CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Acabou chorare
Traído por João Doria, Geraldo Alckmin foi às lágrimas, mas agora anda numa felicidade louca
Angélica Santa Cruz | Edição 193, Outubro 2022
Quando decidiu deixar o PSDB, Geraldo Alckmin chorou. “Bem na minha frente, lágrimas saindo, saindo, saindo. Ele falou: ‘Olha, essa é a minha casa. Eu participei de fundação, acabei expulso, não tenho outra saída’”, conta Pedro Tobias, três vezes presidente do partido em São Paulo, cinco vezes deputado estadual, hoje médico em Botucatu e ainda um dos amigos mais próximos do ex-governador. “Geraldo estava jogando até última momento. Pra ver se, nas prévias, ganhando o cara do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, saía João Doria, saía Rodrigo Garcia – todos esses dois iriam embora do PSDB. Porque essas caras nunca foram do partido. Ficaram por conveniência”, diz Tobias, libanês que, mesmo radicado no Brasil, jamais perdeu o sotaque.
Em novembro de 2021, Doria ganhou as prévias e o aval dos tucanos para ser candidato a presidente. Dezoito dias depois, Alckmin saiu do partido. Foi uma retirada melancólica. No meio da tarde, chegou ao diretório estadual da legenda, no bairro Jardim Paulista, com a carta de desfiliação nas mãos. Estava acompanhado apenas de Tobias. “Ele queria protocolar pessoalmente. Eu não deixei. Me esperou no carro, eu fui. Entreguei o pedido. Essa que dói. Ele chorou”, lembra o amigo, com voz condoída.
Foi o pedágio altíssimo que Alckmin pagou pelo que talvez tenha sido a pior jogada de sua trajetória política: ter bancado entre os tucanos o nome de João Doria, a quem Tobias ainda chama de “Judas do PSDB”. “Foi Geraldo quem bancou o nome de Doria pra prefeito de São Paulo. Pra governador, foi culpa minha”, penitencia-se. “Eles já não estavam com relação muito boa, mas eu, como presidente do partido, apoiei Doria pra fazer a prévia. Eu me lembro da reunião da cúpula, estava todo mundo contra. Fernando Henrique ali me dizendo: ‘Menino, você é puro demais.’ Erramos. Acontece. Marido e mulher casam. Aí, cinquenta anos depois, um bota chifre no outro. Como vai saber?”
O homem que comandou o estado mais rico do país por doze anos e meio e foi vice-governador por outros seis anos deixou o partido que ajudara a fundar marchando para o que se anunciava como seu ocaso político. Alckmin teve penosos 4,7% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, e ainda precisou ver o ex-afilhado João Doria ser eleito governador depois de se bandear para o tsunami eleitoral puxado por Jair Bolsonaro. Para piorar, a base de Alckmin – historicamente formada por prefeitos de cidades do interior paulista – derreteu como picolé de chuchu no asfalto. “Doria traiu todo mundo. Comprou até prefeito que foi várias vezes secretário de estado de Geraldo para conseguir ganhar as prévias”, acusa Tobias.
Quando as primeiras pesquisas para as eleições estaduais de 2022 começaram a aparecer, Alckmin cravou 26% na preferência dos eleitores para governador. Mas sabia que seria uma batalha muito difícil. Rodrigo Garcia, à frente do governo de São Paulo, tem a máquina do estado para tentar seduzir o mesmo perfil de seu eleitorado: o paulista que admira um gerentão.
Enquanto Doria continuava sorrindo, Alckmin chorava.
Mas a paciência encarrega-se de fazer do prejuízo uma zombaria, como advertiu o doge de Veneza em Otelo, de Shakespeare. Na manhã de 14 de abril, quatro meses depois de deixar o ninho tucano com os olhos inundados, Alckmin fez seu batismo de fogo ao lado de Lula em um evento público. Como pré-candidato a vice-presidente da República, e a convite de Lula, apareceu de surpresa em um encontro em que líderes sindicais entregaram ao PT a Pauta da Classe Trabalhadora, um documento unitário aprovado pelas nove principais centrais sindicais do país.
O ex-governador já vinha se encontrando com sindicalistas desde o começo do ano, uma estratégia para aplainar as resistências ao seu nome em parte da base petista. Ainda assim, aparecer diante da multidão sentada em cadeiras de plástico distribuídas no auditório da Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, em São Paulo, tinha certo grau de risco – sobretudo por causa da presença de categorias especialmente críticas ao seu período no governo, como a dos professores.
Diante de uma fileira de cadeiras distribuídas no palco, onde estavam Lula, Alckmin e políticos como a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, 28 representantes de sete centrais sindicais fizeram breves discursos no microfone, de cerca de três minutos. Quase todos saudaram Alckmin. Mas de vez em quando se ouvia um princípio de vaia quando seu nome era mencionado.
