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    A governadora do Ceará, Izolda Cela, é reconhecida por seus pares como a grande responsável pela melhoria no ensino público no estado - CRÉDITO: DIVULGAÇÃO/GOVERNO DO CEARÁ

questões políticas

A educadora que Ciro Gomes esqueceu

Presidenciável usa sucesso da educação no Ceará como bandeira de campanha, mas tirou da disputa pelo governo do estado a mulher que conduziu o projeto

Adriana Negreiros | 27 set 2022_10h15
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No Ceará, sempre que o presidenciável Ciro Ferreira Gomes (PDT) inclui o sucesso da educação pública no estado na lista de seus méritos, desabafos são compartilhados em grupos locais de WhatsApp. A principal queixa é a de que Ciro nunca trabalhou no projeto, iniciado na Prefeitura de Sobral em 2001, quando o irmão Cid era prefeito. A ação foi ampliada para todo o estado em 2007, ano em que Cid tomou posse como governador. Posteriormente, o projeto serviu de modelo para experiências em outros 48 municípios de 11 estados, além do exterior — caso de São Tomé e Príncipe.

O desconforto com o comportamento de Ciro tornou-se maior desde julho, quando apoiou a escolha do ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio para concorrer ao governo do estado pelo PDT. Com isso, preteriu Izolda Cela, atual governadora, que desejava a reeleição. Isso fez com que Cela deixasse o PDT e provocou a ruptura de uma aliança de dezesseis anos entre o PT e o grupo ligado aos Ferreira Gomes. Os petistas decidiram então lançar candidato próprio, Elmano de Freitas, em quem Cela declarou voto na segunda-feira, dia 26.

Izolda Cela, uma psicóloga e mestre em educação de 62 anos, é reconhecida por seus pares como a grande responsável pela melhoria no ensino público no estado. “Ela é a representante e criadora do maior legado político dos Ferreira Gomes, aquilo que se tornou um símbolo do grupo”, afirma a socióloga Monalisa Soares, professora da Universidade Federal do Ceará. “A atual governadora foi a responsável pelo destaque nacional dado ao Ceará na educação. Mas sofre um processo de invisibilidade”, explica Soares. Segundo afirma a socióloga, Ciro Gomes não fez parte do “cotidiano” do projeto educacional.

Em 2001, Izolda Cela aceitou o convite de Ivo Gomes – o caçula dos irmãos – para auxiliá-lo na secretaria de Educação de Sobral. Ele era o titular da pasta. Ciro estava no PPS, articulava sua candidatura à Presidência pela segunda vez (havia ficado em terceiro lugar em 1998) e viajou aos Estados Unidos para fazer um curso sobre política na Universidade de Harvard.

Logo nos primeiros dias de trabalho, Cela soube que metade das crianças da terceira série do ensino fundamental terminava o ano sem aprender a ler ou escrever. Então traçou uma estratégia para alfabetizar as crianças na idade certa. As que estivessem em séries mais avançadas e apresentassem lacunas na formação receberiam atenção especial. “A ideia era simples, nada de espetacular”, explica Izolda Cela, numa tarde de segunda-feira, em seu gabinete no Palácio da Abolição, em Fortaleza, sede do governo estadual, onde recebeu a reportagem da piauí.

A alfabetização era a prioridade — mais do que escolas reformadas e ônibus escolares exuberantes, símbolos do primeiro mandato de Cid Gomes. Professores foram treinados para cumprir uma rotina comum a todos, com aulas planejadas para todo o ano letivo. Os diretores passaram a ser escolhidos por mérito e receberam a tarefa de gerir a escola de acordo com as normas definidas pela prefeitura.

No momento em que o projeto ganhou corpo, Izolda Cela já era titular da secretaria. Ela assumiu a liderança quando Ivo Gomes licenciou-se do cargo, em 2002, para candidatar-se a deputado estadual – foi eleito no mesmo pleito em que Ciro Gomes terminou a disputa para o governo federal em quarto lugar. Portanto, na hora em que as críticas contra as ações na educação em Sobral começaram a surgir entre pedagogos, foi Izolda Cela quem as enfrentou. A principal acusação era a de que, ao exigir o cumprimento de uma rotina previamente planejada, o projeto podava a criatividade dos professores.

