O percurso da expedição a caminho das profundezas da Terra do filme Il Buco Foto: Divulgação
Il Buco – rumo à profundeza da Terra
Filme premiado em Veneza estreia no Brasil e corre risco de passar despercebido
A estreia de Il Buco, de Michelangelo Frammartino, na semana passada (11/8), em cinemas de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Brasília, mesmo com apenas uma ou duas sessões por dia, é um evento ímpar que corre sério risco de passar despercebido. Confirmada essa hipótese, terá sido perdida a oportunidade de assistir a um filme superior, de qualidade singular, espécie cada vez mais rara em nosso circuito de exibição.
Após receber o Prêmio Especial do Júri no 78º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2021, Il Buco foi exibido em diversos outros festivais, sendo premiado em Londres, Sevilha e Jerusalém. Antes de estrear em Nova York há três meses, um crítico chegou a escrever que “é nada menos do que milagroso e um dos melhores filmes do ano”. Lançado na Itália em 24 cinemas no ano passado, rendeu pouco mais de 94 mil dólares, chegando a modestos 228 mil dólares em âmbito mundial, o que não é surpreendente, considerando se tratar de um filme cujo título, em tradução literal, é O Buraco, preservado no original italiano, porém, ao ser lançado no Brasil.
Renda de bilheteria minguada como essa deixa claro que a produção de Il Buco só foi viável por ser uma coprodução de três países – Itália, Alemanha e França –, além de contar com a participação do canal de televisão público RAI Cinema e de ter recebido apoio do fundo Eurimages que, sem relegar o objetivo de ter sucesso comercial, “quer demonstrar que o cinema é uma arte e deve ser considerado como tal” (“Cinéma européen : l’Union fait-elle la force?” Journal Francophone de Budapest, 27 de março de 2007).
Cinéfilos atentos devem lembrar de Le quattro volte (2010), filme anterior de Frammartino inspirado na proposição de Pitágoras segundo a qual o Homem passa do estado mineral ao vegetal, deste ao animal e, finalmente, ao racional. Exibido na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e no Festival do Rio, com o título traduzido por engano para As Quatro Voltas, em vez de As Quatro Vezes, teve lançamento comercial depois no Brasil, em dezembro de 2012. Foi exibido dois anos mais tarde, no Rio de Janeiro, com uma sessão por dia na microssala de 87 lugares do antigo Cine Jóia. No subsolo de um shopping em Copacabana, esse cinema foi levado a ter suas atividades encerradas em novembro de 2020, após as projeções terem sido suspensas em março por conta da pandemia.
Ao comentar Le quattro volte há onze anos aqui no site, indiquei alguns de seus traços característicos encontrados agora em Il Buco – sintonia perfeita entre tema e estrutura narrativa; imagens sóbrias; diferença marcada de uma reportagem; predomínio de planos gerais fixos, sem deixar de recorrer a ocasionais closes e panorâmicas.
Faltou mencionar a ausência quase completa de diálogos, repetida também em Il Buco, do qual Frammartino, além de diretor, é coautor do roteiro com Giovanna Giuliani. No entanto, mesmo contendo aspectos de estilo comuns, o filme mais recente se diferencia do anterior devido a sua principal vertente narrativa ser uma encenação da descida do Abisso del Bifurto (Abismo do Bifurto), na Calábria, feita em 1961, tida na época como uma das cavernas mais profundas do mundo.
Um grupo de jovens espeleólogos – estudiosos das cavidades naturais subterrâneas da terra interessados na sua preservação – partiu de Turim, no Norte da Itália, rumo ao Sul do país, acampou entre as comunas de Cerchiara e San Lorenzo, ao lado da entrada da gruta, e percorreu seus 683 metros.
O percurso da expedição a caminho das profundezas da Terra é alternado no filme com cenas do velho pastor de gado Zi’ Nicola (Nicola Lanza), visto quase sempre em close, que se comunica com o rebanho e observa de muito longe o acampamento dos espeleólogos.
