CRÉDITO: DIVULGAÇÃO_INSTITUTO YORENKA TASORENTSI Da esq. para a dir., o pajé Benki Piyãko, do povo Ashaninka, o líder yanomami Davi Kopenawa e Alex Lucitante, da comunidade Cofan de Avié, do Equador: “Dizem que tem terra demais e pouco índio. Tem índio nas terras, cuidando de tudo”
Sobre ela, com ela, para ela
Como uma bebida sagrada movimenta a fascinante engrenagem de sobrevivência dos povos indígenas do Acre
Angélica Santa Cruz | Edição 196, Janeiro 2023
O céu do extremo Oeste do Acre estava uma coisa de outro mundo na noite de 25 de setembro, domingo. Do ponto mais alto da sede do Yorenka Tasorentsi – instituto criado no meio da Floresta Amazônica pelo ambientalista Benki Piyãko, um dos pajés do povo Ashaninka –, avistava-se um congestionamento de estrelas. Júpiter iniciava seu momento de maior aproximação com a Terra nos últimos 59 anos, mas para localizar o brilho amarelado do planeta entre tantos objetos cintilantes era preciso apelar para um aplicativo de astronomia instalado num celular – ainda assim, corria-se o risco de ter a atenção desviada pela passagem desvairada de uma estrela cadente.
Esse panorama celeste já era uma visão de bom tamanho. A cena mais espantosa por ali, no entanto, se desenrolava em terra. Era o Ritual União dos Povos – Céu de Estrelas, uma cerimônia de ayahuasca conduzida por líderes espirituais indígenas do Acre e acompanhada por xamãs de outros pontos do Brasil e da Colômbia, Equador, Peru, México e Canadá. Ao todo, estavam ali representados 35 povos originários, em uma cacofonia animada de 22 línguas diferentes.
Foi um espetáculo mesmerizante. Os indígenas distribuíram doses de chá de ayahuasca em pequenos copos de plástico e depois se espalharam por vários pontos do auditório, uma espécie de galpão com laterais abertas. Do lado de fora, em bancos de madeira que davam a volta em um pátio com chão de terra, estavam os ashaninkas, sem dúvida nenhuma um dos povos mais fotogênicos do planeta. Vestiam suas tradicionais kusmas, túnicas de algodão coloridas com pigmentos de sementes, e usavam amathairentsi, pequenos chapéus ornamentados com penas que apontam para o alto. Sentados lado a lado e na escuridão total, eram vultos altivos de seres da floresta, meio homens, meio pássaros.
Anfitrião do ritual, Benki Piyãko puxou os cantos espirituais e foi seguido por seu povo. Meia hora depois, cantaram os indígenas yawanawás, em um coral encorpado com vozes masculinas e femininas que ora se revezavam, ora se sobrepunham. De vários pontos de dentro e de fora do auditório, foram surgindo os cantos xamânicos dos huni kuins, dos shanenawas, dos puyanawas. As frequências musicais se repetiram e se elasteceram, em um ritmo que conduzia os participantes a estados alterados da mente e, de olhos fechados, às mirações, como são chamadas as visões sob efeito do chá.
De repente, ali no meio do breu, os líderes que conduziam o ritual entraram em êxtase – e foi como que se transmutassem em seus seres de origem. Os yawanawás, o povo da queixada, bateram pés no chão e entoaram o grito hu-hu-hu, emulando o barulho feito pelas grandes manadas de porcos selvagens que se locomovem pela selva, fazendo a terra tremer. Os huni kuins, que em sua tradição foram concebidos pela jiboia Yube, se transformaram pela dança – e se distribuíram em uma coreografia que simulava a ondulação muscular em S do corpo da serpente. Os ashaninkas, que em seus ritos espirituais costumam repetir cantos do txowa (o pássaro japo), lembravam uma passarada, cantando ao mesmo tempo.
A cerimônia durou até o amanhecer. Aconteceu no segundo dia da Quarta Conferência Indígena da Ayahuasca, um encontro de cinco dias entre expoentes espirituais de povos originários, às margens do Rio Juruá, a 18 km da fronteira entre Brasil e Peru. Não foi uma atração à parte, como costuma acontecer com as exibições encaixadas nas pausas das convenções acadêmicas ou de negócios. O ritual integrou o corpo de um evento em que os indígenas discutiram como podem se organizar para defender um sistema de conhecimentos ancorado no riquíssimo baú de tesouros da Amazônia. Na visão existencial dos povos que estavam ali, não há distinção entre animais, montanhas, humanos, rios, cachoeiras, terra, vento e seres espirituais: a floresta é uma entidade só, viva, consciente e detentora de direitos. E essa existência comunicante é iluminada por suas medicinas tradicionais. Entre elas, plantas sagradas que resultam na ayahuasca.
No calor de 37ºC típico do verão amazônico, com um prenúncio de chuva que envolve todos os seres vivos em uma bolha de mormaço, as filas de cadeiras de plástico do auditório do Yorenka Tasorentsi foram ocupadas por cabeças ornadas por cocares imensos e coloridos, faixas de miçangas, chapéus decorados com pele de onça, coroas de folhas de palmeiras. Havia rostos com grafismos delicados, pintados com pigmentos de plantas; outros completamente cobertos com a tinta vermelha do urucum. E transitavam para lá e para cá corpos cobertos por túnicas, saias de palha, grandes adereços feitos de sementes, blusas bordadas, xales coloridos, vestes brancas.
Durante todo o dia, o chá da ayahuasca ficava disponível para quem quisesse tomar, em grandes suqueiras colocadas na mesa onde sentavam os palestrantes – a onipresença da bebida, explicaram os indígenas, tinha uma razão: as discussões eram sobre ela, com ela e para ela. Jovens nukinis passavam fazendo defumações nas pessoas, com incenso de breu-branco queimado em panelas de Teflon; meninas ashaninkas distribuíam caiçuma, uma bebida de mandioca fermentada.
Ao todo, passaram por ali 244 indígenas. Espalhados nas últimas cadeiras do auditório ou nas laterais, ficaram os 145 convidados não indígenas – entre colaboradores, cientistas, antropólogos, integrantes de igrejas que usam a ayahuasca em seus ritos e representantes de entidades parceiras. Vestidos de maneira muito menos elegante do que os anfitriões, os não indígenas só assistiam. Participaram de uma mesa no quarto dia, com três palestrantes falando sobre temas como o Protocolo de Nagoya – um acordo internacional de governança de biodiversidade – e o interesse das grandes farmacêuticas nas medicinas indígenas. Mas não foram autorizados a fotografar ou filmar, e os afoitos que não resistiam e tiravam furtivamente o celular do bolso levavam pitos do pessoal da mesa. Ali, os forasteiros, chamados pelos indígenas de nawás, eram apenas observadores.
Feita por indígenas para indígenas, a conferência foi realizada pela primeira vez em dezembro de 2017, na aldeia Barão do Rio Branco da Terra Indígena Puyanawa, no município de Mâncio Lima, a 147 km dali. Apareceu como uma reação à AYA, a Conferência Mundial de Ayahuasca, organizada pelo Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço em Etnobotânica (Iceers, na sigla em inglês), uma entidade espanhola que se dedica a esclarecer a sociedade sobre as plantas psicoativas.
Era um evento formatado nos moldes da produção de conhecimento acadêmico. Cientistas se reuniam em grupos de trabalho e falavam sobre temas que iam dos efeitos psicotrópicos da planta nas moléculas do corpo a aspectos legais para seu uso em psicoterapias. Até ali, duas edições da AYA já haviam sido realizadas. A primeira em Ibiza, em 2014, não contou com a participação dos povos indígenas do Acre. “Escrevemos cartas para os organizadores perguntando como nós, os povos originários amazônicos que cuidamos dessa medicina ao longo dos tempos, e daqui do Acre, de onde ela saiu para o mundo, não fomos convidados?”, conta Iskukua Yawanawá, jovem liderança da aldeia Nova Esperança, às margens do Rio Gregório, em Tarauacá.