Encerradas as falas dos sindicalistas, Lula levou Alckmin até o microfone. O ex-tucano, percebendo a presença de eventuais predadores, abriu as asas. Fez um discurso inflamadíssimo, saudando Lula. “A luta de vocês, a luta sindical, deu ao Brasil o maior líder popular deste país: Lula!! Viva, Lula! Viva os trabalhadores do Brasil!”, bramiu.
A deixa final, feita sob medida para puxar aplausos para o ex-presidente da República, deu certo. Ao fim das falas, depois que todos saíram do palco, Alckmin ficou por oito minutos tirando selfies e trocando acalorados apertos de mão com sindicalistas. No final, estava com os poucos fios de cabelo que lhe restam em desalinho, com a parte de trás da camisa azul saindo de dentro da calça, e um sorriso de ponta a ponta.
Enquanto isso, a candidatura de Doria à Presidência derretia. Hoje, é ele que está parado no acostamento político. Tem dito a conhecidos que pretende se concentrar na atividade privada e fortalecer o Lide, grupo que fundou em 2003 para pavimentar conversas entre empresários, funcionários do governo e parlamentares. Nessa seara, enfrenta a concorrência do Esfera Brasil, grupo criado no ano passado por João Carlos Camargo, da gestora 89 Investimentos, para fazer a mesmíssima coisa.
“Geraldo está feliz”, constata Pedro Tobias. É verdade que Alckmin não trouxe tantos votos assim para Lula. Em encontros com políticos, no entanto, o ex-presidente tem dito que Alckmin puxa votos para Fernando Haddad na disputa pelo governo de São Paulo. E seu nome é considerado estratégico na romaria petista para garantir que o partido fará um governo de “previsibilidade, estabilidade e confiança”, o trio de palavras-chave escolhido pela campanha.
Na entrevista ao Jornal Nacional, no debate entre presidenciáveis na Rede Bandeirantes e em encontros privados, Lula tem falado com insistência no nome de Alckmin. Em uma reunião com empresários em São Paulo, em agosto, disse que sua aliança com o antigo adversário é fundamental porque, se eleito, vai fazer “um governo só” – Lula terá 80 anos no fim do mandato e disse que não pretende buscar a reeleição – e que haverá “muita coisa para reconstruir no país nesse curto espaço de tempo”.
A avaliação geral na campanha petista é de que o ex-tucano está incrivelmente adaptado à nova turma. Alckmin despacha em uma sala ao lado de Lula na Casa Delfim, como os petistas chamam o quartel-general da campanha – um imóvel no bairro do Pacaembu, em São Paulo, que pertenceu ao ex-ministro Delfim Netto. Nesse espaço e no diretório do partido ao qual acabou se filiando, o PSB, na Avenida Indianópolis, Alckmin voltou a receber prefeitos. É dado como certo que, em caso de vitória da chapa, ele também deve ocupar um ministério importante. Se Haddad for eleito governador, Alckmin concorre para o Ministério da Fazenda com outros nomes, como o do ex-ministro Henrique Meirelles. Se Haddad perder a eleição e se tornar ministro da área econômica, Alckmin pode pegar o Ministério da Indústria e Comércio.
A ex-primeira-dama de São Paulo, Lu Alckmin, também se integrou à campanha. Ficou amiga da mulher de Lula, a socióloga Rosângela Silva, a Janja, e da mulher de Haddad, Ana Estela. Juntas, elas cumprem agendas de campanha na tentativa de arregimentar o eleitorado feminino.
Na dobradinha Lula-Alckmin, cada um dos lados considera que está entregando o dote mais gordo. O lado petista acha que tirou Alckmin de um atoleiro, porque mesmo com os 26% iniciais nas pesquisas ele teria pouquíssimas chances de retornar ao governo de São Paulo – além do que, já tinha sido escanteado pela cúpula do PSDB. O lado alckmista acha que na verdade foi seu líder que deu sinal de grandeza ao largar o respeitável butim de votos na capital para compor uma frente com o PT.
Quando um cavalo passa selado, o ex-governador não costuma perdê-lo. Já passou por uma ressurreição política antes: em 2009, fora do governo e vivendo de palestras e aulas – mesmas atividades às quais se dedicava antes de fazer a aliança com Lula –, ele ainda mantinha seu cacife eleitoral, sobretudo no interior. Chamado pelo então governador José Serra para a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do governo de São Paulo, Alckmin recompôs sua base de prefeitos e no ano seguinte foi eleito governador no primeiro turno. Se for o próximo vice-presidente, a repaginação será estrondosa. “Aí vai ser volta triunfal. Triunfal!”, antevê o amigo Tobias. Que completa: “O PSDB acabou; Doria, acho, acabou também. Mas Geraldo, pessoa de bem, é bola pra frente.”