Também recebeu cobranças por implementar práticas vistas com reservas por educadores, como a premiação – em dinheiro – dos professores que atingissem as metas de alfabetização estabelecidas pela prefeitura. Outro motivo para críticas era sua recusa em alinhar as práticas de ensino a algum método clássico de alfabetização, como o fônico ou o construtivista. Ela os via como complementares, não excludentes.

Havia quem, em vez de questionar Cela pessoalmente, fosse pedir sua cabeça ao então prefeito Cid Gomes. “Mas ele bancava o projeto”, afirma o consultor educacional Joan Oliveira, que fazia parte da equipe de Sobral, coordenando a formação dos docentes. “Izolda Cela é a ideóloga. Mas a ideia foi executada pela vontade política de Cid”, avalia o consultor.

Joan Oliveira recorda-se de ter recebido telefonemas do prefeito perguntando, por exemplo, as razões do afastamento de algum professor. Cid ouvia as razões – usualmente relacionadas ao desempenho do profissional – e contemporizava com seus correligionários, que o pressionavam para que interferisse no trabalho dos subordinados. “Mas ele não se metia em nada”, assegura Oliveira.

A carta branca que Cid Gomes deu a Izolda Cela foi renovada em 2007, ano em que tomou posse como governador do Ceará e levou a equipe de Sobral para a secretaria estadual de Educação. Izolda já vencera a desconfiança de colegas educadores graças aos bons resultados conseguidos – e pelo reconhecimento externo. Em um período de quatro anos, o índice de alfabetização na cidade havia crescido 140%. Mais de 90% dos alunos da primeira série sabiam ler e escrever. Com base nesse desempenho, Unicef e Instituto Ayrton Senna passaram a considerar a experiência sobralense como exemplar para outros municípios brasileiros.

Enquanto Izolda Cela trabalhava na educação de Sobral, Ciro Gomes foi ministro da Integração Nacional do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2006. Deixou o cargo para candidatar-se a deputado federal. Eleito pelo PSB do Ceará com cerca de 660 mil votos, registrou presença em pouco mais da metade das sessões, ausência justificada em 37,4%, apresentou cinco requerimentos e nenhum projeto de lei.

Nesse mesmo intervalo em que Ciro foi deputado federal, entre 2007 e 2010, Cela comandou a secretaria da Educação do primeiro governo Cid Gomes, dando início à implementação do Paic, sigla para Programa de Alfabetização na Idade Certa. Em 2010, Cid foi reeleito — Ciro não disputou as eleições — e Cela continuou à frente da secretaria, aprimorando o Paic. Os avanços na alfabetização de crianças cearenses credenciaram Cid Gomes para assumir o ministério da Educação do governo Dilma Rousseff, em janeiro de 2015.

No final de sua participação na gestão de Cid, Cela conviveu com Ciro como colega de trabalho, mas não na mesma área – o mais velho dos Ferreira Gomes foi nomeado secretário estadual de Saúde. Em abril de 2014, ela se licenciou para disputar o cargo de vice-governadora na chapa encabeçada pelo petista Camilo Santana.

 

Desde 2004 se espalhou em Fortaleza a gravação de uma suposta conversa telefônica entre uma atendente da Coelce (a companhia de energia do Ceará) e uma usuária que pede a religação da luz, indevidamente cortada. Quando ouve o nome da cliente – Maria Izolda da Silva – a funcionária tem um acesso de riso. A reação da atendente ao nome da cliente se transformou em um bordão local: “Que diabo é Izolda?”

Em 2015, quando Izolda Cela assumiu o posto de vice-governadora do Ceará, o áudio (que seria um treinamento interno da companhia, e não uma conversa real) voltou a circular. Graças a um hábito local de fazer piadas com tudo, ela passaria a enfrentar frequentes alusões ao bordão nonsense – embora não tivesse nenhuma relação com a xará do meme. Se o perfil oficial do governo postava alguma foto da vice em rede social, sempre aparecia um engraçadinho para comentar: “Que diabo é Izolda?”

A piada tinha alguma graça porque Izolda Cela, a despeito dos anos dedicados à educação pública do estado, não era uma política conhecida pelo eleitorado. Quando se tornou vice-governadora, quem não acompanhava o dia a dia da política local ignorava sua trajetória prévia. “Ela foi convocada para ser vice de Camilo Santana como forma de se ter, na chapa, uma pessoa de confiança dos Ferreira Gomes, especialmente de Cid. Sempre atuou ao lado dele, de maneira firme, mas discreta, sem roubar as atenções”, analisa a jornalista Kamila Fernandes, apresentadora do podcast As Cunhãs, sobre política regional, e professora de jornalismo da Universidade Federal do Ceará. “Pesou também o fato de ser mulher. Sua presença procurou quebrar a percepção de que o grupo ligado aos Ferreira Gomes é machista”, avalia Fernandes.