A segunda AYA aconteceu em Rio Branco, em 2016. Dessa vez, os indígenas da região foram convidados. Não gostaram do que viram. Sentiram-se tratados como coadjuvantes. Foram colocados, por exemplo, em alojamentos da Universidade Federal do Acre (Ufac) e comiam em refeitórios, enquanto os acadêmicos ocupavam os hotéis da cidade e iam a restaurantes. Acostumados aos longos colóquios típicos dos povos ameríndios, estranharam o formato em que tinham que expressar suas ideias rapidamente, em janelas espartanas de cinco minutos. E, se tentavam falar mais um pouco, tinham o microfone cortado.
A certa altura, se depararam com uma aura moralizante emanando dos não indígenas. Diante de um auditório de cerca de setecentas pessoas, um deles pediu para Benki Piyãko responder se os povos originários estavam comercializando ayahuasca e, portanto, banalizando demais o seu uso. O líder ashaninka – ambientalista que coleciona prêmios internacionais e foi um dos escolhidos para integrar a equipe de transição do governo Lula – pegou o microfone e respondeu: “Viajei o mundo inteiro e, em todos os lugares em que estive, a ayahuasca chegava antes de mim.” Mas, sobretudo, farejaram no evento um climão de salvo-conduto para a ciência, em detrimento dos saberes ancestrais. “Vamos fazer o nosso”, deliberaram Benki Piyãko e Biraci Brasil Nixiwaka, um dos líderes espirituais do povo Yawanawá. Ali mesmo, começaram a avisar os parentes, maneira como os indígenas se referem aos integrantes de outros povos.
Em sua primeira edição, em dezembro de 2017, a conferência indígena teve a participação de treze povos do Vale do Juruá, região do Oeste do Acre que abrange cinco municípios. Centrou fogo em duas questões que os líderes espirituais queriam entender melhor. Uma delas era um pedido de patrimonialização da ayahuasca que tramita no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – uma demanda feita pelas igrejas brasileiras que fazem uso da bebida, para que ela seja considerada patrimônio cultural brasileiro. “No que isso nos afeta?”, perguntavam-se os indígenas. A outra eram os efeitos do boom no interesse mundial pela bebida sagrada, uma movimentação que fez com que muitos indígenas do Acre passassem a viajar pelo mundo fazendo cerimônias. “Até que ponto essa expansão dos nossos conhecimentos ancestrais pode ser benéfica ou ameaçadora?”, discutiram eles.
Desse primeiro encontro, saiu um dever de casa: todos os líderes espirituais voltariam a suas comunidades para discutir os temas internamente e depurar seus pontos de vista. Não era uma tarefa trivial. Só o povo Huni Kuin tem cerca de 14 mil pessoas, distribuídas em 104 aldeias em doze terras indígenas. Por isso nem todos conseguiram. Ainda assim, oito meses depois desse primeiro encontro, lá estavam os pajés de novo reunidos em uma segunda conferência. Ao final de quatro dias de debates, elaboraram uma carta de intenções que tratava de assuntos internos – como a importância de valorizar o conhecimento dos idosos, reconhecê-los como bibliotecas vivas e criar espaços para ouvi-los. Mas também apontava para fora, como a decisão de pedir apoio técnico a instâncias como a ONU, na tentativa de achar caminhos para proteger suas medicinas tradicionais.
Com certa aura de mistério – realizada no meio da floresta, em torno de um tema que costuma exercer fascínio –, a conferência indígena começou, a partir daí, a chamar a atenção de povos e de instituições do mundo inteiro. E chegou ao formato que se viu em setembro: um evento com debates complexos e sofisticados, discutidos por uma paisagem humana composta por personagens com histórias épicas.
Os métodos xamânicos de cura estão caindo nas graças dos ambientes científicos tradicionais. O potencial terapêutico de substâncias alucinógenas usadas por líderes espirituais indígenas de todo o planeta, como a psilocibina (o princípio ativo dos “cogumelos mágicos”), a mescalina e a ayahuasca, já fora perscrutado por cientistas nos anos 1960. Depois, aos olhos da ciência, amargou um ostracismo. Em parte, por preconceito, porque os psicotrópicos acabaram associados aos excessos provocados por uma cultura hippie que passou a usá-los como se não houvesse amanhã. Em parte, pelos interesses das grandes farmacêuticas que passaram a ganhar fábulas ao jogar antidepressivos no mercado. Agora, com os casos de saúde mental explodindo no mundo, apesar dos altíssimos índices de medicalização, o interesse pelos psicotrópicos voltou à tona, e a aprovação do uso deles em terapias pelos órgãos reguladores está virando um assunto sério – uma jornada esmiuçada pelo jornalista norte-americano Michael Pollan no livro Como Mudar Sua Mente, transformado também em série na Netflix.
O chá de ayahuasca é feito de uma mistura de duas plantas amazônicas, geralmente o cipó-caapi (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona (Psychotria viridis). A chacrona contém dimetiltriptamina. Também chamada de DMT, é a única substância psicodélica conhecida que ocorre naturalmente no corpo humano: foi descoberta no tecido cerebral em 1972, pelo bioquímico Julius Axelrod, ganhador do Prêmio Nobel dois anos antes. Em associação com alcaloides presentes no cipó, o DMT provoca efeitos psicoativos. Agora, há pesquisas a mancheia mostrando resultados promissores da bebida no tratamento da depressão, do alcoolismo, do transtorno obsessivo-compulsivo. Usado com os olhos fechados, o chá ativa áreas do cérebro relacionadas a memórias e desejos. Aliadas a psicoterapias, essas visões podem levar a jornadas de cura para males como a ansiedade em pacientes terminais. E, para arredondar o quadro geral, inúmeros estudos mostram que a ayahuasca não causa dependência física.
Conhecidas desde sempre pelo xamanismo, essas conclusões jogaram os povos indígenas em um emaranhado de dúvidas. Os líderes espirituais reunidos na conferência no Acre debateram cada uma delas. Em linhas gerais, os pajés se mostram felizes porque suas medicinas podem dar a volta ao mundo. Mas temem que elas sejam usadas de modo irresponsável – psicotrópico potente, a ayahuasca pode causar danos, e até mortes, sem um acompanhamento adequado.
Os líderes também se preocupam com o impacto que a procura pelas plantas pode ter na floresta, e com o risco de biopirataria. Por isso, são contrários às tentativas de registrar patentes da ayahuasca e de outras medicinas indígenas mundo afora, e ao desenvolvimento de produtos comerciais com base nas substâncias extraídas de suas plantas sagradas que desconsiderem os conhecimentos tradicionais associados a elas. É uma luta que promete ser duríssima – em dezembro passado, por exemplo, uma empresa canadense anunciou que vai iniciar testes clínicos com uma pílula de ayahuasca, criada para tratar doenças mentais. E, enfim, como os próprios indígenas, inclusive jovens pajés, saem das aldeias para fazer rituais com essa medicina sagrada, cogitam criar um Conselho de Líderes Espirituais Indígenas para tentar organizar esse mercado.
No último dia da conferência, elaboraram uma carta elencando 29 preocupações – é um texto telúrico, que pinçou frases da maneira como foram ditas pelos participantes. O primeiro item diz o seguinte:
Afirmamos que a ayahuasca é o fio condutor da vida, um conhecimento ancestral que resistiu à colonização e permanece vivo na cultura de diversos povos indígenas, seus guardiões desde os tempos imemoriais. Ressaltamos que os ensinamentos indígenas são uma inspiração diante das mudanças necessárias para proteger a vida no planeta e para revisar a própria ideia de humanidade.
