de mãos – há chefes de distritos que pagam aos outros chefes para serem favorecidos no resultado da corrida. A contrada vencedora não recebe nenhuma compensação financeira, apenas uma bandeira de seda decorada: o almejado Palio.
Há dezessete contrade em Siena. Cada uma funciona como um estado dentro do Estado, com o próprio território, as próprias canções e o próprio emblema, geralmente um animal. Em parte sociedade de ajuda mútua, em parte clube social, a contrada tem sua estrutura organizacional particular, sua constituição e suas características democráticas. Ao longo do ano, seus membros se reúnem para jantares, batizados, casamentos e enterros.
O Palio é a manifestação suprema da vida da contrada. Equilibrando sorte e astúcia em igual medida, a corrida se desenrola como uma ópera, em vários atos, ao longo de quatro dias. Começa com um sorteio: autoridades públicas utilizam um aparelho especial para atribuir, aleatoriamente, a cada contrada um dos dez cavalos pré-selecionados (devido a restrições de espaço, apenas 10 dos 17 distritos podem competir em um Palio, ganhando sua vaga por rotação).
Quando a contrada recebe seu cavalo, ela avalia as chances. A força do cavalo vai definir as estratégias para a corrida e a decisão crucial: qual jóquei contratar. O jóquei não pertence a nenhuma contrada; é um autônomo, e de costume vende seus serviços para quem dá o maior lance. Outro fator: a maioria dos distritos tem um rival específico, e tão importante quanto buscar a vitória é garantir a derrota desse inimigo.
A tensão vai aumentando, enquanto os membros da contrada acompanham seu cavalo em dois testes diários, realizados na piazza. À noite, eles se reúnem para comer, beber e especular sobre o possível vencedor. Na véspera da corrida, grandes banquetes acontecem em toda a cidade.
Na contrada de Valdimontone (Vale do Carneiro), 2 mil comensais desfrutam de um jantar de quatro pratos numa ruazinha de paralelepípedos, toda arborizada, que sobe suavemente até uma basílica do século XIII. Mesas meticulosamente arrumadas e decoradas com toalhas cor-de-rosa se alinham sob o clarão das luminárias, ornamentadas de vermelho e amarelo. A maioria dos clientes usa uma echarpe de seda rosa com a figura de um carneiro. Antes do banquete, um porta-bandeira e um homem com um tambor, vestindo as cores da contrada, marcham entre os comensais rumo à mesa superior, onde os chefes do distrito se sentam ao lado do jóquei.
Bebe-se o vinho, cantam-se as músicas, e é a vez dos discursos. A comida é toda feita por voluntários da contrada. Simone Turchi, um homem barbudo de olhos brilhantes, aparentando ter menos que seus 50 anos, explica como foi preparado o segundo prato, uma lasanha: “Há quatro dias um grupo de seis pessoas fez um ragu de carne suína, todo de Cinta Senese, uma raça de porcos aqui do local. Ontem à noite, outra equipe de dez pessoas fez 270 litros de molho bechamel, com farinha, manteiga, leite e noz-moscada. Terminaram por volta das três da madrugada. Hoje de manhã, doze mulheres começaram a trabalhar com o ragu, o molho bechamel, 20 kg de queijo parmesão ralado e quatrocentas folhas de massa. Fizeram 130 travessas de lasanha, cada uma com 18 porções.”
No dia seguinte, poucas horas antes da corrida, os cavalos concorrentes são levados às igrejas das contrade para serem abençoados. Em seguida, grupos selecionados entre jovens das contrade, vestindo trajes medievais, participam de uma lenta procissão ao redor da Piazza del Campo, agitando bandeiras e tocando tambores, num calor implacável de 38ºC. Ao redor deles, os espectadores pagantes lotam as arquibancadas que circundam a pista. Outros acorrem ao centro da praça para assistir de graça.
Há uma última reviravolta na trama antes da corrida: as posições iniciais são decididas, mais uma vez, por sorteio. Um silêncio tenso cai sobre a multidão de mais de 20 mil pessoas quando os lugares são anunciados, pois os cavalos que largam no interior da pista têm mais probabilidade de vencer. Com tanta coisa em jogo, vários concorrentes queimam a largada. Quando por fim os cavalos partem, Valdimontone fica para trás – o jóquei pensou, erroneamente, que era mais uma largada falsa. A contrada do Drago (Dragão) vence o Palio de julho de 2022.
Apesar disso, Turchi está relaxado. O Drago não é um inimigo. O cavalo da contrada de Valdimontone, novato na corrida, tinha uma chance mínima de vencer. Para Turchi, o fato de todos da contrada estarem reunidos é tão importante quanto a corrida. A vida ali, diz ele, é sempre rica em “amor, paixão, vinho, música e boas risadas”. Depois da Covid, mais do que nunca.