ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Guerra sem fim
O terror de três gerações de mulheres no Complexo do Alemão
Damian Platt | Edição 192, Setembro 2022
Ana Beatriz Nascimento da Luz, de 24 anos, acorda sempre às quatro da manhã. Ela gosta de chegar arrumada ao trabalho e por isso leva uma hora inteira para ficar pronta. Não foi diferente na manhã de 21 de julho de 2022, quinta-feira. Bia, como é chamada por familiares, saiu de sua casa no coração do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, às 5 horas, deixando o marido de 28 anos, André Ricardo Pio Peres, e o filho de 5 anos, Miguel, dormindo.
Sua jornada diária até um hortifrúti da Tijuca, onde trabalha como operadora de loja, começa com a subida de uma escada sinuosa e precária, e depois vem a descida por uma longa escadaria até a Avenida Itaoca, onde pega um ônibus. Em 21 de julho, ela não conseguiu completar esse trajeto: uma operação policial abalou a vida na favela, deixando, só naquele dia, dezoito mortos.
Bia notou que não havia quase ninguém na rua. Também percebeu que, em uma das vias por onde passava, lixeiras haviam sido arrastadas para bloquear o caminho. Ela não deu grande atenção para essa barricada, pois é uma prática costumeira dos governantes de fato da comunidade: os narcotraficantes da facção criminosa Comando Vermelho. Mas, enquanto descia o longo lance de escadas que leva à rua, foi chamada por alguém em uma janela. Uma mulher que Bia nunca vira antes a convidou para se abrigar em sua casa. O marido da mulher havia telefonado para contar que viaturas policiais – incluindo caveirões – estavam entrando no Complexo do Alemão.
Os tiros começaram quando Bia estava cruzando a soleira da porta. A mulher a levou correndo para a cozinha, junto a suas duas filhas adultas. O tiroteio arrefeceu depois de vinte minutos, mas estava claro que era apenas o início de uma operação que duraria muito tempo. Bia decidiu que não trabalharia naquele dia. Agradeceu à família que a acolhera e retornou para sua casa.
Bia sofre de asma e teve uma crise no trajeto de volta. Sentiu-se tonta. Um helicóptero da polícia passou, atraindo tiros de traficantes no solo. Ela tentou se abrigar e, depois, respirando com dificuldade, esgueirou-se por becos vazios, desceu as escadas e chegou de volta à sua casa às 5h40. Estava tão tensa que, quando tentou contar ao marido o que havia acontecido, a mandíbula ficou travada.
Em uma casa vizinha, a mãe de Bia, Claudia Silva do Nascimento, de 41 anos, acordou com o despertador às 5h50. Claudia trabalha como babá para uma família no bairro da Urca. Ao ler as várias mensagens sobre a operação no celular, seus pensamentos voltaram-se imediatamente para a filha caçula, Bruna Rayane Nascimento de Castro, de 20 anos, que mora a poucos passos de distância, com dois filhos – Gael, de 2 anos, e Noa, de 6 meses. Logo que saiu de casa para buscar a filha e os netos, Claudia deparou-se com dois soldados do Comando Vermelho – ou, como ela diz, “dois meninos”. Explicou que precisava passar para buscar a filha. Eles mandaram que ela andasse rápido, pois a polícia estava subindo o morro.
Claudia tirou Bruna da cama. As duas juntaram fraldas e leite e carregaram as crianças às pressas para a casa da avó. Lá, Bruna percebeu que havia esquecido o antibiótico que o bebê estava tomando. Nova corrida até a casa. Claudia notou que o número de traficantes no caminho já era bem maior – talvez quarenta, nas contas dela. Muitos usavam coletes à prova de balas e carregavam fuzis.
Também nas imediações, a mãe de Claudia, Maria Olinda Silva do Nascimento, 64, cuidadora de idosos, acordou com tiros próximos ao beco onde reside. Já sabia que era uma operação policial. Ela correu até o portão da frente, para deixar que seu ex-marido, que vive numa casa próxima, entrasse em seu prédio. Olinda mora em um apartamento bem protegido. Enquanto seu ex se agachou embaixo da mesa da sala, ela correu para o banheiro em busca de proteção. Uma bala atingiu uma barra de metal em sua varanda. Assustada com o barulho, ela voltou para a sala.
Logo, os dois ouviram gemidos vindos do lado de fora. Alguém tinha sido atingido no beco. Depois que o tiroteio acabou, Olinda foi até o portão. Canos de água estourados lavaram o sangue ao longo da passagem de concreto na frente de sua casa. Olinda soube que dois membros da facção criminosa morreram a poucos metros de distância.
Olinda não saiu de casa por dois dias. Ela achava que a situação na favela continuava perigosa. Estava certa. Na manhã do dia 22, sua amiga e vizinha Solange Mendes, de 49 anos, morreu baleada por um policial que supostamente a confundiu com um traficante. Solange foi a 19ª vítima fatal da operação.
Para Claudia, o pior momento veio à tarde, quando ouviu os gritos e o choro das mães encontrando os corpos dos filhos. “Vivo aqui tem 41 anos e nunca tinha passado por isso”, diz ela. “É muito triste. É uma dor de lamento que não quero sentir nunca na minha vida. Foi muito jovem perdido. Não porque a mãe largou, mas porque eles escolheram a vida errada. E a mãe sofre. E, se uma mãe chora, como dizemos aqui, todas choramos juntas. É o que a gente sempre faz. A gente chora junto, porque é mãe.” Enquanto lembra isso, lágrimas escorrem pelo rosto de Claudia, geralmente uma pessoa alegre.
Bia passou o dia deitada em um cobertor no chão do cômodo mais seguro de sua casa. O pequeno Miguel ficou petrificado. “Ele me agarrava, me dizia: ‘Mãe não aguento mais’”, conta Bia. Sua mãe, Claudia, diz que o medo é o pior de tudo: “Você sai para trabalhar e não sabe se vai voltar vivo. Você manda o filho para a escola e não sabe se ele vai voltar vivo. Essa é a realidade hoje de quem vive dentro de uma comunidade… pode ser de milícia, do Comando Vermelho, do Terceiro Comando. Porque a bala não tem dono, não tem nome, não tem sobrenome. É uma Maria. É um José. É uma Claudia. É uma Bia. É uma Solange.”
Bia concorda com a cabeça. “É uma guerra que vai passar de geração para geração. Passou pela minha avó, passou pela minha mãe, passou por mim. O meu filho também já está vivendo. É uma guerra sem fim.”