Nos grandes centros urbanos do país, o uso da ayahuasca costuma ser associado a frequentadores de religiões como Santo Daime e União do Vegetal, herdeiras da doutrina propagada por Raimundo Irineu Serra (Mestre Irineu, morto aos 78 anos em 1971), maranhense que conheceu a mistura de plantas quando trabalhou como seringalista na Floresta Amazônica e depois a expandiu para áreas urbanas. No Acre, é diferente. As igrejas ayahuasqueiras estão para a capital Rio Branco mais ou menos como as religiões de matriz africana estão para Salvador. Foram assimiladas pela população e exercem influência cultural, seus representantes têm trânsito em órgãos públicos e no Judiciário — existe até uma linha de ônibus chamada Irineu Serra. Ainda assim, as igrejas sofrem certo preconceito, principalmente de parte das igrejas evangélicas. Mas à medida que as coordenadas geográficas entram floresta adentro, a bebida vai adquirindo uma relação cada vez mais intrincada com a vida das pessoas.
A planta aparece na cosmogonia indígena e, por isso, tem raízes profundas na identidade e no imaginário das aldeias. Mas também surge como elemento definidor de um capítulo fascinante da história recente do Acre – a ponto de virar um personagem histórico, do tipo que determina destinos e desempata dilemas.
Em 1970, o governo federal afirmava que não existiam mais registros de povos indígenas no Acre. Não se viam aldeias na região, porque seus habitantes haviam sido caçados a partir do final do século XIX nas correrias, como eram chamadas as expedições sanguinárias na floresta em que seringalistas brasileiros e caucheiros peruanos capturavam indígenas e os obrigavam a trabalhar nos seringais. Eram massacres ensandecidos. As malocas – grandes ocas comunitárias onde eles viviam – eram incendiadas, mulheres e crianças eram arrastadas por cachorros. Para fragilizar os povos, os exploradores de seringais também estimulavam antigos conflitos intertribais. Com esse combo de horrores, avançavam sobre seus territórios.
Mesmo com a decadência da economia da borracha a partir de 1910, os seringais persistiram nas décadas seguintes. Até que, no começo da década de 1970, passaram a ser vendidos para grupos econômicos do Sul e Sudeste que contavam com incentivos de bancos públicos para transformá-los em áreas de cultivo ou em fazendas de gado. Eram empresas como Paranacre, Atalla-Copersucar, Atlântica Boavista ou Cacique. Passaram a ser chamadas por ali de “paulistas” e arrematavam grandes faixas de terra com tudo o que estava dentro, gente e floresta. Foi uma nova ocupação que acabou gerando conflitos violentos por posse de terra, principalmente porque os seringueiros, em sua maioria nordestinos que haviam migrado para lá impelidos pela fome, não queriam sair.
Em 1975, a ditadura militar indicou o professor e então senador Geraldo Gurgel de Mesquita para governar o Acre. A piada corrente no estado era que, apesar de biônico, Mesquita parecia guardar vestígios de sua juventude de militante comunista. Assim que assumiu, ele enviou uma carta à Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, pedindo um levantamento demográfico das populações indígenas acreanas. No conflito fundiário, havia pessoas que se diziam “descendentes de índios”. A ideia era entender melhor, para avaliar se seria o caso de colocá-las em loteamentos. Se esses indígenas ainda existissem em número suficiente, claro.
A Funai, então, despachou para o Acre o sertanista José Porfírio Fontenele de Carvalho, um cearense alto, de voz tonitruante, carismático e idealista que, apesar das amarras do regime militar, conseguira fazer um trabalho extraordinário ao salvar da extinção os waimiri atroaris, que vivem no Sul de Roraima e no Norte do Amazonas*. Carvalho abriu uma ajudância da Funai em Rio Branco, dois postos indígenas no município de Sena Madureira e jogou uma rede para pescar colaboradores em um dos mais profícuos criadouros de antropólogos do país, a Universidade de Brasília (UnB).
O primeiro peixe apanhado foi Terri Valle de Aquino, um jovem de 29 anos que, apesar de ter estudado desde a infância no Rio de Janeiro e ter feito mestrado em Brasília, era acreano. Magrinho, mirrado, usando um comportado corte de cabelo com franja, herança do período em que pensara em ser seminarista, Aquino achou a ideia fantástica. Prestando serviços para a Funai, conseguiria concluir seu mestrado sobre os destinos do povo Kaxinawá em um privilegiado trabalho de campo, pelas matas do município de Jordão adentro.
Com a carteira abastecida por uma pequena verba de pesquisa para contratar um guia, Aquino arregimentou Alfredo Sueiro Sales, um homem articulado, exímio conhecedor da região. Sueiro era um cacique kaxinawá que sobrevivera trabalhando nos seringais, mimetizado na floresta e proibido de falar sua língua e praticar seus costumes – exatamente como todos os indígenas que o governo afirmava não existirem.
“Eles tinham perdido a identidade, viraram caboclos. E caboclo, no Acre, era o índio sem direitos”, lembrou Aquino, com um boné verde usado com a aba para trás, camisa xadrez, bolsa de pano cruzada e pulseira de miçangas, agarrando-se onde podia para resistir aos solavancos de um taxi aéreo que sobrevoava a floresta a caminho da Conferência Indígena da Ayahuasca. Conhecido como Txai Terri, ele receberia uma homenagem especial dos indígenas no evento. E, no dia seguinte a essa viagem de avião, ganharia dos ashaninkas uma festa-surpresa, pelo aniversário de 76 anos.
O cacique, chamado na região de Velho Sueiro, até que vivia em uma situação ligeiramente melhor, porque era o patrão em um pequeno seringal no Alto Jordão, chamado Fortaleza, que herdara de uma madrinha – uma piauiense viúva, negra, de quem ele cuidara até o fim da vida. E era uma liderança local querida, respeitada. Mas os kaxinawás em geral moravam espalhados em colocações, pequenas faixas de terra com casa e roçado dentro de seringais. Como sabia andar em cada centímetro desses lugares, o Velho Sueiro virou companheiro inseparável de Aquino, que mapeou os povos e ajudou a provar para o governo que, sim, no Acre havia indígenas.
Com outros jovens antropólogos e sertanistas que foram chegando, Aquino descobriu uma quantidade esplendorosa de indígenas camuflados entre seringueiras. Lá estavam os indígenas manchineris e yaminawás, nas cabeceiras do Rio Iaco; os kulinas e kaxinawás, no Alto Rio Purus; os kaxinawás nos rios Envira, Tarauacá e Jordão; os yawanawás e katukinas, no Rio Gregório; os puyanawas e nukinis no Rio Moa; outros katukinas, no Rio Campinas; e os shanenawas, kulinas e ashaninkas (kampas), no Alto Rio Envira. Eram falantes de línguas dos troncos pano, aruak e arawá. Todos herdeiros de uma identidade proibida.
Alguns tinham tradições um pouco mais preservadas, embora sempre mantidas em segredo, para não apanhar dos patrões nos seringais. Outros viviam já quase sem memória do que haviam sido. Práticas espirituais se entrelaçavam com a vida nos seringais – a ayahuasca, que vários povos chamam por nomes diferentes, ali era só “cipó” ou “cinema de caboclo”. Era tomada por muito poucos.