O paralelo entre o Norte próspero da Itália e o Sul rural do país, da investigação científica com o manejo do gado, do moderno com o arcaico, enfim, é explicitado nos 7 minutos e meio do prólogo. O primeiro plano de Il Buco começa com um longo fade-in que revela aos poucos a abertura da gruta em forma de coração, vista de dentro para fora. Começa-se a ouvir o tilintar do cincerro se aproximando até as cabeças de duas vacas com chifres surgirem na beirada do buraco. Seguem-se planos gerais do maciço de Polino com a luz do sol filtrada pelas nuvens; o rebanho no vale, visto de muito longe; Zi’ Nicola em close manejando o gado por meio dos seus comandos de voz; a vila no entardecer; moradores sentados diante do bar, assistindo pela televisão a uma reportagem sobre o edifício-sede da Pirelli, em Milão, inaugurado em 1958, conhecido como Pirellone, símbolo da recuperação econômica da Itália após a Segunda Guerra Mundial. Nessa sequência final do prólogo, o repórter sobe pela fachada envidraçada do prédio. Após passar pelas salas do 24º ao 30º andar, todas com ar-condicionado, ele declara estar levando “os telespectadores em casa”, o que abrange os distantes calabreses, “do térreo até 120 metros de altura”. Segue-se o título do filme e o desembarque dos espeleólogos na pequena estação ferroviária de Villapiana, próxima a Cerchiara. Eles chegam com o objetivo de ir no sentido oposto à subida do Pirellone, descendo fossos e percorrendo túneis, até o ponto extremo do Abismo de Bifurto.
Conduzida com maestria por Frammartino, a contraposição de propósitos, um rumo às alturas, outro às profundezas, é o princípio norteador da narrativa de Il Buco. Em entrevista ao crítico Leonardo Goi, publicada em maio deste ano e disponível na plataforma de streaming Mubi, Frammartino explicita a premissa do filme: o ano da expedição “é o centenário da unificação da Itália. Estávamos no meio do chamado boom econômico. O Pirellone está sendo construído. Não é curioso que tantos feitos daqueles anos estejam imbuídos do mesmo tipo de simbologia vertical positiva?”. Quando um dos participantes da expedição de 1961 contou a aventura do grupo de jovens para Frammartino ele teve impressão que “a descida da superfície da Terra parecia uma contra narrativa extemporânea, algo que contradizia o espírito da época. Esses jovens… descem abismo adentro enquanto todos os outros estavam tentando alcançar o céu – e decidem não contar a ninguém? Não é louco?”.
Para Frammartino, “os jovens que escolheram descer ao subterrâneo da Terra de maneira sorrateira, em 1961, eram extraordinários, ousados, arrojados; eles foram contra as forças predominantes de sua época e trabalharam ‘de graça’ para nós outros, de certa forma. Mas eles também estavam envolvidos, de modo inequívoco, em uma espécie de colonização… eles deram forma a um mundo outrora sem forma. No minuto em que começaram a mapear os contornos daquela caverna, despojaram-na de todos os seus mitos… Eles a batizaram. Agora você sabe que é uma caverna com 29 fossos. Nada é deixado para a imaginação. A coisa mais triste e violenta é quando uma caverna se transforma em destino turístico. É quando você sabe que tudo acabou. Creio estar dizendo que, mesmo quando você faz a crônica de uma expedição tão formidável como essa, sempre enfrentará uma reação contrária mais sombria”. O que, segundo Goi, explicaria “o mal-estar do pastor à medida que o filme avança. Ele parece compartilhar uma espécie de relação simbiótica com o vale; uma vez que a caverna é profanada, sua saúde piora”. Ao que Frammartino responde, em resumo, terem decidido “deixar o máximo de espaço possível para as pessoas compreenderem as muitas maneiras diferentes pelas quais essa viagem interna pode ser lida e o que isso pode significar”.
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Destaque (V)
“Eu sei que não é um livro fácil [referência de Namwali Serpell ao seu recém-publicado romance The Furrows]. Uma das razões pelas quais escrevi minha dissertação sobre textos experimentais que brincam com o tempo e a percepção fragmentada [base do estudo acadêmico Seven Modes of Uncertainty, de Serpell, publicado em 2014] foi que estava achando, como a maioria de nós, muito difícil lidar com a incerteza na vida real, embora, na literatura, me parecesse incrivelmente atraente e não conseguia entender por quê… O romance fala, de fato, sobre como é ser mestiço, ser negro na América, ser confundido com outra pessoa, lidar com o luto em uma família, mas a forma é na verdade uma tentativa de criar uma experiência mais afim ao funcionamento de um poema do que de um ensaio pessoal sobre a perda.” Namwali Serpell, entrevista em The Guardian, 13 de agosto de 2022.
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