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    Ilustração: Carvall

colunistas

A direita para além de Bolsonaro

Possível derrota do projeto bolsonarista nas urnas pode favorecer reorganização política de grupos direitistas

Camila Rocha | 22 set 2022_10h41
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Existe uma direita radical para além de Bolsonaro. Antibolsonaristas, não bolsonaristas e bolsonaristas pragmáticos estão espalhados em partidos que vão do PSDB, Partido Novo, PSC, passando pelo União Brasil e até siglas menores, como o PRTB, que abriga a candidatura de Janaina Paschoal ao Senado. 

Atualmente, o bolsonarismo hegemoniza o campo das direitas contemporâneas no Brasil. Isso faz com que a margem de manobra durante o período eleitoral entre direitistas que não estão fechados com o “mito” se torne mais estreita, aumentando o número de disputas fratricidas. Exemplar nesse sentido foi o vazamento político de um áudio misógino que enterrou o futuro político de Arthur do Val, candidato escolhido por mais de meio milhão de paulistanos para a prefeitura da capital em 2020. 

Mas nem sempre foi assim. 

Muito antes de Bolsonaro se tornar popular, uma nova direita, mais radical e sem medo de se afirmar como tal, surgia no Orkut, na mesma época em que eclodiu o escândalo do mensalão. Ao contrário da direita tradicional, que atuava nos marcos do pacto democrático de 1988, a nova direita visava romper com o pacto e seu substrato progressista, daí sua novidade.

Para quem não se lembra, há quase vinte anos, o Orkut era a rede social mais popular do Brasil. Fundada em 2004, a rede foi tomada rapidamente por uma multidão de brasileiros, que, em janeiro de 2006, somavam mais de 70% do total de seus usuários. A maioria possuía alta escolaridade, habitava o eixo Sul-Sudeste e trafegava entre diversas comunidades, muitas vezes sob pseudônimos. 

E foi justamente em meios às muitas comunidades do Orkut que defensores radicais do livre mercado, monarquistas e cristãos conservadores começaram a se encontrar. Sem se sentir representados pela direita tradicional, herdeira da antiga Arena, conversavam livremente sobre o que julgavam ser uma hegemonia cultural esquerdista que dominaria o país, além de falar mal de Lula e do PT.  

A ideia de hegemonia cultural esquerdista foi fortemente difundida por Olavo de Carvalho, que, após ter criado um blog próprio em 1998 e um site colaborativo em 2002, logo se tornou figurinha carimbada entre orkuteiros de plantão. 

Carvalho defendia em seus livros e em várias de suas contribuições para jornais e revistas que a esquerda teria estabelecido uma hegemonia cultural no país a partir da adoção mais ou menos consciente da estratégia política estabelecida pelo intelectual comunista Antonio Gramsci. Tal processo teria se iniciado em meio à redemocratização e abrangeria entidades-chave da sociedade civil: veículos da grande mídia, ONGs, editoras de livros, universidades, organizações ligadas ao campo das artes e das humanidades e organizações internacionais que defendem valores progressistas como a expansão dos direitos das mulheres, LGBTQIAPN+ e direitos humanos em geral. Todas estariam engajadas, em maior ou menor grau,  em um processo revolucionário mundial mais amplo: o globalismo. 

Para os globalistas, apenas a intervenção de uma autoridade global, investida de uma concentração de poder nunca antes vista, poderia resolver os principais impasses contemporâneos. Daí o chamado de Olavo de Carvalho para que liberais e conservadores passassem a se unir no combate à hegemonia cultural esquerdista e ao “leviatã universal” em formação.

Referências ao globalismo e à hegemonia cultural esquerdista podem ser encontradas hoje em boa parte dos discursos associados a lideranças e grupos de direita contemporâneos, como o trumpista Steve Bannon. No Brasil, tais referências foram sendo recepcionadas por leitores de autores estrangeiros e frequentadores de fóruns de internet norte-americanos, readaptadas para o contexto nacional, e compartilhadas com um público mais amplo ao longo do tempo por meio da tradução de obras para o português e trocas em fóruns digitais nacionais. Nesse sentido, a atuação de Olavo de Carvalho em reunir direitistas dos mais diversos em torno do combate ao esquerdismo foi fundamental.