Transformados em caboclos, os indígenas trabalhavam em troca de alguns trocados que eram obrigados a gastar ali mesmo, nas vendas do seringal, onde encontravam as mercadorias essenciais – como munição para caçar, querosene, sal, açúcar. O patrão, claro, botava o preço. Sem saber ler ou fazer contas, os empregados entravam em uma espiral de dependência, com dívidas impagáveis. Era uma reinvenção da escravidão.
Quando concluiu o trabalho para a Funai, Aquino aboletou-se na casa do Velho Sueiro e a transformou em sua base no Jordão, onde terminaria a pesquisa de mestrado. Em 1976, em uma tentativa de reanimar um pouco a economia da borracha, o governo lançou uma linha de financiamento para pequenos seringais. “Aí uma das filhas do Sueiro ficou sabendo e me disse: ‘Por que você não ajuda meu pai a se financiar também? Você só está tirando dele… Devolve um pouco!’”, lembra Aquino. Constrangido com a dura, o jovem antropólogo foi se informar. “Vi que não dava para levantar financiamento para o seringalzinho dele, porque ele não tinha nenhum documento de propriedade, como uma certidão de compra e venda ou de doação. Expliquei isso para ela, mas fiquei bem chateado.”
O cacique Sueiro era xamã e, nas visitas aos parentes espalhados por outras terras, de vez em quando servia o cipó. Aquino escutava com frequência as histórias de mirações e até relatos de como elas poderiam ajudar a iluminar decisões. Mas, nas vezes em que provara a bebida, o antropólogo não vira lhufas – só tivera náuseas profundas e duradouras. Foi se convencendo de que não era merecedor daquela experiência. Até que fez uma visita a uma das colocações habitadas por parte dos ashaninkas, um dos povos que mais conseguiram manter sua cultura, seja porque fugiam para as cabeceiras dos rios, seja porque tinham fama de guerreiros e eram arregimentados pelos seringueiros para amansar os outros indígenas.
Aquino chegou no meio de uma dieta de cura, período em que os indígenas jejuam ou se submetem a restrições alimentares para se preparar para as cerimônias xamânicas. Resolveu fazer o mesmo e ficou dias comendo apenas macaxeira. Tomou a ayahuasca em uma versão em que o cipó é tirado inteiro da terra, desde a raiz até a última rama. “Aí eu senti o efeito – e na minha visão caí direto em uma conferência espiritual. Comecei a conversar ali com os espíritos e eles a me perguntarem coisas”, lembra. “Ali ficou muito claro o que antes era uma intuição: os índios tinham que se organizar. Não tinha como ficar falando de identidade, de cultura, se eles dependiam dos patrões. Como você vai lutar pela terra, mobilizar a população? Só no blá? Não, eles deveriam ser donos da mercadoria! Era ela que movimentava tudo… E não dava para inventar a roda, eles tinham que fazer o que sabiam, que era cortar seringa. Os kaxinawás eram o povo indígena que mais vivera dentro do seringal. Já estavam ali havia cinquenta anos quando cheguei.”
Sob o impacto de sua miração, Aquino voltou para o pequeno seringal do Velho Sueiro, levando embaixo do braço um livro de Kenneth Kensinger, um ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil, denominação norte-americana que traduz a Bíblia para línguas indígenas e faz uma evangelização agressiva. Kensinger fora tentar converter os kaxinawás do Peru e acabara convertido por eles. Virou antropólogo e escreveu The Cashinahua of Eastern Peru, catálogo etnográfico com fotos de itens da cultura material desse povo, um acervo depois exposto no Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia. “Mostrei o livro ao Velho Sueiro e expliquei: ‘Olha, consegui entrar em uma extensão na Universidade Federal do Acre. Quem sabe ela não compra uma coleção dessas também e dá para financiar o seu seringal? Vocês ainda sabem fazer isso tudo?’”
O cacique olhou as fotos e considerou que não tinha alternativa – a não ser tentar. Arregimentou entre os parentes da área, principalmente as mulheres, quem ainda lembrava como fazer cerâmica, tecelagem, adereços. Usando como modelo o livro de Kensinger, os kaxinawás ressuscitaram o seu artesanato. Junto com Aquino, fotografaram as tecelagens, a arte plumária, a cerâmica, os instrumentos para roçado e foram oferecer para a Ufac, evocando o caso norte-americano. A universidade topou comprar o acervo e abriu um pequeno museu (hoje desativado). “Não teve condição de eles conseguirem dinheiro pelo banco, mas teve pela própria cultura deles”, disse Aquino, no segundo dia da conferência, agora em uma conversa perto de uma gigantesca sumaúma, enquanto enrolava um cigarro de tabaco.
Os indígenas fecharam o bordel mais próximo para comemorar. Depois, com a verba nas mãos, compraram instrumentos para o trabalho na seringa, como tigelas e bacias para defumar o leite retirado das seringueiras, uma das etapas da feitura da borracha. Começaram uma pequena produção, foram juntando com a de parentes que estavam em outros seringais. A coisa foi crescendo. Para vender a borracha, eles a transportavam escondida dos patrões, descendo os rios de madrugada. A notícia foi se espalhando, outras ajudas vieram.
Por volta de 1980, os indígenas conseguiram um pouco de verba na Secretaria Estadual de Agricultura, depois alguns comerciantes da região contribuíram. Juntando o dinheiro, começaram a ficar independentes dos patrões. Dois anos mais tarde, conseguiriam a primeira ajuda de agências humanitárias alemãs que, com intermediação de órgãos governamentais, como a Funai e o Ministério da Justiça, financiaram o projeto por dois anos. Depois, vieram os ingleses. O Comitê de Oxford para Alívio da Fome (Oxfam, na sigla em inglês) financiou por dez anos essas pequenas cooperativas indígenas. Bem antes que suas terras fossem demarcadas, o cacique Sueiro conseguiu tirar os patrões lá de dentro. No dia em que eles saíram, os kaxinawás fizeram uma katxanawa, uma grande festa – meio improvisada, porque não lembravam direito como era a comemoração dos antepassados, mas que varou a noite. E teve ayahuasca. Nos anos seguintes, decidiram: não seriam mais chamados de kaxinawás, um nome dado pelos brancos. Agora seriam o povo Huni Kuin.
As pequenas cooperativas indígenas se alastraram pela região, em acordos sacramentados pelos povos em longas sessões de ayahuasca. Viraram a primeira experiência de criação de uma alternativa aos barracões dos patrões e foram o começo de um modelo organizacional que depois seria o eixo da mobilização política e social dos povos da floresta acreana. Antigas e novas lideranças foram legitimadas, passaram a negociar com os comerciantes nas cidades e a participar de assembleias organizadas em Rio Branco por entidades indigenistas – como a Comissão Pró-Índio do Acre, criada por um grupo de antropólogos e sertanistas, entre eles Txai Terri. A partir daí, se engajaram na luta pela demarcação de suas terras.
Muito por causa dessa articulação dos indígenas, que conseguiram verbas de agências humanitárias estrangeiras para acelerar os processos de demarcações de terras empacados na Funai, as regularizações no Acre foram as mais rápidas do país. Em três décadas, 80% das terras já eram reconhecidas pelo governo federal. Hoje os territórios ocupados por indígenas constituem um tapete contínuo de 7,7 milhões de hectares, distribuído sobre 46% da superfície total do estado. As terras indígenas estão em estágios diferentes na burocracia das regularizações fundiárias, mas falta demarcar as de dois povos, Nawa e Kuntanawa, cujos processos ficaram engessados durante o governo Bolsonaro.
A antropologia acreana divide essa saga em quatro períodos: o tempo das malocas, o das correrias, o dos direitos e o da cultura – mas isso não significa que todos os povos tenham cruzado esses marcos simultaneamente. A exuberância que se viu na Quarta Conferência Indígena da Ayahuasca é um nível avançado do tempo da cultura.
