CRÉDITO: ALLAN SIEBER_2022
En mi hambre mando yo
O presidente, a fome e o voto
João Moreira Salles | Edição 195, Dezembro 2022
A frase do título me foi dita por uma tia, irmã de minha mãe. Eu era adolescente, e ela, uma senhorinha. Ao menos, era assim que eu via tia Suzana, a mais velha dos cinco irmãos de minha mãe.
Diretora da biblioteca da PUC-Rio, pequenininha, solteira e vivendo com minha avó, era a intelectual da família. Nos almoços de domingo, tinha o hábito de largar matreiramente algum livro num ponto estratégico da sala – junto da jarra d’água ou no peitoril da janela, por exemplo. Era uma armadilha. Se um inocente começasse a folheá-lo ou, pior, se perguntasse do que se tratava, tia Suzana dava o bote. A depender das leituras do mês, a vítima recebia uma aula compulsória – e longa – sobre o pensador francês Jacques Maritain ou sobre os fundamentos da epistemologia agostiniana (tia Suzana adorava a palavra epistemologia). Uma vez fisgado, era impossível escapar da arapuca.
Profundamente católica, quando jovem ela flertara com o integralismo. Depois, como tantos contemporâneos de mesma extração social – uma classe média urbana e letrada –, rendeu-se ao lacerdismo e se tornou amiga da deputada Sandra Cavalcanti, uma espécie de epígono de Carlos Lacerda. Em outubro de 1962, quando João XXIII instalou o Concílio Vaticano II, era, portanto, uma conservadora de direita – nos dois primeiros anos do regime militar ocupou o cargo de diretora executiva da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), cargo para o qual foi nomeada pelo presidente Castello Branco, de quem era prima por afinidade. Tia Suzana acompanhou de perto as discussões em Roma e se deixou influenciar decisivamente pelas ideias de justiça social que emanavam de lá. Um evangelho dirigido aos pobres pôs o seu mundo de cabeça para baixo.
E foi assim – primeiro aos poucos, depois de forma acelerada – que ela migrou para a esquerda, onde se viu bem assentada já em meados da década de 1960. Não mudaria mais de posição até o fim da vida. Seguiu conservadora, temente a Deus e defensora da família tradicional,[1] mas dali em diante encaminhou suas simpatias para os desassistidos e passou a se indignar com toda forma de opressão. Em junho de 1968, ao lado de professores e alunos da PUC, protestou contra a ditadura militar na Passeata dos Cem Mil.
Foi dessa tia Suzana já convertida à igreja dos pobres e à Teologia da Libertação que ouvi a frase que dá título a este artigo: “Na minha fome mando eu.” Segundo contava, escutara-a num cinejornal, não me lembro se sobre a Guerra Civil Espanhola ou sobre a Segunda Guerra Mundial. Vinha da boca de um homem pobre e idoso que fazia fila diante de um centro de distribuição de alimentos. Pão e sopa eram oferecidos por falangistas ou agentes de Franco. A voz de um locutor descrevia a penúria causada pelos eventos políticos e o grande sofrimento da população. A câmera então passeava pela fila e encontrava o rosto daquele velho, a quem o repórter perguntava se o fato de ele estar prestes a receber comida de um agente do fascismo significava adesão ao movimento. Nessa hora, ele pronunciava a frase: No. En mi hambre mando yo. Os olhos de minha tia se umedeciam toda vez que ela contava essa história.[2]
Essas coisas me vieram à cabeça em julho, no dia em que as bases do governo brasileiro no Congresso confirmaram o estado de emergência, abrindo um crédito extraordinário de 10,9 bilhões de reais no Orçamento. Estávamos a três meses do primeiro turno. A PEC 1/2022, aprovada pelo Senado naquele início de mês, permitia aumentar para 600 reais o Auxílio Brasil, ampliar o valor do vale-gás e criar o voucher caminhoneiro. Na sequência viriam a mesada a taxistas e motoristas de aplicativo, as subvenções ao preço do combustível e a liberação – inconstitucional, conforme parecer da PGR (Procuradoria-Geral da República) – de crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil.
No dia seguinte ao primeiro turno, 3 de outubro, o governo anunciou a antecipação do pagamento dos 600 reais e do vale-gás. Os beneficiários receberiam os valores antes do final do mês. Antes, portanto, de se verem novamente diante da urna eletrônica.