Reservada, com certa aversão aos holofotes, de fala mansa e modos suaves, Izolda Cela sempre cultivou um perfil técnico, não político. Permaneceu assim durante os quase oito anos em que foi vice-governadora. Raramente dava entrevistas e não estava nas redes sociais. O primeiro post de sua conta do Instagram (onde tem 115 mil seguidores) é de março de 2021. Aderiu ao Twitter (14,4 mil seguidores) em janeiro deste ano.

Vestida com um blazer cor gelo sobre camisa roxa, composição que lhe confere um ar sóbrio, Cela lembra da ocasião em que foi flagrada em contradição por um jornalista local. Meses antes de se tornar vice, ele havia lhe perguntado se pensava em candidatar-se a algum cargo eletivo. “De jeito nenhum”, respondeu, alongando-se nas vogais para reforçar a aversão à ideia de pedir votos. “Fiz um ‘de jeito nenhum’ bem exagerado, porque para mim aquilo não fazia o menor sentido”, relembra. Os dois se reencontraram durante a campanha eleitoral, e o repórter a cobrou pela frase. “Ai, meu Deus, foi mesmo”, respondeu, aos risos. “Mas naquela época era verdade”, conta, entre pequenos goles em uma xícara de café expresso.

Izolda Cela afirma que, de fato, a carreira política convencional nunca esteve em seus planos. Mas gostou de ser vice, depois governadora – e desejava disputar a reeleição. Quando o PDT, em suas prévias, escolheu Roberto Cláudio para a vaga, ela declarou que respeitava a decisão do partido, mas aos interlocutores mais próximos disse ter sido vítima de uma rasteira. O ex-governador Camilo Santana, agora candidato ao Senado, solidarizou-se com Izolda Cela. “Lamento muito que a primeira mulher governadora do Ceará não poderá concorrer à reeleição, após decisão do PDT. Siga firme, Izolda”, tuitou, horas após a escolha de Cláudio. Nas redes sociais, deputadas, vereadores e até a filha da governadora, Luísa Cela, identificaram uma presumida violência de gênero na escolha de Roberto Cláudio. A governadora diz não estar certa disso. “Não descarto, mas penso que há outros elementos a serem considerados”, avalia, citando a disputa nacional. Caso a aliança entre PDT e PT fosse mantida no Ceará, Ciro Gomes teria que dividir o palanque em sua terra natal com Lula.

Procurado pela piauí por meio de sua assessoria de imprensa, Ciro Gomes não quis comentar o assunto. O deputado federal André Figueiredo, presidente do PDT no Ceará, também preferiu não dar entrevista a respeito da decisão da sigla.

Durante a campanha à sucessão estadual, embora não seja candidata, a governadora tem sofrido ataques de Roberto Cláudio. Ele acusa o governo estadual de efetuar “compra milionária de apoios”. A despeito da fidelidade partidária, Cid Gomes saiu em defesa da antiga secretária. “Não é favorável falar mal da Izolda. Ela é uma mulher séria, dedicada e discreta”, disse, durante recente entrevista coletiva em Sobral.

“Meu querido Cid, gosto muito dele”, sorri Cela. “Considero-me uma pessoa com bom nível de autonomia. Mas gosto de ter boas referências. Ele, para mim, é uma liderança”, afirma. O elogio não soa estranho para quem acompanha os bastidores da política cearense. Durante o processo que impediu Cela de concorrer ao governo, “Cid e Ivo ficaram de um lado, Ciro fincou pé com Roberto Cláudio”, como explica a socióloga Monalisa Soares. O racha entre os irmãos Ferreira Gomes é um dos assuntos mais comentados na política local.

“Às vezes, a discrição e a suavidade de Izolda são confundidas com fragilidade”, afirma o educador Joan Oliveira, que trabalhou com ela tanto em Sobral quanto no governo do estado. “Vai se dar muito mal quem pensar assim”, prevê. Mantendo silêncio sobre as especulações acerca de seu temperamento e futuro político, a governadora tem apenas um plano traçado para os dias seguintes ao fim do mandato: tirar férias. “Penso que mereço”, diz.