Enquanto recuperavam seus territórios, os povos do Acre mergulharam em jornadas de redescoberta de sua identidade. Mais uma vez, lá estava a ayahuasca.
Nos cinco dias da conferência, em vários pontos das terras do Instituto Yorenka Tasorentsi, líderes indígenas contaram histórias de como as medicinas sagradas os ajudaram na reconexão com suas origens. Dependendo de quem olha, as histórias podem ser lidas como um fenômeno científico ou um acontecimento espiritual. Relatadas ali por seus protagonistas, no esplendor da floresta, a impressão era a de que, afinal de contas, tanto faz.
Sentado no chão enquanto fazia um ritual noturno de tabaco, no meio da mata e diante da luz de uma vela, Osmildo Silva da Conceição fechava os olhos a cada vez que puxava um longo trago – o que provocava um fumacê que conferia à cena um efeito meio mágico. Ele é pajé dos kuntanawas, povo que não foi totalmente exterminado por um triz e se transformou em um dos casos mais decisivos de como o cipó foi usado para conduzir a uma redescoberta étnica.
“Minha avó era filha de um grande curandeiro. Foi tirada das matas do Rio Envira em uma correria, com 11 anos de idade. Passou três anos com um patrão, que depois a entregou para o cara que tinha massacrado a nossa família”, lembrou ele. Em uma história comum entre os povos violentamente arrancados de suas aldeias, a avó do cacique, Regina, acabou virando parte da sociedade do seringal. Casou-se com vários seringueiros. Mas ainda sabia falar sua língua, guardada a sete chaves, como um livro proibido. Conhecia plantas medicinais e se transformou em uma respeitada parteira da região do Rio Jordão, onde chegou a conviver com mulheres huni kuins, com quem tinha parentesco, e absorveu um pouco da cultura delas. Passou essa herança para a filha, Mariana – a mãe de Osmildo Kuntanawa –, que depois se tornaria também uma parteira, conhecida em outra área, a do Rio Tejo.
O pajé Osmildo cresceu transformado em seringueiro, integrante de uma família numerosa e por muito tempo conhecida na área como “os caboclos do Milton”, em alusão ao nome de seu pai, filho de um indígena também capturado em uma correria. Osmildo era tão rápido e preciso no corte de seringa que ganhou até prêmio em dinheiro. Nunca gastou e guarda até hoje as notas antigas em uma gaveta.
Os Miltons, como eram chamados, ficaram no limbo identitário dos indígenas misturados com a economia da borracha. Articulados, aderiram à luta dos seringueiros e lideraram associações que brigaram pela criação da Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, no município de Marechal Thaumaturgo, a primeira Resex do Brasil. Depois, acusando discriminação nessas entidades por causa de sua origem étnica, decidiram: “Somos indígenas.”
O sangue estava lá, mas o que restava da cultura eram frações da língua, puxadas da memória da matriarca Mariana. Os kuntanawas remanescentes passaram, então, a fazer intercâmbios com outros povos, como os kaxinawás e os yawanawás, também do tronco linguístico pano. Eram longas viagens, algumas delas intermediadas por outros pioneiros do sertanismo no Acre, como Txai Antônio Macêdo, que define essas jornadas como “indigenismo religioso”. Boa parte do resgate linguístico – o nome dos peixes, das caças, das árvores, das medicinas – veio das canções ayahuasqueiras que escutaram nessas incursões por outras aldeias. Nelas, eles participaram de rituais com pajés respeitados e aprenderam a preparar o chá.
Com o ressurgimento do xamanismo kuntanawa, veio também o arcabouço de cânticos, danças, pinturas corporais, artesanatos e a intimidade com as plantas sagradas – era um povo voltando. As mirações atuaram em uma jornada terapêutica, de reconciliação com o passado, no mesmo processo que começa a ser atestado agora pela ciência acadêmica. “Bebi pela primeira vez no terreiro dos ashaninkas. Vi toda a minha vida, desde criança, e entendi como poderia fazer para ter uma renovação na matéria e no espírito, e ter a honra de trazer o resgate dessa medicina para dentro de nossa terra. Hoje ela é meu guia, meu protetor, minha luz”, diz o pajé. Agora, os kuntanawas vivem aldeados e esperam pela demarcação de seu território, em um pedaço da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Chamam a ayahuasca de uni.
O cacique Biraci Brasil Nixiwaka levantou poeira ao chegar à conferência indígena de helicóptero. Apertou a mão de outros líderes e sentou-se ao lado dos anfitriões. Era uma presença altiva, típica de um chefe de nação. “Mas há algumas décadas, meu povo estava perdido”, diz ele.
O avô do cacique Biraci fez o primeiro contato de sua aldeia com os não indígenas e viveu mais de cem anos, o suficiente para ver os estragos feitos pela convivência com a economia dos seringais e com os missionários do Novas Tribos do Brasil. “Eles traduziram a Bíblia para a nossa língua e nos dominaram muito rápido. Evangelizaram nosso povo por trinta anos. Ficamos com vergonha do que a gente era. A nossa espiritualidade, eles diziam, era coisa do Diabo”, conta. Aos 16 anos, saiu da aldeia para estudar. “Eu queria ser antropólogo, inspirado pelo Txai Terri. Mas, depois, vendo os conflitos pela posse de terra, achei que, para defender meu povo, seria melhor cursar direito.” Foi morar na periferia de Rio Branco, trabalhando como servente de pedreiro na construção de templos evangélicos. Em 1982, viu um anúncio em um jornal chamando para um encontro, em uma escola estadual, de lideranças indígenas com entidades indigenistas. Resolveu ir, entrou para o movimento indígena brasileiro, integrando a primeira geração de ativistas. Viajou pelo mundo conhecendo outros militantes, trabalhou na Funai, flertou com a política – chegou a se candidatar para deputado constituinte em 1987, mas não foi eleito.
Dez anos depois de sair da aldeia, voltou para liderá-la, a pedido do tio, um cacique já idoso. As terras yawanawás haviam sido demarcadas, foram as primeiras do Acre. “Mas a minha família estava desestruturada, alguns trabalhando para fazendeiros, havia alcoolismo.” Biraci dedicou-se a colar os cacos de seu povo, em uma redescoberta das tradições que passou pelas sessões de ayahuasca, tradicionalmente consagrada pelos yawanawás, que também a chamam de uni, junto com o rapé, que chamam de rume. Expulsou os evangélicos, proibiu o álcool e abriu uma nova aldeia – onde não havia mortos enterrados –, chamada Nova Esperança, que chefiou por 28 anos. Depois, atravessou a arrebentação de ficar um ano de dieta, sem sexo, sem açúcar e sem vários tipos de comida, apenas tomando a medicina sagrada. Em suas visões, enxergava reelaborações da cultura de seu povo. A aldeia foi tomando novos ares. Em 2005, duas mulheres foram aceitas como pajés, depois de driblar as resistências iniciais dos homens, inclusive do cacique Biraci.
Hoje os indígenas yawanawás são um portento cultural e administrativo. Têm um modelo de organização em que várias aldeias, com diferentes líderes, são legalmente representadas por três associações. Uma delas tem contrato desde 1993 com a empresa norte-americana de cosméticos Aveda – no início, para a produção de urucum, e depois, para o direito de uso de imagem. Outra associação, comandada por Tashka Yawanawá, assinou contratos como o lançamento de uma coleção com a grife carioca Farm e tem parcerias culturais com o instituto mantido pelo DJ e produtor musical Alok. Durante anos, o povo Yawanawá promoveu um dos festivais culturais mais concorridos da região, o Mariri. Mas agora os rituais sagrados aparecem como uma promissora fonte de renda – e os festivais foram substituídos pelas vivências, modalidade de etnoturismo em que os viajantes, sobretudo estrangeiros, ficam hospedados nas aldeias e participam de sessões de cura com ayahuasca.