Tais ações haviam começado em março – uma medida provisória liberara o saque extraordinário do FGTS aos trabalhadores com contas ativas ou inativas – e se intensificaram à medida que o calendário se aproximava de outubro. O propósito era evidente: comprar a reeleição de Jair Bolsonaro, oferecendo aos pobres algum dinheiro para amenizar os desastres do cotidiano.
Era um mecanismo particularmente perverso, dada a escalada da fome no país. Segundo um estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais de 30 milhões de brasileiros não estão tendo garantia de alimentação ao longo de 2022. É um aumento de 14 milhões de pessoas em apenas um ano, consequência tanto da pandemia de Covid como do descaso da política econômica do governo. A dimensão da tragédia foi noticiada pela agência do Senado: “Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.”
Pouco importa se intencionalmente, se por incúria ou por indiferença, o fato é que sob Bolsonaro crescera a massa de miseráveis do país. A tantos desvalidos, sobrava apenas um bem do qual ainda podiam dispor: seus votos. O governo tencionava comprá-los – esse era o cálculo.
Uma reportagem da BBC Brasil realizada entre o primeiro e o segundo turno percorreu três bairros populares de Fortaleza. Num deles a jornalista pergunta a uma senhora, beneficiária do Auxílio Brasil, se ela votará em Jair Bolsonaro. “Vou votar, não. Sinto muito. Ele pode me dar mil reais pra mim que eu não voto nele, não. Sou sincera.” É uma síntese do que aconteceu Brasil afora entre a população pobre do país.
Segundo dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral compilados pelo site Pindograma e reproduzidos na seção Igualdades da piauí, “nos dez municípios com maior proporção de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil, quem venceu o primeiro turno foi Lula (PT) e não Bolsonaro (PL)”. Fala-se muito do papel do Nordeste na eleição de Lula, e por uma boa razão: não apenas por ser a única região em que o petista obteve mais votos do que seu adversário, mas sobretudo pela vantagem que abriu em relação a ele: 69,34% dos votos válidos foram dados a Lula, o que representou uma diferença de 12,5 milhões de eleitores a mais. Sem essa margem ele não teria vencido o pleito.
Contudo, se o Nordeste foi decisivo, convém lembrar que nem tudo o que é decisivo é também suficiente. Como me disse José Roberto de Toledo, nosso colega do Foro de Teresina, “o Nordeste ficou onde sempre esteve”. No segundo turno de 2018, Fernando Haddad, então candidato à Presidência pelo PT, obteve 70% dos votos válidos na região, desempenho praticamente igual ao de Lula em 2022. A vantagem não impediu que Haddad perdesse a eleição, vencida por Bolsonaro com margem de quase 11 pontos percentuais, cerca de 10 milhões de votos a mais. Só o Nordeste não teria bastado a Lula.
É o Sudeste que explica os desfechos de 2018 e 2022. Entre uma eleição e outra, a região destinou quase 8 milhões de votos a mais ao candidato do PT. “Sem isso, daria Bolsonaro de lavada”, afirma Toledo. Um levantamento do pesquisador Fernando Meireles, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), mostra como Bolsonaro perdeu eleitores nas grandes metrópoles do país, em particular nas grandes cidades da região Sudeste – comparando com 2018, ele teve uma redução de 500 mil votos em São Paulo e de 250 mil no Rio.
O importante, no caso, é localizar esses votos. “Os mapas de votação na maioria das cidades (Rio é exceção) mostram Lula crescendo da periferia para o centro”, explica Toledo. Bolsonaro perdeu eleitores em várias regiões das metrópoles, inclusive naquelas que concentram parte significativa da classe média, mas sua derrota foi mais pronunciada nas quebradas e favelas do que em bairros mais valorizados dessas cidades.
A eleição presidencial de 2022 se decidiu em lugares como a Rocinha, onde 78,2% dos eleitores escolheram Lula, a maior proporção de votos dados ao petista no Rio de Janeiro. Ou lugares como Serviluz, o bairro de Fortaleza da senhora que não votaria em Bolsonaro nem por mil reais ao mês – “Sinto muito.” Significa dizer que foi decidida pelos eleitores mais pobres do país. Aqueles que recebem o Auxílio Brasil. Os dados mostram que o impacto do derrame eleitoreiro de dinheiro se revelou “relativamente pequeno e definitivamente insuficiente”, diz Toledo.
