Consuelo Dieguez, Julia Gavarrete e Ricardo Gandour na mesa de encerramento do festival - Foto: Marcelo Saraiva
“Se há gente corajosa que quer compartilhar suas histórias, seguiremos fazendo jornalismo”
Repórter salvadorenha Julia Gavarrete relata como jornalistas foram espionados e viraram alvo do regime autoritário em seu país
Assim que venceu a eleição para a presidência de El Salvador, em fevereiro de 2019, Nayib Bukele começou a dar sinais de que via o jornalismo como um incômodo. A repórter Julia Gavarrete, do site de notícias El Faro, se lembra de ter tido certeza do desafio que se apresentava quando Bukele assumiu o poder e passou a dificultar o acesso à transparência e à prestação de contas. A escalada de autoritarismo avançou, e o governo de Bukele passou a perseguir jornalistas. Pouco mais de um ano depois da chegada dele ao poder, a casa de Gavarrete foi invadida por homens que levaram embora seu computador de trabalho.
Gavarrete solidificou a sua carreira com reportagens sobre questões políticas, violência e seus impactos em crianças e comunidades vulneráveis. E por causa disso virou alvo do governo de seu país. A jornalista foi entrevistada neste domingo (4) pela repórter da piauí Consuelo Dieguez e pelo professor da ESPM Ricardo Gandour na mesa de encerramento do Festival piauí de Jornalismo.
O presidente Bukele é “uma mistura de Donald Trump e Jair Bolsonaro, só que mais inteligente”, na definição de Gavarrete. Chegou ao poder como um outsider, prometendo acabar com a corrupção. Depois de quase quatro anos no governo, decidiu concorrer à reeleição, algo que não está previsto na Constituição do país. É mais um degrau na escalada autoritária.
Criado em 1998, o El Faro se propõe a ser um jornal digital e independente. Tornou-se referência na América Latina pelo trabalho investigativo, mas paga um preço alto por isso. Vários de seus jornalistas foram espionados, e a própria Gavarrete teve o computador infectado por um software espião. Em 2020, a casa dela foi invadida por pessoas que roubaram poucos itens, entre eles seu computador. Seu telefone celular foi rastreado e invadido várias vezes. “Comecei a suspeitar quando meu celular passou a reiniciar sozinho no meio da noite”, contou ela.
No festival piauí, a repórter detalhou como os jornalistas viraram alvo do regime de Bukele. “Em dezembro de 2020, Bukele disse em cadeia nacional que o El Faro estava lavando dinheiro. É uma maneira de minar energia, gastar o nosso tempo, para cercear o nosso jornalismo”, disse Gavarrete. “Os telefones de meus colegas apresentam infecções ativas, e os dados indicam que os invasores estão dentro de El Salvador. Isso nos leva a pensar que necessitamos de investigações. O governo diz que não pode fazê-las, mas nós sabemos que isso é mentira.”
A tensão autoritária em El Salvador se intensificou em março, quando o presidente deu início a um regime de exceção, com severas restrições à liberdade de associação e de defesa. O regime abriu caminho para a violação de direitos humanos, uso de violência policial e detenções arbitrárias. Já foi prorrogado várias vezes, e permanece vigente.
Em junho, Gavarrete produziu uma reportagem a respeito de um funcionário público que travou uma batalha para defender os direitos de 39 mil pessoas detidas durante o regime de exceção de Bukele. Em agosto, publicou outra reportagem com a história de uma família que vaga de casa em casa, com medo da prisão, após ter sido acusada de adesão a uma organização terrorista. “Essa é uma situação insustentável. As pessoas estão gastando dinheiro para se mudar várias vezes, sem poder trabalhar para ganhar dinheiro. São pessoas que vivem com medo do próprio país”, avaliou Gavarrete.
Num regime autoritário, o trabalho jornalístico precisa encontrar novas formas de apurar e relatar histórias, analisou a repórter. “É mais difícil ser jornalista, no sentido de não se pode ter uma comunicação normal com as fontes, porque sabemos que estamos sendo espionados”, Gavarrete explicou. “Precisamos encontrar mecanismos para nos comunicar sem colocar ninguém em risco. Algumas fontes simplesmente somem depois de revelar segredos.”
Apesar do medo, os salvadorenhos continuam a procurar os jornalistas para denunciar infrações. É isso que conforta e dá energia a Gavarrete para prosseguir com o trabalho, ela contou ao fim da entrevista no festival. “E é justamente por isso que a gente precisa continuar lutando para manter vivo o direito de as pessoas obterem informações. Se há gente corajosa que quer compartilhar suas histórias e nos busca para fazer sua denúncia, isso me faz querer seguir fazendo jornalismo.”
Ao encerrar o festival, cujo lema era Com a pulga atrás da orelha: Notícias que parecem mentiras e mentiras que parecem notícias, a repórter Consuelo Dieguez fez um balanço do evento e lembrou edições anteriores. Lembrou a necessidade de investimento em grandes investigações e de parcerias entre jornalistas, sociedade e universidade no combate à desinformação. “Em muitos outros festivais discutimos experiências gloriosas de jornalismo. Nesse, discutimos desafios do jornalismo diante da desinformação e o fato de estarmos sendo confundidos com produtores de fake news. Por isso o nosso pinguim segue com a pulga atrás da orelha.”
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