“Nossas medicinas sagradas hoje são também um modelo de financiamento para as aldeias”, diz José de Lima Kaxinawá, mais conhecido como Zezinho Yube, diretor de cinema e cacique do povo Huni Kuin, sentado no refeitório vazio do Instituto Yorenka Tasorentsi, à meia-noite de 27 de setembro, terça-feira. Lá fora, os jovens faziam rodas de música em um grande pátio gramado, onde se distribuíram as hospedagens das delegações indígenas. Yube foi assessor especial dos povos indígenas do ex-governador do Acre Jorge Viana (PT), nos anos 2000, e explica os desdobramentos do tempo da cultura.
Quando já estavam com suas terras demarcadas, os indígenas mergulharam em imersões dolorosas, buscando suas tradições. Era uma viagem identitária, mas era também uma necessidade movida por um aspecto muito prático: “E agora, vamos viver do quê?” Além dos modos de vida tradicionais – agricultura, pesca, criação de animais – era preciso gerar alguma renda para melhorar a vida das aldeias e até fazer vigilância territorial em uma região permeada por ameaças: madeireiros, pecuaristas e crime organizado, sempre à espreita para avançar sobre as terras indígenas.
Em alguns períodos, houve incentivos do governo estadual para oficinas culturais e encontros entre povos. Começaram a surgir os primeiros festivais, grandes festas regionais que atraíam turistas, o que resultou em uma febre que durou até pouco antes da pandemia. Só em 2019 foram 48, movimentação que obrigou as lideranças indígenas a fazer um cronograma para evitar sobreposições de datas. Essas festanças também serviam como intercâmbio entre os povos.
“Foi muito incrível! Teve uma explosão cultural. Foi como reativar uma coisa que estava ali guardada durante muito tempo, e a gente só não praticava mais por causa da repressão, do preconceito, da discriminação. Era um visitando o outro, para pegar informações. Somos quase todos do mesmo tronco linguístico, o pano, e isso facilitou a retomada das línguas ancestrais, porque era fácil trocar o que cada um ainda sabia. E, mesmo quando eram de troncos diferentes, tinha um aprendizado de ver como as comunidades estavam organizando suas festas, se vestindo, documentando sua cultura. Todo mundo passou a pensar: “Como vai ser a partir de agora o nosso cocar? E a nossa pintura?”, lembra Yube.
Os indígenas ficavam de olho nas vestimentas e acessórios dos outros povos. No encontro seguinte, chegavam com opções ainda mais vistosas. Entre os jovens, veio uma vaga irresistivelmente fashion. Os adereços ficaram mais extravagantes, mais coloridos, mais cheios de sementes e penas. Os cocares ritualísticos dos pajés foram ganhando uma arte plumária mais sofisticada, com um jeitão muitas vezes inspirado nas vestimentas dos parentes norte-americanos. A arte indígena, vendida por meio de cooperativas, explodiu. Colares e pulseiras feitos com miçangas de vidro importadas da República Tcheca passaram a trazer grafismos repletos de significados, com alusões a seres da natureza. Era uma versão tropicalizada e radical daquele processo de criação de costumes que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “a invenção das tradições”.
E, é claro, uma engrenagem cultural em movimento. Às vezes, uma aldeia reclama que outra copiou a sua ideia e corre para ter uma nova – como acontece em qualquer sociedade, diga-se. “É apropriação cultural! Eles copiaram mesmo. A gente devia discutir isso aqui também”, reclamava uma indígena com uma amiga, enquanto retirava um pedaço de melancia de uma imensa bacia branca, na fila do almoço do refeitório, o lugar onde todos se encontravam para colocar em funcionamento a troca de informações que chamam de “rádio cipó”. Não deu para pescar contra quem era a queixa, mas, no final, a interlocutora brincou: “Encontro de parente é igual namoro de jabuti: a gente se bate, mas se entende.” Como os povos são todos imbricados por sucessivos casamentos entre eles, a coisa quase sempre se resolve no final.
Os pajés, que andavam esquecidos nas aldeias, voltaram a ser consultados e respeitados. “Quando viam essas marcas aqui, os parentes jovens tocavam nelas e diziam: ‘Mas o que é isso?’”, conta Kaku Kamanawa. Ele é pajé do povo Nuke Kuî (antes chamado pelos brancos de Katukina), que se divide pelas terras indígenas Campinas e Rio Gregório, nos municípios de Tarauacá e Cruzeiro do Sul. Com as redescobertas espirituais, Kaku passou a percorrer outras aldeias, mostrando seus conhecimentos. As marcas que ele apontou no braço são de pequenas queimaduras feitas com varetas fumegantes para inocular a “vacina do sapo” – secreção raspada do corpo de uma rã, o kambô (Phyllomedusa bicolor) –, usada pelos xamãs, entre outras coisas, para purificar o corpo, porque provoca vômitos.
Em 2021, Yube passou metade do ano nos Estados Unidos, fazendo rituais de ayahuasca para grupos grandes reunidos em entidades ou pequenos, em residências. As viagens foram trianguladas por mecenas estrangeiros que, em troca da ajuda, pediram garantias de que o dinheiro arrecadado seja usado para melhorias nas aldeias. O cacique, então, juntou as mulheres e perguntou o que elas achavam mais importante para a aldeia naquele momento. Elas responderam que queriam poços artesianos. “Com as viagens de 2021, fizemos catorze poços, em treze aldeias. A próxima etapa será a instalação de caixas d’agua”, recorda. Cada poço, conta o pajé, custa entre 20 e 30 mil reais, dependendo de variáveis, como as dificuldades de acesso às aldeias. Indagado sobre os próximos estágios na linha de tempo dos povos indígenas acreanos, Yube aposta: “Vai ser o fortalecimento das medicinas sagradas, com a volta cada vez mais forte do nosso xamanismo, a compra de terras pelos povos indígenas para fazer reflorestamento, centros de cura e vivências, e a governança indígena.”
Essa identidade cultural fervilhante também ajuda a conseguir apoio internacional para projetos maiores, como os de reflorestamento e manejo. Os representantes das entidades estrangeiras ficam encantados com a exuberância que hoje encontram nas aldeias.
Tratados durante séculos como povos que perderam o bonde da civilização e por isso deveriam ser, na melhor das hipóteses, tutelados, os povos indígenas agora são objeto de uma baciada de revisionismos feitos pelo pensamento ocidental. Os conhecimentos ancestrais passaram a ser associados a uma vanguarda do conhecimento.
A mudança de perspectiva é tema, por exemplo, de uma nova leva de livros de história. O antropólogo David Graeber e o arqueólogo David Wengrow chegam mesmo a dizer, em O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, que o Iluminismo – fonte de toda a ideia de democracia ocidental – não saiu apenas de cabeças coroadas dos pensadores franceses. Para os dois intelectuais, as ideias iluministas foram reações ao pensamento de indígenas como o chefe ameríndio Kondiaronk, orador brilhante, político habilidoso e um dos estrategistas da Confederação Wendat, coalizão de quatro povos de língua iroquesa que viviam entre o Canadá e os Estados Unidos. Kondiaronk fez críticas demolidoras à sociedade europeia, espinafrando a falta de solidariedade, a submissão cega às autoridades, a ideia de propriedade privada, o sistema legal punitivo e o cristianismo, com suas infindáveis seitas que condenam todas as outras ao Inferno. Segundo Graeber e Wengrow, ideias como as de Kondiaronk foram discutidas com ardor nos salões franceses.
