IIlustração: Carvall
Bolsonaro trabalha contra a transparência
Iniciativas da sociedade civil produziram os dados que o governo se negou a divulgar
Desde o dia 7 de outubro de 2022, o Brasil tem um general da reserva como Autoridade de Monitoramento da Lei de Acesso à Informação (LAI). O cargo, ligado à Secretaria-Geral da Presidência, tem por função monitorar e avaliar se a LAI está sendo cumprida de maneira satisfatória no órgão. A notícia parece sem tanto valor objetivo, mas, de certa forma, é uma imagem bem acabada do que foram esses anos para a transparência pública no país.
Não são necessariamente novas as tensões dentro do aparato do Estado quando o assunto é divulgação de informações para a sociedade. O próprio processo de construção da história de uma nação se faz não só pela lembrança, mas também pelo esquecimento. Omitir, escamotear e esconder fatos da população sempre foi uma maneira de criar e reforçar mitos fundadores, estruturas de governos e hierarquias historicamente construídas.
O fato de termos levado tanto tempo para começar a repassar os horrores da ditadura militar de 1964 é uma amostra de como o Brasil tem dificuldade de enfrentar a sua história e talvez por isso seja tão difícil vermos planos de futuro para o país. Os escombros da ditadura permanecem até hoje, seja por descaso em investigar o que se tem de documento disponível, seja por simplesmente não haver mais registros de uma parte significativa da história recente, e, não à toa, em pleno 2022, a ideia de um golpe com a o apoio ativo dos militares é lugar-comum em conversas de bar e no noticiário da tevê.
Com a assinatura da Constituição de 1988 e o estabelecimento de diversos direitos para todos os cidadãos brasileiros, um novo momento se abriu para o país. Mas demoraria mais algumas décadas até termos reconhecido efetivamente o direito à informação produzida pelo Estado. Não seria fácil. Em seu livro, escrito em coautoria com Gabriela Lotta, Pedro Abramovay revela alguns bastidores da formulação e sanção da Lei de Acesso à Informação. Havia uma preocupação externada pelo corpo de servidores de carreira, a burocracia estatal, de manter certos assuntos inalcançáveis à população. A ideia de ter determinados momentos sensíveis da nação expostos para serem escrutinados pela sociedade parecia um risco à própria integridade do país. Perder o controle da narrativa, dos mitos construídos, das movimentações impróprias em algumas negociações é um medo real para aqueles que desejam conservar as coisas como elas estão.
A disputa entre a burocracia do Estado e a política terminou em vitória da última. A LAI, em vigor esde 2012, estipula formas de acesso a informações e também cria regramento para casos de sigilo. Segundo a LAI, toda informação é por princípio pública, e o sigilo deve ser exceção, com prazo determinado e ser acompanhado de um processo sistemático de retirada de sigilos vencidos.
Nos últimos anos, uma sensação de aumento da opacidade do Estado foi ganhando cada vez mais corpo. Não foram poucos os casos de solicitações de informação que fiz às Secretarias de Segurança Pública e forças policiais que foram negadas de diferentes formas. A negativa prevista em lei, como o alegado “excesso de trabalho” para a produção e envio das informações ou outros casos, do uso da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais tem ocorrido cada vez mais frequentemente como uma forma de negar informações que outrora eram publicizadas e que em nada ferem a proteção de dados dos cidadãos. Por exemplo, as informações de cor das vítimas de mortes violentas ou o local onde os crimes ocorreram têm sido negadas por alegadamente ferirem o direito à privacidade, quando na verdade esse entendimento nada mais é do que uma forma torta de negar informações.
A maioria das instituições de segurança pública no Brasil são marcadas historicamente pela sua distância da sociedade e uma reatividade quando se trata de transparência. E também são atavicamente ligadas a uma gestão de políticas públicas que despreza a produção de dados, a avaliação de processos e o monitoramento de ações. O resultado são as operações às pencas realizadas diariamente que grande parte produz efeitos, quando mais, discretos em relação ao combate qualificado e sustentável da criminalidade. Por exemplo, o Rio de Janeiro, que possui sua história entrelaçada com as operações policiais, não produz e não divulga dados sobre essas ações de policiamento, impondo dificuldades para parte da sociedade que quer saber o que a polícia está fazendo com o dinheiro público. Não produzir dados também é uma forma de negar informação aos cidadãos.
Com Bolsonaro, a transparência pública e o uso desarrazoado de sigilo entraram em rota de colisão. O atual presidente tem, de maneira sistemática, escondido informações relevantes dos brasileiros. Essa máquina de produzir segredos centenários tem ganhado força nos últimos três anos e produziu ao menos 65 buracos na história recente do país.
Durante o momento mais dramático da pandemia de coronavírus, Bolsonaro conduziu uma campanha para desacreditar as vacinas. Ao ser questionado se tinha se imunizado, o presidente alegou ser um assunto particular e pôs sua carteira de vacinação sob sigilo, também negando acesso aos contratos de aquisição da Covaxin, caso revelado pela CPI da Covid. Neste último caso, a decisão foi derrubada pela Justiça. Acossado por escândalos no seio de sua família, Bolsonaro impôs sigilo ao registro das visitas dos seus filhos ao Planalto, bem como a investigação da Receita Federal sobre o caso das “rachadinhas” do seu filho mais velho.
Nesse contexto de ataque à informação, diversas iniciativas da sociedade civil se notabilizaram por produzir os dados que o Estado se negou a divulgar. Na falta de dados sobre operações policiais, a Rede de Observatórios da Segurança criou uma metodologia de acompanhar, diariamente, as ações da polícia pela imprensa, redes sociais das polícias e outros canais. Quando o número de casos de Covid estava em seu pico e o Ministério da Saúde reiteradamente dificultou o processo de divulgação dos boletins diários, a iniciativa Brasil.IO passou a compilar os dados estaduais, e o Consórcio de Veículos de Imprensa, posteriormente, virou a fonte mais segura e constante para se avaliar a situação da pandemia no Brasil.
Uma das tarefas fundamentais dos próximos anos será recolocar a transparência pública em bases democráticas. Com um novo cenário, no qual o sigilo seja usado com base em critérios razoáveis, será possível trilharmos um caminho em direção a mais transparência e participação da sociedade civil nas decisões governamentais. Será trabalho dos próximos governantes construir políticas públicas baseadas em evidências, avaliadas sistematicamente e com a participação da sociedade civil. É condição necessária para um país com mais direitos, menos o direito de esconder informações da população.
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