É possível identificar outras clivagens entre eleitores de Lula e Bolsonaro. Mulheres votaram no petista numa relação próxima a 60/40. Dois terços dos eleitores que se declaram pretos preferiram o presidente eleito ao incumbente. Contudo, foi em relação à renda que a diferença se mostrou mais acentuada. Segundo O Globo, o petista venceu em 19 dos 20 municípios com menor IDH do país (e perdeu para Bolsonaro em 17 dos 20 mais prósperos). A proporção de votos em Lula dos que recebem menos de dois salários mínimos foi mais do que o dobro dos que escolheram Bolsonaro. Inversamente, de acordo com as pesquisas dos principais institutos (Ipec, Datafolha, Ipespe) na véspera do segundo turno, “as pessoas com rendimento acima de cinco salários mínimos (e, principalmente, acima de dez salários mínimos) tinham intenção de votar maciçamente em Bolsonaro”, destaca Toledo. “Isso é confirmado pelos mapas de votação em São Paulo – Bolsonaro ganhou nos Jardins, em Moema, na Vila Nova Conceição – e, no caso do Rio, na Barra da Tijuca.”
São muitas as razões pelas quais a maioria dos eleitores de maior poder aquisitivo votou em Bolsonaro. Razões ideológicas, classistas, raciais, econômicas, éticas, psicológicas. Embora seja impossível isolar um motivo único, convém lembrar que ao longo desses últimos quatro anos não faltaram pronunciamentos de certas lideranças do setor privado – de donos de redes varejistas a agentes do mercado financeiro, de pecuaristas e sojicultores a empresários do setor de transporte – sobre como, no novo governo, os negócios enfim se livraram das travas usuais do Estado brasileiro e supostamente puderam avançar. Bolsonaro era bom para o balanço mensal. Ameaças ao estado de direito, apologia da violência e da tortura, estímulo enérgico à posse e ao porte de armas, devastação ambiental, infiltração de dogmas religiosos nas políticas públicas, deboche dos sofrimentos causados pela pandemia, aviltamento da cultura e das artes, desprezo pela história e pelos direitos dos povos indígenas, desmonte da educação e do sistema nacional de ciência e tecnologia, charlatanismo médico, degradação dos valores cívicos do país – para esse segmento não majoritário e nem por isso pouco representativo das classes dominantes do país, para essa fatia das oligarquias nacionais, o conjunto dessas catástrofes públicas não se sobrepôs aos benefícios privados.
Para um ruralista da Amazônia acostumado a ignorar o Código Florestal, pessoas morrendo asfixiadas em Manaus talvez importem, mas não tanto quanto a garantia de que o Ibama não aparecerá na porteira da fazenda para fazer cumprir a lei. Dito de outro modo, uma parcela expressiva dos que ocupam o alto da pirâmide social brasileira não teve escrúpulo em trocar voto por proveito.
Na parte de baixo da pirâmide, a escolha foi outra. Embora ali as carências sejam sempre muito maiores – fome dói mais do que alíquota de imposto alta ou obrigação de manter árvores de pé –, eles não fizeram a barganha. En mi hambre mando yo. Continuaram donos da sua fome.
Todo o resto importa pouco.
[1] Para se ter ideia dos princípios morais de tia Suzana, deixo um exemplo: Quando éramos crianças, meus irmãos, meus primos e eu passávamos férias numa fazenda no interior de São Paulo. Não era incomum ficarmos aos cuidados de tia Suzana. Uma vez por semana, ela nos levava ao cinema na cidade de Matão. Os cines Yara e Polytheama costumavam passar filmes de faroeste em que os mocinhos se chamavam Ringo ou Trinity. Tia Suzana estabelecia regras rígidas para o programa. Em prol da logística, ela se sentava na fileira atrás da nossa, de modo que ficávamos de costas para ela. Uma vez acomodados, recebíamos dela máscaras de dormir, dessas que as companhias aéreas distribuíam aos passageiros. Nossa obrigação era deixá-las presas à testa. Assim que o filme começava, tia Suzana se punha em estado de alerta. Na iminência de qualquer cena mais atrevida entre Trinity e a filha do xerife, ela saltava da cadeira e, ágil feito uma gazela (apesar de cheinha), chispava de uma ponta à outra da fileira, baixando a máscara sobre os nossos olhos com uma espécie de golpe certeiro de caratê. A velocidade com que vencia a distância entre a primeira e a última criança sempre me impressionou. Parecia uma fundista.
[2] Ainda que sempre dita por um espanhol pobre, há outras versões sobre a origem da frase; logo, não é impossível que essa fosse uma adaptação própria da memória de tia Suzana.
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