A mudança de perspectiva também abrange leis ou procedimentos. No Canadá, uma legislação de 2019 determina que o órgão que faz avaliações de impacto para o governo tomar decisões regulatórias sempre leve em conta o conhecimento dos indígenas. Na Austrália, as autoridades adotaram a técnica aborígene tradicional de usar incêndios cronometrados e pequenos para reduzir a vegetação rasteira que pode provocar fogaréus maiores, que costumam se alastrar todo ano pelo Sul do país.
O que eventos como a conferência no extremo Oeste do Acre fazem, de certa forma, é inverter a chave. Os indígenas agora pegam o bode pelo chifre: pretendem, eles mesmos, não só cuidar de seu sistema de conhecimento, como convencer o mundo de que ele é primordial.
“Muitos dizem que não temos ciência, falam que o que temos é um mero conhecimento da tradição! Como não temos ciência? O que é a ayahuasca, então?”, discursou Francisco Apurinã-Ywmuniry, no primeiro dia do evento. Quando criança, ele foi tirado da aldeia Camicuã, no município de Boca do Acre, no Amazonas, para estudar em escolas de não indígenas. “Claro, fui parar em um mundo em que era discriminado o tempo todo”, contou ele, um dia antes, na van que levava um punhado de pessoas para o Aeroporto de Cruzeiro do Sul, de onde sairia o táxi aéreo rumo à floresta. Filho do pajé da aldeia, ele se recusou a entrar em um casamento arranjado que o esperava e foi excluído da sucessão. Acabou abrindo uma trilha na carreira acadêmica, e hoje é doutor em antropologia pela UnB, consultor de políticas públicas indigenistas e líder respeitado em sua aldeia.
Em seus textos acadêmicos, Francisco se interessa especialmente pela “antropologia reversa”, conceito criado pelo norte-americano Roy Wagner para definir as observações que povos estudados pelos antropólogos fazem sobre o universo dos não indígenas. Por isso, são pontuados de reflexões sobre o que é, afinal de contas, a ciência produzida pelo homem branco, euro-ocidental, e o que é a ciência dos povos originários, já definida por Claude Lévi-Strauss no livro O Pensamento Selvagem, como a “ciência do concreto”. No artigo Um Olhar Reverso: Da Aldeia para a Universidade, por exemplo, Francisco faz um rasante sobre a presunção de que os povos originários estariam destinados a ser objeto de pesquisa:
É como se os conhecimentos indígenas só pudessem ser considerados “verdadeiros” e “científicos” a partir das produções textuais produzidas pelos pesquisadores não indígenas […]. Mesmo que o que essa objetividade produza sejam, muitas vezes, fatos ou verdades apenas na cultura do pesquisador.
Depois, chega ao seu ponto: contesta a própria noção de “ciência do concreto” e argumenta que é um conceito que não se encaixa na visão de mundo indígena, segundo a qual “as coisas visíveis e invisíveis, concretas e espirituais, são a mesma coisa”. Francisco argumenta que a construção de uma canoa, de uma casa, a plantação de variadas espécies vegetais, os grafismos corporais, os cantos e danças ritualísticas são conhecimentos que não se limitam à produção de coisas do cotidiano. Mas são “uma transmissão sofisticada de conhecimentos filosóficos e científicos deste universo, cheios de ricas divisões da formação do cosmos e da formação humana e dos seres e das vidas que o habitam”.
É um resumo e tanto da grande mensagem que pairava durante as falas da Quarta Conferência Indígena da Ayahuasca – que começou com a defesa dos saberes ancestrais dos povos originários e se expandiu para a causa ambiental.
“Os índios estão segurando o Céu, enquanto lá fora o povo da mercadoria só destrói. Quando cair, vai todo mundo junto. Vai índio e vai branco”, sintetizou Davi Kopenawa, sentado embaixo de uma sumaúma, um dia depois de chegar ao evento causando frenesi entre parentes e convidados que se aproximavam com o celular em punho para fazer fotos. Líder político e xamã yanomami, célebre pela denúncia do genocídio contra o seu povo – que mora na fronteira entre o Brasil e a Venezuela –, Kopenawa é um protetor da maior área de floresta tropical em terras indígenas do mundo, demarcada em 1992 depois de uma mobilização mundial. Chegou à conferência acompanhado de um pajé que fez no auditório uma dança ritualística assombrosa, de tão bonita, olhando para os lados e chamando os xapuris, os espíritos da floresta. Depois, Davi Kopenawa declarou: “Dizem que tem terra demais e pouco índio. Tem índio nas terras, cuidando de tudo.” É um argumento irrefutável: em 2021, apenas 2,5% do desmatamento no Brasil aconteceu dentro de territórios indígenas, de acordo com dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Com histórias sobre-humanas de defesa de seu povo, de seu território e, por tabela, do planeta, líderes de vários pontos do mundo andavam pela conferência. Todos unidos por suas medicinas sagradas.
Do Equador, veio a jovem ativista Nina Gualinga, do povo Quíchua de Sarayaku, uma aldeia com 1,4 mil habitantes que obteve uma conquista histórica. Em 2012, ganhou uma ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos e expulsou a petroleira argentina Compañía General de Combustibles (CGC), que dez anos antes invadira suas terras, escoltada por militares armados. Durante as audiências no Equador, o avô de Nina, o líder espiritual Sabino Gualinga, então um nonagenário, deu um testemunho excruciante, fundamental para o desfecho do processo e hoje referência na luta indígena mundo afora. Argumentou que muitos dos seres invisíveis da selva tinham ido embora, perturbados com os 1 433 kg de explosivos plantados na região pela petrolífera. E, em sua língua ancestral, explicou aos julgadores do caso: “É uma floresta viva. Há árvores e plantas medicinais, há todos os tipos de seres nela.”
Os quíchuas de Sarayaku acabaram formando uma linhagem de militantes de peso, muitos deles mulheres. A tia de Nina, Patricia Gualinga, é uma conhecida ativista ambiental do Equador. Sua irmã mais nova, Helena, também – e aos 17 anos foi destaque entre os palestrantes da COP25, em Madri, na Espanha, seguindo os passos de Nina, que falou na COP23, em Bonn, na Alemanha.
Doutora honoris causa em direito pela Universidade de Leeds, da Inglaterra, poliglota (além de quíchua e espanhol, fala inglês e sueco, a língua de seu pai, um biólogo), com jeito centrado e objetivo, Nina Gualinga discorreu na conferência na Amazônia sobre a importância das plantas sagradas para os povos originários. No mesmo dia, falou seu tio José Gualinga, o líder que levou seu povo à vitória no caso da petroleira. E, dois dias depois, com o rosto pintado com pigmentos pretos tirados da wituk, uma fruta amazônica, falou sua mãe, Noemí Gualinga, parteira, conhecida por seu povo como “mãe da floresta” e criadora da Associação das Mulheres Sarayaku Kuriñampi. Para o povo quíchua, ayahuasca é jayawasca.
Também do Equador, com lenço vermelho amarrado no pescoço e colares de sementes entrelaçados no tronco, veio Alex Lucitante, da comunidade Cofan de Avié. Em 2017, monitorando suas terras às margens do Rio Aguarico com câmeras colocadas nas árvores e com drones, sua comunidade percebeu invasões no território e depois descobriu que o governo equatoriano havia emitido vinte licenças de exploração da área para mineradoras e planejava soltar outras 32. Depois de uma briga na Justiça que durou quase um ano, a comunidade conseguiu que o tribunal da província de Sucumbíos suspendesse todas as atividades de mineração na região que, outra vez, escapou por pouco de mais uma batelada de destruidores. Os cofanes chamam a ayahuasca de yagé.