Entre esses grupos, estavam os defensores radicais do livre mercado. Conhecidos por motes como “imposto é roubo” e “privatiza tudo”, e atualmente representados pelo Instituto Mises Brasil, integram uma corrente de pensamento representada por intelectuais como Ludwig Von Mises e Murray Rothbard, que fazem uma defesa filosófica, moral e radical do capitalismo de livre mercado, em comparação com o neoliberalismo originalmente ligado à Escola de Chicago. Logo ficaram conhecidos como “ultraliberais”.

Muito ativos na internet, os ultraliberais passaram a promover suas ideias em canais do YouTube, fóruns, blogs e redes sociais. Em paralelo, formavam grupos de estudo e chapas para disputar centros e diretórios acadêmicos universitários Brasil afora e circulavam em espaços e organizações mais antigas, como o Fórum da Liberdade, promovido anualmente desde 1988 pelo Instituto de Estudos Empresariais.

 

O contato entre diferentes gerações proporcionou não apenas o acesso a redes de contatos já estabelecidas previamente dentro e fora do país, mas também a novas fontes de financiamento. Exemplar nesse sentido é o caso do Instituto Ordem Livre. Criado oficialmente em 2009, o instituto abrigava um projeto chamado “Liberdade na Estrada”, iniciativa que alcançou quase cinquenta universidades distribuídas em mais de trinta cidades diferentes[1]. Para tanto, contou com o financiamento da Localiza, empresa do mineiro Salim Mattar. Mattar é apoiador da difusão de ideias pró-mercado desde a década de 1980 e atualmente figura como o maior doador das candidaturas do Partido Novo.[2] 

O poder de organização dos ultraliberais, na época, era maior que o dos conservadores. Porém, no início do primeiro governo de Dilma Rousseff, a situação mudou à medida que avanços dos movimentos feminista e LGBTQIAPN+ começaram a se tornar mais palpáveis nas ruas e institucionalmente. 

Por conta da atuação de Bolsonaro contra um kit escolar anti-homofobia, parte considerável dos conservadores, que até então atuavam de forma mais dispersa em fóruns e organizações promotoras do livre mercado, passaram a flertar com o capitão. Ao mesmo tempo, ultraliberais dos tempos do Orkut, como o economista Rodrigo Constantino, passaram a se definir como “liberais-conservadores”[3] , e, posteriormente, simplesmente como conservadores, apontando para a repetição de uma tendência histórica dos defensores do livre mercado aderirem ideológica e/ou pragmaticamente ao conservadorismo. Tal postura gerou por um certo tempo um desconforto entre a própria militância, dado que o rótulo de liberal-conservador parecia soar como um oximoro, e eventualmente causava tensões em certos grupos.

Em 2014, Bolsonaro já havia se consolidado como uma das principais lideranças da reação conservadora que tomava corpo no país, e, nos anos seguintes, sua projeção política alcançou um novo patamar em meio aos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff. A despeito disso, em um evento organizado por defensores do livre mercado, em outubro de 2016, ao final de uma das falas do “mito”, a plateia se dividiu entre vaias e gritos de “Ustra, Ustra”, em referência a Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador de Dilma reverenciado por Bolsonaro”[4] . 

A reivindicação da herança da ditadura era muito mal recebida por ultraliberais, e mesmo por certos conservadores. Alguns não hesitavam em chamá-lo de fascista. Foi apenas com a confirmação de Paulo Guedes como seu futuro ministro que o desconforto com o capitão reformado passou a ser confessado a meia voz pela maioria. 

Depois do desastre pandêmico e de inúmeras defecções do governo, olavistas resolveram combater o esquerdismo com produções da produtora Brasil Paralelo, e quem já não gostava do capitão resolveu deixar seu sentimento mais explícito, caso dos integrantes do MBL. 

Uma possível derrota de Bolsonaro nas urnas pode favorecer uma reorganização política à direita. Resta saber agora se, como em 2018, o antipetismo vai falar mais alto que a rejeição ao principal defensor do legado de Brilhante Ustra.  


[1] https://ms-my.facebook.com/events/audit%C3%B3rio-1-do-bloco-amarelo-universidade-positivo/liberdade-na-estrada-2014-curitiba/286579211542393/

[2] https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/ex-secretario-de-guedes-lidera-doacoes-a-candidatos-do-novo/

[3] Em setembro de 2018 Constantino lançou um livro pela Editora Record chamado Confissões de um ex-libertário: Salvando o liberalismo dos liberais modernos.   

[4] https://twitter.com/fabioostermann/status/1413487417005199366