ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Um país vermelho
A artista que busca a cor do pau-brasil
Tatiane de Assis | Edição 191, Agosto 2022
No primeiro dia de julho, a artista Bel Falleiros curtia o final de uma temporada em São Paulo, antes de retornar a Nova York, onde mora atualmente. Não, ela não foi ao boteco jogar conversa fora com os amigos. Decidiu se concentrar no trabalho que iria apresentar na 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).
Por volta das cinco da tarde, Falleiros, paulistana de 39 anos, estava sentada em uma banqueta alta, pintando com uma tinta extraída do pau-brasil um tecido de 2,77 metros de altura por 7,13 metros de largura. A última medida também faz referência ao pau-brasil: o maior exemplar conhecido da árvore, descoberto na cidade de Itamaraju, no Sul da Bahia, em 2020, tinha um perímetro de 7,13 metros.
Vermelho como Brasil – o título da obra da artista – nasceu em uma sala de janelões e porta de vidro, espaço cedido a Falleiros pela estilista Flavia Aranha, que ali ministra oficinas de tingimento natural. Na mesma casa, situada na Vila Madalena, bairro boêmio de São Paulo, Aranha mantém sua loja e um jardim com costelas-de-adão e uma jabuticabeira de mais de 6 metros de altura.
Naquela tarde de julho, a artista delineava, com gestos pacientes, mas vigorosos, troncos e raízes sobre o tecido. Conforme a tinta vermelha, em tom bordô suave, preenchia a superfície, uma espécie de floresta ia se formando.
O interesse de Bel Falleiros pelo pau-brasil surgiu em 2018, quando ela morava em Sunset Park, bairro ao Sul do Brooklyn, em Nova York. Vez por outra, ela passava na frente de uma lojinha de artigos religiosos. Na vitrine, em meio a imagens de santos católicos e orixás, saquinhos com pedaços de madeira chamaram sua atenção. A etiqueta branca informava, em letra cursiva, o que os sacos continham: Palo de Brasil.
Falleiros achou estranho encontrar nos Estados Unidos fragmentos da árvore que deu nome a seu país. Um dia, entrou no estabelecimento, comprou alguns saquinhos e só depois arriscou perguntar sobre a procedência do produto. “A dona da loja ficou meio ressabiada”, conta. A origem era desconhecida, o que tornava duvidosa a legalidade do comércio daquelas lascas.
No seu ateliê nova-iorquino, Falleiros ferveu o Palo de Brasil em água. O resultado foi uma tinta rubra. Ao longo da secagem, a cor foi mudando, mas permaneceu no espectro do vermelho. Naquele mesmo ano, Jair Bolsonaro fazia sua campanha eleitoral proclamando que a bandeira nacional “jamais será vermelha”. Falleiros decidiu pegar a contramão, e investiu na cor abominada pelo então candidato à Presidência.
O primeiro passo foi procurar pau-brasil de procedência certificada. Foi assim que a artista encontrou Flavia Aranha na internet. Para tingir algumas de suas peças com serragem de pau-brasil, a estilista utiliza resíduos de uma fábrica no Espírito Santo que faz arcos de violino. Adriano Ferreira, assistente de tingimento de Aranha, explica que, para ser usada nos tecidos da estilista, a serragem é fervida em água de pH neutro. À mistura, depois, são acrescentadas substâncias que a deixam mais alcalina ou mais ácida, dependendo do tom que se queira alcançar. “No caso da Bel, colocamos pedra-ume para fixação da cor no tecido e também para atingir um tom mais escuro. Essa tonalidade é viva, muda conforme o tempo”, explica Ferreira. A mistura também leva goma de guar, uma espécie de fibra, que torna o líquido mais espesso.
O encontro da serragem de pau-brasil, de um alaranjado terroso, com a água fervente faz lembrar uma queima de fogos. Ao primeiro contato, a madeira já libera seus pigmentos. “Daqui uns vintes anos, as cores que são fruto desse tingimento não vão mais existir. O pau-brasil está em extinção. O plantio não é fácil de realizar”, diz Aranha.
As evocações históricas dessa árvore na arte de Bel Falleiros são claras: sua extração corresponde ao primeiro ciclo econômico do Brasil Colônia, início da devastação de florestas e do emprego de mão de obra escravizada. O vermelho na obra remete a essa história de desrespeito – não só aos recursos naturais.
O gesto final antes da exibição da pintura gigante não se deu no ateliê, nem veio da artista. Ocorreu na Sala Paulo Figueiredo do MAM, em 20 de julho, quinze dias depois de Falleiros voltar aos Estados Unidos. E foi obra de sua irmã, a arquiteta Beatriz Falleiros, de 35 anos, que acompanhou a montagem do trabalho, suspenso por cabos de aço fixados no alto da laje do museu. No dia 23 de julho, ocorreu a abertura da 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira, intitulada Sob as Cinzas, a Brasa e que tem curadoria de Cauê Alves, Claudinei Roberto, Cristiana Tejo e Vanessa Davidson.
Vermelho como Brasil lembra um enorme biombo de formato cilíndrico. Com diâmetro de 2,77 metros, tem uma abertura na parte da frente, permitindo que os visitantes “entrem” na obra. A ideia está associada a um episódio afetivo que Falleiros viveu na infância com sua avó, que era bióloga.
Passeando pelo Parque da Aclimação, em São Paulo, a menina avistou um tronco seccionado. “Minha avó me disse que o exterior, mais duro, é a parte velha da árvore e protege a parte interna, viva. Quando fica oca, a árvore morre”, recorda. A artista diz que não pensou nisso enquanto fazia sua obra no MAM, porém gostou da associação: “As pessoas no interior da instalação são uma forma de celebrar a vida.”