Da Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, veio Romualdo Torres, um mamo – ou guia curandeiro – do povo Arhuaco. Usava um chapéu de tecido em forma de cone e vestia uma túnica de um branco imaculado que se parecia com as vestes de Luke Skywalker, o jedi de Guerra nas Estrelas. Os arhuacos vivem em batalha eterna contra mineradoras e em meio à violência do narcotráfico. No ano passado, esse povo empossou, num rito simbólico e ancestral, o primeiro presidente de esquerda da Colômbia, Gustavo Petro, antes mesmo que ocorresse a cerimônia oficial de posse. O povo Arhuaco não usa a ayahuasca como planta sagrada, mas o ayu, a folha de coca.
Do México, usando xale, saia roxa com babados e blusa com bordados de flores, veio Victoria Anahi Ochoa. Ela é do povo Yaqui, que luta por suas tradições desde que entrou em contato com conquistadores espanhóis e cujos indígenas foram vendidos como escravos para trabalhar em plantações durante o regime militar de 35 anos de Porfirio Díaz (entre o fim do século XIX e o início do XX). Os que conseguiram fugir voltaram a pé para suas terras, mas estima-se que cerca de 25 mil pessoas, inclusive mulheres e crianças, morreram. Quando enfim conseguiram a demarcação de um punhado de terra, nos anos 1940, ficaram sem água por causa da construção de duas barragens na região. Foram tantas atrocidades que em 2021 o presidente Andrés Manuel López Obrador pediu perdão pelos crimes de Estado cometidos contra os ancestrais yaquis e anunciou um conjunto de políticas para assegurar a devolução de território, a garantia do direito à água e a um programa de bem-estar social. Mas as sequelas da barbárie atravessaram gerações, e Victoria Ochoa participa de um programa de saúde mental para o seu povo que, entre outras medidas, faz intercâmbio de seções de cura com ayahuasca com o povo Huni Kuin, do Acre.
Da aldeia Apiwtxa, a três horas de barco do instituto, vieram os ashaninkas. É um povo milenar, que há um século conseguiu escapar dos seringais do lado peruano da floresta e se mudou para o Brasil. Hoje, se divide por seis territórios indígenas, em cinco municípios acreanos. A aldeia Apiwtxa fica na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, a 5 km da fronteira com o Peru. É onde mora o clã que derivou do casamento entre o cacique Antônio Piyãko e Piti.
A história do casal aos poucos foi adquirindo um tom de fábula porque a união, há seis décadas, juntou dois mundos na época irreconciliáveis: Piti é filha de um seringueiro e gerou a família indígena mais influente da região. Ela e Antônio tiveram oito filhos, altos como a mãe, articulados, carismáticos e determinados a quebrar a barreira de preconceito contra indígenas. Um deles, Isaac, foi prefeito da cidade mais próxima da aldeia, Marechal Thaumaturgo. Mas o mais midiático é o pajé Benki Piyãko, que na infância inspirou a canção Benke/Beija-Flor, composta por Milton Nascimento.
Ambientalista com prestígio internacional, Benki usa as conexões e os prêmios que ganha para fazer projetos de reflorestamento. Em 2007, comprou uma área de 86 hectares desmatada para virar pasto, bem na frente de Marechal Thaumaturgo, reflorestou tudo e criou o Centro Yorenka Ãtame (“saberes da floresta”, na língua dos ashaninkas), uma escola para lideranças indígenas e técnicos agrícolas. Depois, comprou outra faixa de terra e criou o Yorenka Tasorentsi (“a sabedoria do criador”), lugar dedicado a projetos de educação ambiental, espiritualidade e cura. O instituto recebe estrangeiros para temporadas de dieta e rituais de ayahuasca. Alguns estavam lá durante a conferência indígena e acabaram colocando a mão na massa, ajudando a carregar cadeiras e a varrer o auditório antes dos debates.
Os ashaninkas tiveram suas terras demarcadas em 1992. De 1981 a 1987, quando os limites do território já estavam definidos, a madeireira Marmud Cameli, do ex-governador Orleir Cameli, morto em 2013, entrou na área com máquinas que rapidamente derrubaram árvores, aterraram igarapés, poluíram a água e afugentaram as caças. Contratados ali pela região, os funcionários da madeireira andavam armados e ameaçavam os indígenas. Ao lado de entidades ambientalistas, os ashaninkas entraram com uma ação. O processo se arrastou até 2020, quando o STF condenou a empresa e o espólio de Cameli a fazer um pedido público de desculpas e a pagar uma indenização de 14 milhões de reais – que devem ser usados em projetos para os povos da floresta, supervisionados todos os meses pela Funai. Cameli era tio de Gladson Cameli (PP), atual governador do Acre. Os ashaninkas levaram trinta anos para recuperar totalmente a área invadida. Para eles, a ayahuasca é kamarampi.
Do Canadá, veio o ancião Clayton Shirt. Com cavanhaque e cabelos grisalhos penteados em um rabo de cavalo, vestindo camisa, bermuda e tênis, ele parecia derreter no calor acreano. Shirt é da nação Cree, ou Anishinaabe, o povo indígena mais populoso do Canadá. É um dos três filhos de Pauline Shirt, uma conhecida militante pelos direitos das nações originárias canadenses, professora e fundadora de duas escolas para crianças indígenas em Toronto, uma ideia que lhe ocorreu quando Clayton, ainda menino, passou a se recusar a frequentar a escola pública porque sofria bullying por causa de suas origens.
A anciã Pauline é uma sobrevivente dos 130 internatos, em sua maioria católicos, construídos no país para assimilar crianças nativas. Esses lugares funcionaram entre 1863 e 1998, separaram mais de 150 mil crianças indígenas de suas famílias e viraram casas de horrores. Em 2021, no intervalo de menos de um mês, foram descobertas cerca de 1 mil sepulturas anônimas de crianças em locais onde funcionaram duas dessas escolas. Os restos mortais, jogados em valas comuns, chocaram o mundo e escancaram o genocídio contra as Primeiras Nações, termo usado na América do Norte para designar os povos originários. O primeiro-ministro, Justin Trudeau, declarou que os canadenses estavam horrorizados com a política governamental que foi realidade no país por muitas décadas: “Sentimos muito. Não podemos desfazer o passado, mas podemos nos comprometer todos os dias a consertá-lo no presente e no futuro”, afirmou.
Educador como a mãe e com trabalhos em parceria com pesquisadores da Universidade de Toronto, Clayton Shirt dedica-se às tentativas de curar os descendentes desse passado monstruoso, ainda hoje afetados pela depressão e o alcoolismo. Por isso, faz intercâmbio com povos da América do Sul para o uso espiritual e terapêutico da ayahuasca.
No quarto dia da conferência, o canadense falou do passado do seu povo com lágrimas nos olhos. E encerrou sua fala assim: “Todos os anos, os povos indígenas do Canadá se encontram em uma grande reunião. De brincadeira, fazemos uma eleição de quem é o mais bonito do país. Infelizmente, nunca ganhei. Mas, depois de vir aqui, vou ter que dizer a eles: ‘Fui na Amazônia e lá vi o povo mais bonito do mundo.’”
Em alguns pontos da plateia de cocares, ouviu-se o brado Haux! Haux!, uma palavra sagrada que, junto com a expressão “É só alegria!”, há alguns anos virou moda por ali. Ambas são muito usadas nas sessões de ayahuasca.
*A versão anterior desta reportagem informava erroneamente que os waimiri atroaris vivem em Rondônia. Na verdade, eles vivem no Sul de Roraima e no Norte do Amazonas.
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